A Riqueza

kropotkin_1 A humanidade andou bastante desde o tempo em que a pedra lascada lhe servia para fabricar suas armas, para lutar desesperadamente pela existência. Esse período durou milhares e milhares de anos durante os quais o gênero humano acumulou tesouros incomensuráveis. Desbra­vou o solo, aterrou pântanos, desbastou florestas, abriu estradas, edificou, construiu e raciocinou; arranjou utensílios complicados, arrancou à Natureza os seus segredos, domou o vapor. Hoje, o homem civilizado já ao nascer encontra um capital imenso, acumulado pelos seus antepas­sados. E é esse capital que lhe permite agora, conjugando o seu trabalho com o dos outros homens, obter tão consideráveis riquezas que deixam a perder de vista os fabulosos tesouros que os orientais sonhavam nos seus contos das Mil e Uma Noites.
Parte do solo está pronto para acolher o trabalho do lavrador in­teligente e as sementes escolhidas, e enfeitar-se com colheitas deslum­brantes, mais do que o preciso para satisfazer todas as necessidades do homem, pelos meios conhecidos da agricultura.
No solo virgem dos prados da América, 100 homens, munidos de máquinas poderosas, produzem em poucos meses o trigo necessário para o sustento de 10.000 pessoas durante um ano inteiro. Quando o homem quer multiplicar o seu rendimento, prepara o solo, dá às plantações cui­dados que lhes convêm e obtém colheitas prodigiosas. E enquanto que outrora tinha o selvagem que apropriar-se de 100km2 para sustentar a sua família, o civilizado cria, com incomparavelmente menos trabalho e mais segurança, tudo quanto precisa para sustentar os seus na décima milésima parte desse espaço.
O clima já não é um obstáculo. Falta o sol? O homem o substitui pelo calor artificial, enquanto não faz também a luz para ativar a vege­tação. Com vidro e canalizações de água quente, colhe, em um espaço determinado, 10 vezes maior produção do que antes. I
Os prodígios efetuados na indústria são mais admiráveis ainda. Com esses seres inteligentes – as maquinas modernas – fruto de três ou quatro gerações de inventores, na maior parte desconhecidos, 100 ho­mens produzem com que vestir 10.000 homens no espaço de dois anos. Nas minas de carvão bem organizadas, 100 homens extraem cada ano o combustível para aquecer 10.000 famílias sob um inverno rigoroso. E viu-se já uma cidade maravilhosa surgir toda inteira em poucos meses no Campo de Marte, sem haver a menor interrupção nos trabalhos nor­mais da nação francesa.
E se o trabalho dos nossos maiores não aproveita senão sobretudo ao menor número, é todavia certo que a humanidade podia já permitir- se uma existência de riqueza e de luxo, só com os trabalhadores de ferro e de aço que possui.
Sim, sem dúvida, somos ricos, muito mais ricos do que julgamos. Ricos pelo que já possuímos; ainda mais ricos pelo que podemos produ­zir com o material conhecido. Infinitamente mais ricos pelo que poderí­amos retirar do solo, das manufaturas, da nossa ciência e do nosso saber técnico, se tudo isso fosse aplicado com vista ao bem-estar de todos.
Nas sociedades civilizadas somos ricos. Como se explica então tan­ta miséria ao nosso redor? Para que este trabalho pesado que embrutece as massas? Por que a falta de segurança do dia de amanhã? Têm-no dito e repetido a cada momento os socialistas com argumentos colhidos em todas as ciências. Porque tudo o que é necessário à produção: a terra, as minas, as máquinas, as estradas, o alimento, o abrigo, a educação, a ci­ência foi açambarcado por alguns, durante a vasta história de pilhagem, de êxodos, de guerras, de ignorância e de opressão, que a humanidade viveu antes de aprender a dominar as forças da Natureza.
Porque à sombra de pretendidos direitos ganhos no passado, usur­pam hoje dois terços do trabalho humano, que entregam à mais insen­sata e escandalosa dissipação; porque não tendo as massas com que se manter um mês, nem mesmo oito dias, só permitem que o homem trabalhe, com a condição de lhes deixar tirar a parte do leão; porque não o deixam produzir quanto £ necessário aos outros, mas só o que oferece grandes lucros ao açambarcador.
Todo o socialismo consiste nisso!
Vejamos um país civilizado. Os bosques que o cobriam antes foram derrubados, os pântanos aterrados, o clima saneado: tornou-se habi­tável. O solo, que só dava ervas inúteis, está dando ricas culturas. Os rochedos, que sobrecarregavam os vales, estão cortados em planaltos, onde cresce a vinha. Plantas selvagens que davam um fruto amargo, in­tragável, transforma-se por seleção em legumes suculentos e em árvores carregadas de frutos deliciosos.
Milhares de estradas e de vias férreas sulcam a terra, atravessam as montanhas; a locomotiva silva nas gargantas dos Alpes, desde o Cáucaso até o Himalaia; os rios tornaram-se navegáveis; as costas cuidadosa­mente estudadas, são de fácil acesso; portos artificiais dão refúgio aos navios contra o furor do oceano. Em todos os pontos onde se cruzam as estradas surgiram cidades, engrandeceram-se e no seu seio aparecem os tesouros da indústria, da arte, da ciência.
Gerações inteiras, nascidas e mortas na miséria, legaram esta imen­sa herança ao século XIX.
Em milhares de anos, milhões de homens trabalharam em des­bastar as florestas, sanear os pântanos, abrir estradas, erguer diques nos rios. Cada hectare do solo que se cultiva na Europa foi regado pelo suor de diversas raças; cada estrada tem um história das fadigas do trabalho humano, dos sofrimentos do povo. Cada légua de estrada de ferro, cada metro de túnel recebeu a sua parte de sangue humano.
Nas minas podem-se contar os homens mortos na força da idade pelo gás, pelos desabamentos ou pelas inundações, e sabe-se quantas lágrimas, quantas privações e misérias sem nome custou à família que vivia do magro salário do mineiro.
Escavai o solo de qualquer cidade e no subsolo encontrareis en­terradas outras ruas, casas, teatros, edifícios públicos, tudo devido ao trabalho dos que nela viveram.
E mesmo agora, o valor de cada casa, fábrica ou armazém, é feito do trabalho acumulado de milhões de trabalhadores sepultados sob a terra. Milhões de seres humanos trabalharam para criar esta civilização de que hoje nos glorificamos; outros milhões disseminados na superfície da terra trabalharam para a manter.
Mesmo o pensamento, mesmo a invenção são fatos coletivos nasci­dos do passado e do presente. Milhares de inventores mortos na miséria prepararam a invenção de cada uma dessas máquinas, em que o homem admira o seu gênio. Milhares de escritores, poetas e sábios trabalharam na elaboração do conhecimento, para criar a atmosfera do pensamento científico, sem a qual nenhuma das maravilhas do nosso século teria aparecido. Mas todos esses sábios, poetas e filósofos, já tinham sido sus­citados pelo trabalho dos séculos anteriores; tinham sido mantidos física e moralmente, por legiões de trabalhadores e artistas de toda a espécie.
Os gênios de Séguin, de Meyer e de Grove fizeram mais para lan­çar a indústria em novas vias que todos os capitalistas do mundo, mas eles mesmos são tão filhos da indústria como da ciência, não foi preciso que milhares de máquinas a vapor transformassem anualmente, à vista de todos, o calor em força dinâmica e esta força em som, luz e eletri­cidade; e se nós mesmos temos compreendido estas ideias e soubemos aplicá-las, é porque estávamos preparados pela experiência de cada dia.
Todas as máquinas têm a mesma história de noites em claro e de miséria, de desilusões e de alegrias; melhoramentos parciais achados por diversas legiões de operários desconhecidos que vinham acrescentar ao invento primitivo esses pequenos nadas, sem os quais a ideia mais fecunda fica estéril.hqdefault
Cada descoberta, cada progresso, cada aumento da riqueza da hu­manidade tem o seu princípio no conjunto do trabalho manual e cere­bral do passado e do presente.
Logo, com que direito poderia alguém apossar-se da menor parcela desse imenso patrimônio e dizer: “Isto é meu, não é vosso!”
Mas tudo o que, na série das idades, permite aos homens produzir e aumentar a sua força de produção, foi monopolizado por alguns. Um dia contaremos como isso se passou.
Hoje, o solo, que tira o seu valor precisamente das necessidades de uma população sempre em aumento, pertence às minorias, que podem impedir e de fato impedem o povo de cultivá-lo segundo as necessidades. As minas que representam o labor de várias gerações, e que não tiram o seu valor senão das necessidades da indústria e da densidade da popula­ção, pertencem também a alguns, e estes diminuem a extração do carvão ou proíbem-na totalmente, se encontram melhor colocação para os seus capitais. Se os netos do inventor, que há 100 anos construiu a máquina de rendas, se apresentassem hoje em uma manufatura de Basileia ou de Notthingham e reclamassem seus direitos, gritar-lhes-iam: “Vão-se embora, esta máquina não“Ç sua” – e fuzilá-los-iam, se quisessem tomar posse dela.
Se os filhos dos que morreram aos milhares, abrindo as vias e os túneis das estradas de ferro, se apresentassem esfarrapados e famintos a reclamar pão aos acionistas, encontrariam baionetas e metralhadoras para os dispersar e pôr a salvo os direitos adquiridos.
Em virtude desta monstruosa organização, o filho do trabalhador, ao entrar na vida, não encontra nenhum campo que possa cultivar, ne­nhuma máquina que possa manejar, nenhuma mina que possa explorar, sem ceder a um senhor uma boa parte do que produzir. Deve vender sua atividade em troca de uma ração diária magra e incerta. Seu pai e seu avô trabalharam, desbravando esse campo, edificando essa oficina, aperfeiçoando as máquinas, trabalharam na medida das suas forças, mas ele, ao vir ao mundo, é mais pobre que o último selvagem. Se lhe consentem que se aplique à cultura de um campo, é com a condição de ceder um quarto do produto ao dono e um quarto ao governo e aos intermediários. Se se entrega à industria, permitem-lhe que trabalhe, aliás nem sempre, mas com a condição de não receber mais que um terço ou metade do produto, devendo o restante ficar com aquele que a lei reconhece como dono da máquina.
Gritamos contra o barão feudal que não consentia que lhe mexes­sem na terra sem lhe deixar metade da colheita; chamamos a isto época da barbárie, mas se as formas mudaram, as relações ficaram as mesmas; e o trabalhador aceita, porque em parte alguma encontra condições me­lhores.
Resulta deste estado de coisas que toda a nossa produção é dirigi­da insensatamente. A empresa não se preocupa com as necessidades da sociedade, apenas procura aumentar os benefícios do empresário. Daí advêm as flutuações contínuas da indústria, as crises em estado crônico, lançando por terra, cada uma, centenas de milhares de trabalhadores.
Não podendo os operários comprar com os seus salários as rique­zas que produziram, a indústria procura mercados fora do país, entre os açambarcadores das outras nações. O europeu nestas condições deve aumentar o número dos seus servos. Mas em toda parte encontra con­correntes, visto que todas as nações evoluem no mesmo sentido. E a guerra permanente deve rebentar a favor do direito de primazia nos mercados. Guerras pelas possessões no Oriente, guerras pelo império dos mares, guerra para impor direitos de entrada e ditar condições aos vizinhos; guerras contra os que se revoltam! Na Europa, o canhão nunca está calado, gerações inteiras são massacradas e os Estados gastam em armamentos um terço das suas receitas – e bem se sabe o que são os impostos e o que custam ao pobre.
A educação é um privilégio. Pode-se lá falar em educação, quando o filho do operário é obrigado a descer à mina aos 13 anos e ajudar spu pai na fazenda? Falar de estudos ao trabalhador, que volta à noite, que­brado por um dia inteiro de trabalho forçado! As sociedades dividem-se em dois campos contrários e, nestas condições, a liberdade torna-se uma palavra vã. O radical pede uma extensão maior das liberdades políticas, enquanto se apercebe que o sopro da liberdade rapidamente conduz ao levantamento dos proletários; e então recua, muda de opinião, e volta às leis de exceção e ao governo do sabre.
Uma legião de autoridades é necessária para manter os privilégios e este mesmo conjunto torna-se a origem de todo um sistema de dela­ções, mentiras, ameaças e corrupção.
Por outro lado, este sistema atrasa o desenvolvimento dos senti­mentos sociais. Compreende-se que sem retidão, sem o respeito de si mesmo, sem simpatia e sem auxílio mútuo, a espécie deve definhar, como definham certas espécies animais que vivem de rapina. Mas isto não convém às classes dirigentes, que inventaram, para provar o con­trário, uma ciência absolutamente falsa.
Tem-se dito coisas muito bonitas sobre a necessidade de repartir o que se possui pelos que não têm nada. Mas se alguém se lembra de pôr este princípio em prática é logo advertido de que todos estes grandes sentimentos são bons nos livros de poesia, mas não na vida prática.
“Mentir é aviltar-se, rebaixar-se”, dizemos nós, e toda a existência civilizada torna-se uma colossal mentira. Hipocrisia e sofisma tornam-se a segunda natureza do homem civilizado. Mas uma sociedade não pode viver assim; precisa voltar à verdade ou desaparecer.
Assim o simples fato do açambarcamento estende suas consequên­cias sobre o conjunto da vida social. As sociedades humanas são forçadas a voltar aos princípios fundamentais.
Sendo os meios de produção obra coletiva da humanidade, devem regressar à coletividade humana. A apropriação pessoal não é justa nem proveitosa. Tudo é de todos, visto que todos precisam de tudo, visto que todos têm trabalhado na medida das suas forças, e que é materialmente impossível determinar a parte que poderia pertencer a cada um na pro­dução atual das riquezas.mutualaid_eng
Tudo é de todos! Eis um formidável instrumento que o século XIX criou: eis milhões de escravos de ferro, que nós chamamos máquinas, e que aplainam e serram; tccem e fiam para nós; que decompõem a matéria-prima e formam as maravilhas na nossa época.
Ninguém tem direito de se apoderar de uma só dessas maquinas e dizer: “E minha, quem quiser servir-se dela há de me pagar um tributo sobre cada um dos seus produtos”, tanto como o senhor da Idade Média não tinha direito de dizer ao cultivador: “Esta colina, este prado são meus e vós pagar-me-eis um tributo sobre os feixes de trigo que colher­des, sobre cada feixe de feno que arrecadardes”.
Tudo é de todos e contanto que o homem e a mulher tragam a sua parcela do trabalho, têm direito à sua parcela de tudo quanto for produzido por todo mundo. E esta parte lhes dará o bem-estar.
Basta dessas fórmulas ambíguas, tais como: “direito ao trabalho” ou “a cada um o produto integral do seu trabalho”. O que nós pro­clamamos é O DIREITO AO BEM-ESTAR – O BEM-ESTAR PARA TODOS.

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O Capitalismo funciona?

baneBane
Por onde a gente começa?

 

 

 

batmanBatman
Eu começaria nos apresentando para pelo menos entender (dentro do que é possível através de rótulos) qual a principal linha de pensamento de cada um. Eu sou libertário gradualista, sabendo que os dois rótulos estão em contradição segundo pensamento de muita gente. Digo isso porque, acho que a transição rápida da sociedade atual para uma sociedade livre fará as pessoas a clamar pela volta da opressão estatal, sendo uma tentativa infrutífera. Também tenho a crença que os fins não justificam os meios, portanto, não sou conivente com massacres e/ou julgamentos baseado em cor/raça, identificação de gênero ou classe social. Até onde sei, o Palhaço é um admirador de Kropotkin. Vocês são de que espécie? Ancap, mutualistas, ancom, petistas?

jokerPalhaço
cut the bullshit
O Batman nos critica dizendo que baseamos nossas ideias em boas intenções apenas, enquanto as dele favorecem de algo que funcione. Mas funciona? Capitalismo funciona? Funciona pra quem? Se funciona, por que existe tanta produção ao mesmo tempo de tanta gente passando fome, frio? Se funciona, por que existem tantos com tão pouco e tão poucos com tanto?
Se os pro-capitalistas quisessem defender algo por seus méritos puramente, não defenderiam o capitalismo.
E não vamos cair aqui na armadilha do “se”: se o estado não intervisse, se o estado não existisse e etc. Durante toda história uma coisa esteve de mãos dadas com a outra, afinal se o estado existe, é pra servir as necessidades do capitalismo. O único poder real, é o poder do capital.
Além disso, até nos seus sonhos mais molhados, defensores do capitalismo falam de elites naturais, como se existisse uma condição social natural, eterna, para a humanidade. Tratam o mercado como uma força da natureza, à qual a resistência é inútil e até nociva, da mesma forma que os sacerdotes justificavam o poder do príncipe como sendo natural, divino.

duas_carasDuas-Caras
não vejo como possa afirmar que “não sou conivente com…julgamentos baseado em … classe social” e ao mesmo tempo sustentar a propriedade privada, visto que esta implica por si mesma no julgamento e separação de pessoas em classes sociais, de maneira artificial e imposta, entre aqueles que se definem no “direito” de decidir o modo como as demais pessoas podem alterar seu meio.Dizer, por exemplo, que uma fábrica, loja ou fazenda é “minha” e que portanto posso decidir os usos dela, assim como a interação que os demais estabelecem com ela, não é distinto da exigência dos reis de controlar as ações de seus “súditos”.De fato, a ideia básica de que cada indivíduo é autônomo, livre, requer que ele a) possua ele próprio os meios que asseguram sua subsistência (liberdade negativa), i.e não sou livre se a opção de ter alimento é dependente da vontade arbitrária de outra pessoa, como um pássaro numa gaiola e, também, b) devo dispor ao meu redor de recursos que possa modificar de acordo com meus valores e aspirações (liberdade positiva).
Enquanto numa sociedade baseada no comunismo libertário seria estabelecido um consenso prévio entre as partes para verificar como podem conjuntamente atingir suas aspirações,o modo como o capitalismo “resolve”, pela barbárie institucionalizada, é conferindo, arbitrariamente, o poder de alguns de tomar decisões (capitalistas) forçando os demais a se sujeitarem a suas regras.Como o Palhaço observou antes, o capitalismo requer uma forma de Estado e hierarquia (por exemplo, o uso direto da forma, como em “milícias” privadas) no processo de “julgar” os poderes que uma pessoa deve ter ou não sobre as demais.Essa “mediação” artificial da atividade humana com seu meio pode ser tanto garantida pelo monopólio de alguém sobre o que é produzido (mercadorias), como o monopólio sobre a atividade humana futura (dinheiro, “estocando-na”).Podemos dizer que esses humanos, que perdem a propriedade de transformarem a si mesmos e seu meio de forma consciente, e se “moldam” de acordo com ordens impostas, foram transformados em “ferramentas”.Poderíamos dizer que se transformam em algo análoga a peças vivas de xadrez: cada uma com uma “função” específica, seu “trabalho”, que não é criado espontaneamente, mas surge de regras prévias impostas, com os dois “jogadores” ocupando o papel dos “capitalistas”, cujo fim é acumular capital, ou seja, a posse de ferramentas que expandem o controle do seu meio, num processo automático.Logo, algo que não possui sequer minimamente relação com “atender necessidades humanas” como um FIM, mas exceto como um meio para a manutenção das RELAÇÕES capitalistas.

Na linguagem econômica: o “investidor” investe seu capital visando obter “retornos” de investimento.Em outras palavras, a garantia de que o dinheiro continuará “comprando atividade humana alienada” e que o uso dos meios de produção continuarão sendo “separados do controle consciente dos trabalhadores envolvidos”.Para criar um modelo mental, basta imaginar o que ocorreria com a economia, ou seja, o “valor” do dinheiro e da propriedade privada, se hipoteticamente a escassez fosse encerrada, i.e, todas necessidades humanas fossem satisfeitas sem a necessidade de trocas mercantis: o dinheiro deixaria de “comprar” a atividade humana, e terras e fábricas deixariam de “render dividendos”, pois este era pura e simplesmente a atividade humana alienada, cuja parte era incorporada pelos seus “donos” devido a aceitação prévia arbitrária de que os trabalhadores “precisam” que aquela propriedade tenham um dono para transformá-la.Algo, é claro, garantida por meios violentos.O trabalhador “precisa” da participação do capitalista como “dono” da fábrica, do mesmo modo como um pescador poderia “necessitar” da autorização de mafiosos para pescar um rio.É pela CRIAÇÃO ARTIFICIAL de escassez, ou seja, propriedade privada que não pode ser transformada diretamente, pois quando isso é tentado se é preso ou morto, que o capitalismo ganha a aparência de algo “necessário” no processo.Podemos ver versões antigas dessa crença na forma dos amuletos, que o caçador atribuía o poder de “efetuar” a caça, ou nas religiões, onde tudo, seja o que existe ou existirá, se apresenta como obra prévia de um ser divino, e portanto estamos em débito perpétuo a este e devemos nos submeter a suas Ordens.Em outras palavras, o capitalismo é uma religião.
Para mais detalhes desse argumento leia os textos de Fredy Perlman, “A Reprodução da Vida Cotidiana” e “O Fetichismo das Mercadorias“.
Sobre se uma sociedade anarquista (especificamente, baseado no comunismo libertário), “funcionaria”, considero isso tão especulativo quanto tentar adivinhar o conteúdo de uma caixa fechada.O que posso afirmar é que:a) os poderes atualmente conferidos aos capitalistas em detrimento dos trabalhadores são arbitrários e baseados numa distorção do entendimento da realidade, como explicado anteriormente, de modo que, consequentemente, superá-lo é o equivalente a superar dogmas, crenças não verificadas impostas pela autoridade, assim como acreditar que a autoridade de um rei não é “sagrada”.
Como ocorre com a aquisição de qualquer conhecimento, não vejo motivo, a priori, para que ele “melhore” a vida de alguém por si só.De fato, por exemplo, o conhecimento do fogo pode servir para aquecer o homem e alimentá-lo, ou para provocar imensos incêndios e dizimar uma população.Como qualquer ideia, ela é potencialmente uma FERRAMENTA para modificar o mundo.E, acredito que concorde comigo enquanto libertário, esse conhecimento deve ser livre para ser partilhado entre pessoas para que, com ele, tomem decisões conscientes de como transformar seu meio.
Logo, vejo todo projeto de “anarquismo” não em relação em elaborar um “projeto fantástico para melhorar a vida das pessoas” ou de assegurar “iphones para todos” ou de “trazer o paraíso na terra” , já que seria tolice imaginar que possua poderes especiais para determinar o que é bom para as pessoas, responsabilidade que deve caber a elas próprias, mas de transmitindo essas ideias abrir para elas novas possibilidades de alterar elas próprias seu meio, de acordo com valores e inclinações que nasçam dentro delas mesmas.
Contudo, acredito ser possível mostrar, empiricamente, que a crença nas categorias fundamentais do capitalismo, como atividade alienada, divisão do trabalho e propriedade privada, são os maiores empecilhos para o ser humano usar seu potencial real de forma a criar um ambiente melhor, pelo mesmo motivo que me parece que o ser humano conseguiria encontrar mais propósito e liberdade em sua vida pensando e agindo por conta própria do que recebendo ordens e sendo ameaçado para que continue construindo pirâmides.
Simplesmente, são as possibilidades de sermos livres, autônomos (que vejo como um fim em si mesmo), que estão sendo arruinadas.É o modo de interagirmos com o mundo que deixa de ser livre, autodeterminado, para adquirir uma forma específica qualquer, e que passa a “decidir” por nós destinos que nunca escolhemos ou quisemos.Toda retórica inflamada sobre as “liberdades” no capitalismo desmorona se fizermos uma simples pergunta: porque ESTA atividade em particular e não outra?O que DETERMINA o que fazemos diariamente?Em que nível o mundo se apresenta como uma decisão nossa, como indivíduos?Podemos ver a preocupação extrema existente, no processo de tornar o capitalismo “viável”, de colocar perpetuamente os seres humanos sobre contínua vigília, restringindo ações que tomem de forma espontânea e impondo aquelas que executam sobre ordens em função de um “salário”.Câmeras, muros, prisões, “educação”, os aparatos estão por todo lado, tudo é feito para transformar seres humanos em objetos, em obedientes”fatores de produção”. De fato o capitalismo NASCE num processo onde uma multidão de camponeses são deixados sem meios de subsistência, os forçando a alienarem sua atividade (trabalharem, e expandirem o capitalismo) de forma a se manterem vivos.
Comparo, nesse sentido, minha crítica do capitalismo a que Nietszche fazia ao cristianismo, como uma forma que “deformava o ser humano”.

poisonPoison Ivy
Pelo menos ele admite que as intenções dos capitalistas não são as melhores. Mas eu perguntaria pra ele qual são as intenções que ele diz serem lindas, e porque elas não funcionariam. Me interessa sim saber se o que defendo funciona. Funciona para quem, com que objetivo? Funcionar é realmente relativo.

charadaCharada
o sistema capitalista, conduz os indivíduos como um jogo conduz as peças de xadrez, as pessoas pensam que estão agindo por si mesmas, mas estão mesmo é sendo movidas pelas normas e axiomas intrinsecamente vinculados ao funcionamento de tal arranjo sistêmico.

poisonPoison Ivy
Charada, concordo, e penso que isso não é exclusivo do sistema capitalista. Qualquer sistema inteligente, e isso quer dizer qualquer sistema tecnológico, acaba controlando seu criador. O sistema capitalista é uma consequência lógica do pensamento mecanicista da Grécia antiga. Qualquer modo de vida pensado para que seres humanos vivam em ambientes artificiais, que nos afaste da comunidade dos seres vivos, que nos distingue hierarquicamente deles, diminuirá de um modo ou de outro nossa autonomia, até que sejamos dispensáveis.

charadaCharada
Poison Ivy pois nós morremos e o sistema continua a operar historicamente.

 

 

poisonPoison Ivy
Exato.
Para Platão tudo que vemos é dispensável porque a única coisa real é o mundo das ideias. A história da civilização é a história da concretização desse ideal platônico. Mais e mais, o material perde valor, o sistema, abstrato e computacional, é que realmente manda.

baneBane
Mas desde quando o processo de sociometabolismo do capital foi declarado algo bom ou superior? “Tecnologicamente superior”? Pois diferente do que foi dito aqui, o processo de auto-replicancia do capital sempre foi encarado como uma problemática, desde seus idealizadores mais antigos como Smith e Locke, o controle do capital por suas personificações sempre foi o cerne das inferências teóricas para a melhoria do mesmo. Portanto se o processo de avanço do capital significa algo, superior e funcional não pode ser.

Ra's_Al_Ghul_(Batman)Ra’s Al Ghul
Duas-Caras você “lacrou” (gíria ‘funkenesa’) sambou na cara dos engomadinhos, seu comentário certamente seria excluído das paginas liberalóides. O atual discurso liberalista e critica o estado da mesma forma que o coronel critica o jagunço, querem esconder que o poder dos capitalistas depende do estado tal como o poder dos coronéis dependo dos jagunços. Afinal o ”lucro” é produto do trabalho alienado e a alienação da atividade alheia só é possível com a institucionalização da propriedade privada, e ela para existir precisa de uma força coercitiva e a força coercitiva “legal” que a mantem é justamente o estado, e o estado não surge ‘espontaneamente’ ele começa como uma pequena gangue que elimina as rivais e se auto-proclama “legitimo”, sem a ‘legitimação’ de uma gangue como estado não há legitimação da propriedade.

batmanBatman
Bom, pessoal, obrigado pelas contribuições, e vou tentar fazer o melhor para expor o meu ponto de vista, que diverge frontalmente de algumas idéias aqui expostas. Já peço desculpas antecipadamente se em algum momento soar agressivo, pois essa é uma tendência minha em debates escritos, e, por mais que tente me policiar, por vezes me passo.
Primeiro há realmente uma questão de linguagem e interpretação do significado das palavras que, infelizmente, é chato para cacete definir, mas é preciso para que eu possa entender o que vocês falam… Por exemplo, o que significa “capitalismo”? Se é a submissão do poder político e social ao capital, tenho um entendimento. Se é a simples aceitação da propriedade privada, meu entendimento é bem diferente… e de vez em quando me parece que capitalismo é usado em ambas as situações, dependendo do contexto, e por isso, muito difícil de contra-argumentar.
Mas vou tentar fazer meu melhor, tentando contribuir a um diálogo real, e não a dois monólogos surdos como normalmente vejo na Internet.
O primeiro ponto que eu quero deixar claro na defesa do meme é que eu concordo que ambos os lados possam operar nas melhores das intenções, mas chegar em conclusões contrárias. Como normalmente não há erros lógicos em argumentos já bastante discutidos, Ayn Rand nos aconselha a pensarmos no óbvio: chequemos nossas premissas, ali deve morar as divergências.
Nesse texto, vou usar capitalismo com o significado apenas de qualquer sistema que exista propriedade privada. O capital comprando direitos políticos e sociais vou chamar de corporativismo, para diferenciar.
A primeira premissa que entendo é que o capitalismo não quer ser um sistema perfeito. Eu, como defensor do capitalismo (no sentido estrito acima), entendo que a violência e competição pelos recursos escassos sempre vai existir. E mais, essa violência irá existir mesmo se os recursos não fossem escassos. Uso como exemplo o fato das pessoas possuírem complexo de Édipo : o próprio problema de querer matar o pai para casar com a mãe. . Amor de mãe é, até onde sei, um dos conceitos menos escassos em teoria, justamente porque ele seria não -competitivo, ou seja, a mãe amar um marido não exclui absolutamente nada do amor aos filhos. Não sou psicólogo, mas sei que nao podemos negar o fato de que o complexo de Édipo existe, e se um recurso naturalmente não-escasso causa competição entre pais e filhos, imaginem a discussão entre pares competindo por recursos realmente escassos .
Partindo do reconhecimento que disputas e violência é uma consequência da natureza humana, o capitalismo é uma das maneiras de se tentar reduzir as injustiças, ainda que saibamos que elas serão inevitáveis.
Isso posto, temos uma segunda premissa que não entendi como vocês tratam: acredito que ninguém aqui vai discordar que o trigo não se planta sozinho e o pão não se faz do ar. E que seria uma grande injustiça se eu trabalhasse para fazê-lo e não pudesse disfrutar do seu sabor. A obrigação do trabalho sem este retorno é uma condição análoga ao escravagismo, onde o escravo é obrigado a produzir e não tem o direito de consumir o fruto de seu próprio trabalho.
Mas, já prevendo a argumentação, sr ao produtor fosse dado uma parte de acordo com sua necessidade… Então do ponto de vista prático, a posteriori, sabemos que essa sociedade não se sustentaria. A grande fome chinesa é um exemplo histórico onde muitos morreram de fome justamente pelos incentivos errados da produção. Esse é um exemplo social que já foi replicado diversas vezes, normalmente com o mesmo resultado trágico.
Além disso, Mises já provou aprioristicamente (posso descrever a prova aqui, mas toma tempo que não tenho) que o cálculo econômico é impossibilitado sem um sistema de preços. A simples decisão de se produzir um pão ou um bolo de chocolate fica comprometida se não conhecemos os custos de cada um dos ingredientes, e as alocações seriam não -ótimas.
De forma geral, a decisão seria ainda pior se fosse “devo passar a tarde criando uma música ou fazendo um bolo?”. Sem sistema de preços, como se decide qual tarefa agrega mais bem-estar? O consenso prévio é, com todo o respeito, inviável, para decidir como um jovem de 12 anos deve passar a tarde, imagina criar uma sociedade inteira que decide se eu posso ou não jogar video-game com base em votação da sociedade.
O capitalismo como coloco não garante a justiça, depende da boa vontade e caridade de pessoas. Mas é viável para manter as violências nos menores patamares possíveis, ainda que com base em competição dos agentes econômicos. O corporativismo realmente distorce as coisas, o Estado prejudica e não deixa sabermos como seria uma sociedade livre de agressões estatais. Mas se a regra é não cair na lógica do “se” (se o estado não interviesse), não podemos pensar na sociedade “se as pessoas fossem boas”, “se as pessoas quisessem cooperar”.
Sobre o “sociometabolismo do capital”… Não faço idéia do que seja isso.
Sobre a asserção que “qualquer sistema complexo domina seu criador”…. qual o racional para isso? Existe alguma evidência de que seja um fato?

jokerPalhaço
Batman, obrigado pela resposta
Pra começar pelas definições, gostaria de esclarecer que antes de tudo, o capitalismo é uma forma de organização social histórica, ou seja, é determinada por circunstancias materiais específicas históricamente e se desenvolve nesse contexto. Não é de forma alguma um amarrado de dois ou três conceitos, de forma que afirmar que apenas a propriedade privada ou apenas o trabalho assalariado sejam quesitos suficientes para categorizar algo como “capitalista” nos induz ao erro de analisar ideias separadas da realidade, separadas da prática.
Tendo dito isso, passo a responder o restante da sua excelente argumentação
Você menciona a natureza humana, afirmando que ela é de violencia e que o capitalismo seria uma forma de “reduzir” essa violencia. Veja bem, esse é um argumento muito parecido com a máxima Hobbesiana “O homem é o lobo do homem”, usada para justificar nesse caso a existencia de um estado. Acredito ser possível, a partir da sua afirmação, crer que nesse caso o estado é algo inevitável e inclusive desejável, afinal se a natureza humana é violenta e necessita ser controlada, se faz necessário uma força externa com poderes absolutos sobre todos os seres humanos e certamente que o mercado não é suficiente para essa tarefa, já que tem por base a segurança da propriedade privada e dos contratos (por exemplo, a argumentação clássica da Somália).
Me permita divergir aqui, não acredito em uma natureza humana. De um ponto de vista antropológico, existiram diversas formas de organização social na história da humanidade, cada uma respondendo as determinações específicas do seu próprio meio material. E elas não existirem hoje não significa que as formas sociais dominantes são “melhores” de forma alguma, já que “melhor” é absurdamente relativo e temos que levar em conta as particularidades históricas. Por isso, parafraseio o Coringa em “The Dark Knight” – As pessoas são tão boas quanto a situação as permite.
Dessa forma, a organização social e o que você chama de “natureza humana”, são coisas que devem ser vistas sob a luz da compreensão contextualizada das condições materiais específicas que as criaram e que as mantêm. É por isso que dizemos que é impossível compreender o capitalismo sem compreendermos o estado como uma arma naquilo que chamam-mos guerra de classes. Ou seja, o estado como ferramenta para manter “os de cima, encima e os de baixo, embaixo”.
Sobre o problema do “consenso prévio”, calculo econômico e etc., vou reduzí-los a um simples de motivação. O que motiva as pessoas a agirem da forma que agem. O que as motiva a produzir pão, por exemplo, se não a fome. Ora somos seres dotados de empatia. Se sentimos fome nos importamos com a fome dos nossos próximos, nos comovemos ao ver alguém em situação que não gostaríamos de estar.
Karl Polanyi, em sua obra “A grande transformação” parte de uma série de estudos de sociedades pré-capitalistas e constata que, na época, a fome era um fenomeno social, ou seja, a escassez era um fato para todos através de uma má colheita, um desastre natural e etc. Com o surgimento do capitalismo, ela passa a ser um fenomeno social, ou seja, já somos capazes tecnicamente de produzir o suficiente para saciar a todos, no entanto nos impomos condições sociais específicas que simulam a escassez natural. Na sociedade capitalista, é o homem quem cria a fome.
Sobre as questões específicas, deixo para que os próprios autores respondam.
Para encerrar, deixo a citação de Marx escolhida por Fredy Perlman para servir de abertura ao texto “A Reprodução da vida Cotidiana“:

“O objetivo dessa comunidade e desses indivíduos é a reprodução dos específicos meios de produção e dos indivíduos com suas características particulares, com as relações e estruturas sociais que os determinam e que eles sustentam ativamente. Todos eles te dizem que em princípio, ou seja, consideradas como idéias abstratas, competição, monopólio, etc., são as únicas bases de vida, mas na prática eles deixam muito a desejar. Todos eles querem a competição sem os efeitos letais da competição. Todos eles querem o impossível: as condições burguesas de existência sem as necessárias conseqüências destas condições. Nenhum deles compreende que a forma burguesa de produção é histórica e transitória, exatamente como a forma feudal o foi. Esse erro decorre do fato de que o homem burguês é para eles a única base possível de cada sociedade; eles não são capazes de imaginar uma sociedade na qual os homens tenham deixado de ser burgueses.”
Karl Marx

duas_carasDuas-Caras
Batman, a meu ver o significado do termo “bem estar” no seu texto tem um significado claramente orwelliano, já que se refere a uma outra coisa que não “bem estar” no sentido coloquial.Seria como eu imprimir papeizinhos escritos “felicidade”, distribuir as pessoas e anunciar que eu estou “distribuindo ‘felicidade'”.

Para vermos a limitação de seu ponto de vista quanto a ideia de que a propriedade privada e o sistema de preços, combinados, “agregam bem estar” podemos considerar a situação de uma ilha onde quase todas riquezas, entre elas ricas fontes de água potável, são possuídas por apenas dois indivíduos enquanto os demais vivem de forma miserável em terras pouco produtivas, que sofrem de profunda seca.Como, nesse exemplo, a população pobre não seria apta para vender sua mão de obra, e nem os bens que produz nas suas terras, significa que não poderia comprar nem oferecer “um preço” pelos bens de que precisam.Logo, os recursos, como a água de que precisam, não seriam “alocados” em função daqueles que PRECISAM dela (maximizando seu “bem estar” no sentido COLOQUIAL da palavra), mas para maximizar o “bem estar” de uma relação com o meio artificial e imposta.
Como exemplo disso, nessa ilha fictícia, um indivíduo para sobreviver, poderia perfeitamente deixar de se dedicar a plantar e desenvolver técnicas que aumentam a produtividade, permitindo acabar com o problema da fome da população, para no lugar “alocar seus recursos eficientemente” (no caso, obtendo um salário com isso) trabalhando como bobo da corte para os donos da ilha.

De fato, os recursos não são alocados no capitalismo de forma a produzir resultados que atendam a necessidades dos indivíduos, mas àqueles que levem a reprodução das relações sociais pré-estabelecidas.Como expliquei anteriormente, o capital é “investido” em recursos que possam gerar mais capital.Um exemplo claro disso diz a respeito nos incentivos das indústrias farmacêuticas, que vão “alocar recursos” de forma a combater a calvície de pessoas ricas, mas não para desenvolver vacinas de epidemias que afetam milhões.

Por outro lado, por detrás do processo de compra e venda, e de se definir um preço, há sempre um julgamento qualitativo por aqueles responsáveis por efetuar a compra.Ou seja, eu não “descubro” que um refrigerante “é bom” por causa do PREÇO dele, mas pelas propriedades que exibe e o julgamento que efetuo a esse respeito.Logo, do mesmo como consigo avaliar uma qualidade da mercadoria diretamente, poderia julgar qualitativamente o processo em que foi produzida, num conjunto, através da colaboração de outras pessoas para se chegar a uma conclusão.Longe, assim, do fim do sistema de preços “atrapalhar a alocação” ela de fato seria excelente, já que me levaria enquanto consumidor de algo a acompanhar o processo com que é realizado.Ou poderia delegar isso à opinião de outras pessoas, a quem eu consultaria.Por exemplo, pelo “sistema de preços” uma camiseta identica a outra e por metade do preço da segunda, é “melhor” que esta última, pouco importanto se foi feita atirando gasolina no oceano ou usando mão de obra superexplorada ou devastando os recursos do ambiente num ritmo muito mais acelerado (uma vez que o foguete suba, não importa onde ele cai, esse não é meu departamento, diz Werner van Braun).

Quando nos focamos simplesmente nos inputs e outputs exigidos no sistema de preços, estamos puramente destruindo essas informações fundamentais e resumindo o ato de empresas a um simples algoritmo que recebe uma porção de capital e o transforma numa quantidade maior de capital, na frente de uma tela do computador, chamando esse processo de “maximização da eficiência”, processo que pode ser comparado, por analogia, a atividade de genes de se multiplicarem e propagarem em seu meio.Trata-se de um processo perigoso e insano, cujas consequências vemos na forma de epidemias em massa de fome, o aquecimento global, assim como as guerras motivadas com fins econômicos.Tudo isso em nome do “Bem Estar”.

O adolescente que deixa de escolher de maneira consciente entre “trabalhar ou ouvir música” passará simplesmente a abdicar do controle de sua vida, e do destino de si mesmo e dos demais, para realizar um processo automático de gerar valor,na forma de mercadorias e atividades cujas interações com o mundo ele não é chamado para participar ou entender, e cuja propriedade deve ser simplesmente ser “vendável.Ora, o que é que se demanda e é produzido para se vender?É uma decisão daqueles que dispõem da capacidade de ditar ordens, o que na sociedade capitalista é realizada por burocratas dentro de uma empresa, que desejam que esta se mantenha “competitiva” no mercado.A assim chamada, a la Humpty Dumpty, “alocação eficiente” da sua atividade não é nada mais do que aquela que reproduz e amplica o poder conferido de maneira artificial a aribtrário à classe capitalista.Terei que, repetir, mais uma vez, o óbvio, que é o fato de que tais instituições correspondem a poderes inerentes aos seres humanso que são separados e sequestrados de seu controle e que passam a pertencer a tais organizações e serem usadas para perpetuá-las.Logo, o critério de “eficiência” é pura e simplesmente a maneira como a atividade humana é instrumentalizada para tal fim.

De fato, parece pouco convincente, para não dizer bizarro, falar em “alocação eficiente” e “agregação de bem estar” atividades que envolvem, entre outras coisas, confeccionar bombas para “abrir novos mercados” ou desenvolver tecnologias que tornam o próprio indivíduo obsoleto e desnecessário no processo de produção.Para citar mais um exemplo da “eficiência” da alocação de recursos por um sistema de preços, alguém que tivesse o poder de imprimir uma moeda para si próprio, a falsificando, “sinalizaria”, por exemplo, ao mercado, a “enorme importância” de ele produzir o que queira, por exemplo, pirâmides.Estará comunicando, ao fantástico Mercado, que a necessidade humana mais fundamental é aquela ditada pelos caprichos daquele que dispõe de uma pilha de papéis no bolso e daquele que ao se dizer “dono” da propriedade privada se reserva no direito de decidir a maneira como a atividade de diferentes seres humanos com seu meio deve ser cordenada.De novo, deveria ser aparente para qualquer um, que não há a mínima relação no capitalismo a colocar a atividade humana de forma a atender NECESSIDADES humanas, mas simplesmente em recursos que permitam a divisão entre aqueles que tem capital e aqueles que precisam alienar sua atividade por um salário se perpetuar.

Sobre minha ideia de acordo prévio, acredito que foi mal interpretada: ela não se refere a colocar a humanidade inteira num telefone para debater se eu devo tomar café com leite ou sem leite, mas criar meios em que caso minha ação interfira na ação de outra pessoa, se estabeleça um consenso, e apenas entre os indivíduos envolvidos, e não TODOS.

poisonPoison Ivy
E os seres não humanos envolvidos, entram no acordo ou não?

 

 

Ra's_Al_Ghul_(Batman)Ra’s Al Ghul 
Batman os argumentos neo-liberais contra o bolchevismo de fato são FANTÁSTICOS. O problema e quando vocês demostram os claros defeitos do bolchevismo e acham que estão ‘refutando o comunismo’, comunismo é uma coisa, bolchevismo é outra. Quanto ao “problema do calculo econômico” isso é uma falácia, ele não existe, pois para que tal problema existe é necessária aceitar a existência de um sistema monetário ou seja a existência do dinheiro, do credito.

batmanBatman
Eu acredito que não fui suficientemente claro ao descrever o porque a alocação de recursos é impossível sem um sistemas de preços. Vou tentar de outras formas.
Imaginem a seguinte situação… uma pessoa chega em uma feira, voluntária e gratuita, onde estão sendo distribuídos os alimentos para alimentar um vilarejo qualquer. Uma pessoa precisa decidir, então, se quer tomar um copo de água da torneira ou se deve beber um suco de laranja. Ele sabe que na vila dele, não existem laranjais, e para que o suco que ele tem a possibilidade de tomar, foi preciso trazer laranjas até o local que ele está, estocá-las porque não está na estação da colheita, cortá-la, expremê-la, enquanto ele também sabe que a água foi simplesmente tirada do rio que corre ao lado, limpa.
Ele prefere suco de laranja à água. O gosto, o valor nutricional, até o cheiro. Ele prefere tomar suco de laranja. Agora nesta situação, ele deve decidir se o seu “bem estar” -> tomar o suco de laranjas é maior ou menor que o esforço de tantos homens para trazer o suco até ele, como ele faz? É obviamente uma questão subjetiva, e ele ainda terá que balancear de acordo com sua própria visão de contribuição da sociedade… ter passado o dia compondo uma música é um trabalho suficiente para justificar aquele pequeno prazer que outros lhe entregaram? É impossível de dizer! Mesmo que ele queira, ele não tem nenhuma condição de responder isso de forma objetiva.
Com um sistema de preços, essa decisão pode ser feita. A água custa 1 e o suco 20. Você, como agente, agora consegue decidir se vale a pena tomar a água ou o suco, porque você tem uma proxy, ou seja, uma aproximação do valor do trabalho consumido para trazer aquele bem até você. É essa a decisão que dizemos que é inviável sem um sistema de preços.
Não estou nem perto de completar meu raciocínio, mas o preço não é o único fator de decisão. Você vai escolher, de forma mais ou menos informada, se você quer consumir um suco cuja origem você desconhece ou um suco que tenha alguma garantia que não usou mão-de-obra escrava. No fim, a escolha continua ser pessoal e acreditar que o preço é o critério de decisão de compra é ignorar toda a indústria de comidas orgânicas, para ficar em um exemplo comum. As pessoas pagam mais quando sabem da origem de um produto!
Depois eu volto para comentar outros pontos. Só vou lembrá-los que construir uma bomba para abrir mercado é obviamente uma violação de direitos, uma agressão, e não conheço libertário, ancap ou qualquer outra filosofia que suporte isso.

baneBane
Batman, eu pretendo esperar pelo final da sua argumentação antes de tecer minha crítica, mas seu último comentário não possuí nenhum argumento, pelo contrário, fornece as provas cabais que afirmam a superioridade teórico prático do AnCom, como a inviabilidade do “an”cap, então… Como vc disse que nao esta nem perto do completar seu raciocínio, gostaria que explicasse em termos diretos o motivo da impossível prática de um sistema de produção sem cálculo econômico.

Ra's_Al_Ghul_(Batman)Ra’s Al Ghul
Batman acho que isso tem haver com a teoria do valor. Eu sinceramente perco a paciência sempre que tento entender esse suposto problema. Porque tal ‘problema’ exige que eu aceite as definições do conceito de ‘capital’ e ‘valor’ ditados pelos economistas burgueses, ou seja o tal ‘problema’ só existirá se eu aceitar os pressupostos, por exemplo, vocês fala na ‘necessidade’ de fazem um tal “calculo” econômico, o problema é que esse ‘calculo’ exige racionalidade, porem não existe racionalidade nas decisões humanas, não somos previsíveis e unica lei máxima da economia é a necessidade, mas a necessidade é algo muito complexo, a todo estantes as pessoas perdem tempo e comprometimento fazendo coisas que mais tarde se arrependem. A necessidade que leva as pessoas a tomarem decisões não pode ser ‘calculadas’ matematicamente em seus detalhes de forma racional.
Calculo Economico na Comunidade

batmanBatman
Ra’s Al Ghul , vou ler o artigo inteiro antes de continuar a resposta, mas passando os olhos (introdução, conclusão e uma olhadela no meio) o artigo parece concordar com tudo o que eu digo, sem a principio contradizer nada do exposto por mim.

Bane, o raciocínio exigirá algum tempo para colocar em palavras aqui, mas você consegue entender que é muito difícil um ser humano dotado de racionalidade optar por uma solução boa se não tem informação suficiente para a tomada de decisão?

duas_carasDuas-Caras
Batman, esse “preço” não reflete algo que você parece ver como o “voto democrático das massas através da Oferta e Demanda”, mas simplesmente os caprichos daqueles que dispõem de capital, que, como afirmei antes, nada mais é que uma instituição artificial imposta pela violência.Poderia ocorrer, perfeitamente, de quase todos numa população abominarem a destruição de um bosque repleto de árvores e animais, e, mesmo assim, ele ser destruído, porque seu “dono” (aquele que impôs o controle sobre ele com base na força estatal) assim exige.Simplesmente o “voto” deles não contam.Ao mesmo tempo, esse “poder do capital” de “votar” naquilo que é desejável, ou seja, oferecer uma “liberdade positiva” sobre o meio, exige seu reverso: para cada pessoa que adquire a liberdade positiva de moldar seu meio de acordo com seu bel prazer sacando o dinheiro do bolso (sim, igual alguém que “saca” uma arma, mas numa forma menos transparente), outra perda a liberdade negativa de transformar seu meio de forma espontânea.Ou seja, já implica uma relação social onde as pessoas “trocam” o controle sobre a própria atividade por um “salário”.Ao falar da “eficácia do sistema de preços”, corremos o risco de cometer a falácia de generalizar tal modelo como “necessário” em TODAS formas de sociedade apenas porque ele é necessário numa sociedade ESPECÍFICA.
De fato, esse exemplo de “escolha racional” chega a ser até moralmente repugnante quando sabemos perfeitamente que ele autoriza a, digamos, o dono de uma multinacional, a “escolher” o suco de laranja, levando a uma transformação radical de todo o mundo ao redor não em função daquilo que se mostra mais desejável aos diferentes indivíduos envolvidos, mas as “formas/funções” que são forçados a se modelar como uma forma de sobreviverem, já que o controle de sua atividade social não está embutida neles mesmos, a ser exercida livremente, mas é justamente aquilo que está “retido” e “armazenado” (o valor) no poder misterioso que o dinheiro tem de “comprar” mão de obra.Ele não é nada mais do que um “título” conferindo a seu dono o controle sobre a atividade alheia.De fato, se os donos de uma senzala”libertassem” os escravos, mas mantivessem o controle do ambiente a seu redor como algo que monopolizam, se o recurso que os ex-escravos precisam para continuarem vivos são retidos em suas mãos, o novo “ser livre” (o escravo por contrato) e “empreendedor” terá que se sujeitar e se curvar ao seu novo “empregador” com a mesma submissão e boa vontade que seu velho antecessor.
E esse processo onde a liberdade humana de transformar o meio é tornada mercadoria cria um processo automático, efetuada diariamente por trabalhadores e capitalistas, em que sua própria atividade criativa alienada, poder de transformar seu meio, é aplicado em meios que permitam gerar “mais capital”, ou seja, reproduzir e expandir a atividade criativa alienada, o que está bem longe de ser a “forma ótima” de atender as “necessidades humanas”.

batmanBatman
Se eu não completei meu pensamento do por que o cálculo econômico é a única forma de viabilizar a sociedade moderna, vou tentar exemplificar através de uma indústria que eu tenho trabalhado há cinco anos, que começo a conhecer um pouco, a agroindústria. E eu vou tentar explicar as razões pelas quais existem alimentos suficientes para alimentar o mundo todo, e porque não existiriam os alimentos caso não existisse um sistema de preços.
Eu sou especialista em gestão de projetos, e trabalho apenas com o desenvolvimento de novos tratores. Você deve saber qual a razão para desenvolver novos tratores, mas estou falando de tratores muitas vezes redesenhados do zero, usando tecnologias cada vez mais modernas e complexas. Muitos vão dizer que os tratores que existem hoje já são bons, mas nós estamos sempre colocando um trabalho gigantesco no seu aperfeiçoamento. Seja reduzindo o consumo de Diesel, tornando sua manutenção mais fácil, agregando itens como pilotos automáticos para a agricultura de precisão, ou mesmo melhorando o ar-condicionado da cabine do operador.
Com as modernas técnicas de agricultura, conseguimos muitas vezes ter três safras por ano quando antigamente tínhamos uma. Com o piloto automático não tiramos o trabalho do operador do trator, mas entregamos uma ferramenta onde ele consegue garantir que sempre que o trator passar por determinada faixa de terra, o pneu estará exatamente em cima do mesmo lugar que passou anteriormente, danificando com seu peso faixas mínimas de terra e garantido que as rodas não esmaguem nenhuma planta (nem compactem o solo passando perto, que o torna menos fértil). Essas máquinas conseguem hoje aplicar mais adubo onde ele é mais necessário, mais defensivos onde eles são necessários, mais sementes, levando em conta a variação do solo ao longo da plantação. Essa diferença de produtividade de máquinas como as que eu ajudo a criar é o que faz com que as predições Malthusianas não tenham se confirmado, porque conseguimos mais e mais produção com emprego da tecnologia.
Ah, mas o trator está aí, agora é só uma questão de usar os bens de capital já criados, vocês argumentariam.
Pois bem, uma montadora de tratores tem de desenvolver e comprar cerca de 4 mil peças diferentes para construir um trator moderno. Quando falo em quatro mil peças, considero o motor apenas uma, mesmo que dentro do motor existam pistões, bielas, correntes….. outra “peça” é todo o conjunto do eixo dianteiro, com suspensão, peças de lubrificação, inúmeras peças cuja função eu desconheço, mas que foi pensada e colocada por algum engenheiro com alguma função específica. Portanto, nem mesmo eu saberia ao certo quantas peças existem de fato no trator cujo desenvolvimento eu pessoalmente gerencio. Estimo que existam 15 mil ou 20 mil no total, mas provavelmente nunca saberei.
Cada uma dessas 4 mil peças que estão sob minha “responsabilidade” deve ser desenhada por engenheiro, que especifica suas características. Eu, embora não tenha a função no dia-a-dia, também sou engenheiro, então entendo alguns cálculos que são feitos, como por exemplo: Qual o material adequado para uma arruela? Existem alguns materiais que são mais raros, como por exemplo o aço inoxidável, que eu conseguiria garantir uma vida muito longa se usasse em determinada arruela. Outros não são tão bons, mas são mais abundantes na natureza. Posso prever a aplicação de tratamento superficial específico (por exemplo galvanização), posso usar tratamento térmico que consumirá combustível para aquecer/resfriar, posso fazer uma arruela maior ou menor, mais espessa ou mais delgada. Posso também exigir que a arruela tenha exatamente a dimensão que eu preciso ou que tenha uma tolerância dimensional maior, que permitiria que ela fosse feita por processos menos exigentes. Posso pintar para proteger da oxidação e evitar que enferruje. Quanto mais espessa, normalmente mais pesada a arruela, e isso permite que eu tenha menos peso nos tratores, que normalmente carregam toneladas de aço para ficarem mais pesados e conseguirem puxar melhor implementos pesados… adianta eu economizar espessura em uma arruela se depois eu tenho que colocar peso pendurado na frente de um trator? Agora eu pergunto, que critérios eu levo para tomar a decisão de qual arruela especificar?
Como espero ter ficado claro, a decisão técnica de qual a simples arruela escolher é impossível se eu não tiver uma função de custo do seu processo produtivo e transporte até o ponto de montagem. E mesmo para um engenheiro experiente, é impossível conhecer todos os processos necessários para se fazer chegar uma arruela até a fábrica. Até aí, não seria algo impossível… posso fazer uma tabela com os custos, mesmo não-monetários, de produção de determinados aços, de determinados processos produtivos, e tentar criar um produto relativamente bom. Algo do tipo… aço ABC precisa de 5 kcalorias para o tratamento térmico, mais N horas de uma pessoa colocando no forno e tirando, mais X, Y, Z recursos.
Até aí a história parece apenas uma dificuldade maior técnica. Mas não é, porque eu preciso somar a dificuldade desses elementos diferentes em algum critério que me permita a escolha. É melhor ter que consumir 500g de gasolina para aquecer a peça ou usar um operador de forno por mais 10 minutos? Como eu posso somar essas quantidades para tomar uma decisão? Enfim, Não posso. Mas eu posso saber que eu tenho que escolher entre uma arruela que custa R$ 0,01 e outra que custa R$ 0,58, sei que a que custa menos deve ter um processo produtivo mais simplificado, e portanto, deve ser preferível de colocar no meu trator. Se algum dia o produtor da arruela que custa R$ 0,01 tiver algum problema de produção (como uma greve, uma redução na oferta de matéria-prima) ou ainda alguma melhoria no seu processo, ele deve renegociar os preços. Se passar de R$ 0,58, sei que necessitarei trocar de arruela.
Além disso, com a função custo eu posso fazer o cálculo que não é simples, mas é impossível de fazer sem conhecer o custo: Adianta fazer um motor de ouro que consuma 10% menos Diesel? Enfim, sem conhecer os custos, eu não consigo melhorar um produto, porque não tenho, como engenheiro técnico, condições de definir o que é um produto melhor. Sem um sistema de preços, ninguém, nenhuma sociedade jamais teria conseguido criar ferramentas nesse nível de complexidade.
É por isso que todas as experiências sem preços operam a nível de subsistência, em vilarejos pequenos onde as pessoas ainda conseguem conhecer a função umas das outras, ou são falhas terríveis, causando a fome e morte de milhões de pessoas como no caso da já citada por mim grande fome chinesa. Falar em liberdade de um indivíduo onde ele é obrigado a trabalhar na roça com ferramentas rudimentares para garantir seu alimento é um absurdo.
A genialidade de Mises, quando dizemos que ele refutou Marx, é justamente ter provado isso. Ele provou, aprioristicamente, ou seja, sem necessidade de confirmação prática, que se existir uma sociedade capaz de coordenar através da vontade de diversos entes racionais dotados de vontade, ela terá um sistema de preços. Em outras palavras, se um dia uma civilização extra-terrestre chegar na terra, uma certeza nós teremos: Existe um sistema de preços/custos naquela civilização. A única alternativa a isso é se a civilização fosse apenas um único indivíduo, onisciente, que com certeza não é o caso de nada que existe na terra.
Isso tudo não diz absolutamente nada sobre a ética libertária, que foi desenvolvida posteriormente por Rothbard. Provar cientificamente que um sistema sem custos é impossível, não quer dizer que qualquer sistema com custos e preços seja justo. Se vocês quiserem, posso desenvolver mais esse argumento em um post posterior, mas podemos introduzir injustiças e imperfeições no sistema de vários modos, sendo impostos, taxas, restrições ao livre comércio uma forma importante, e normalmente essas aberrações causadas pelo Estado pioram a vida dos indivíduos. Esta noção foi o necessário para o desenvolvimento do “anarcocapitalismo”.

jokerPalhaço
Batman, bastante interessante a sua descrição do processo de produção e da complexidade envolvendo a tecnologia de tratores. No entanto acho problemática a sua presunção de que é o sistema de preços que possibilita esse tipo de processo complexo, pondo em perspectiva com a sua ideologia.
Por exemplo, é costumeiro ver anarcocapitalistas argumentando que o sistema atual não é um livre mercado genuíno, e o sistema de preços é fundamentalmente violado pelas intervenções políticas do estado. Ora, se o sistema de preços atual está quebrado, como ele pode funcionar ao ponto de produzir esses sistemas complexos? Afirmo que essa premissa é falsa. Em larga escala, a pesquisa de base tem estado globalmente a cargo do estado ou das grandes corporações, viciadas em externalização radical de custos como qualquer economista adepto da escola austríaca vai te mostrar. Os smartphones, por exemplo, contam com o uso de diversas dessas tecnologias desenvolvidas em universidades estatais e depois apropriadas por empresas privadas, sem falar na infraestrutura criada pelo movimento software livre, que você com certeza conhece muito bem. Em todos esses casos, a inovação tecnológica não se deu no seio da competição de livre mercado como preconizam seus defensores, mas por administradores do capital sentados em cadeiras burocráticas estatais. Como disse em outro comentário, a defesa ou a critica só é efetiva se pautada na história e na materialidade dos fatos, e não em um punhado de conceitos idealizados que não existe se não na mente de quem as escreve.
A propósito, não existe prova apriori que não se submete a confirmação prática. Volto a citar Marx em sua segunda tese contra Feuerbach:

“A questão se uma verdade objetiva pode ser atribuída ao pensamento humano não é teórica, mas prática. É na prática que o homem deve demonstrar a verdade, ou seja, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou irrealidade do pensamento, quando isolada da prática, é uma questão puramente escolástica.”” [TF]

Sobre a tese da refutação de Mises à Marx, esse texto esclarece a situação

batmanBatman
Ninguém irá discordar quando alguém afirmar que o sistema atual apresenta distorções. Impostos são uma forma de distorcer o custo / preço de peças, forçando os agentes econômicos (vulgo todo mundo) a tomar decisões não-ótimas. Por exemplo, se o Diesel é subsidiado, um fabricante de tratores poderá produzir um motor ciclo Diesel quando o mais economicamente viável em um sistema de livre mercado real seria um a álcool ou hidrogênio.
Enfim, distorções existem, e causam sempre uma diminuição na eficiência do sistema, pois distorce a informação que os projetistas usam.
Você fala em software livre e software criado pelo governo. Quanto ao governo, bom, somos tão anarquistas quanto qualquer um: óbvio que será prejudicial por estar usando recursos expropriados de seus legítimos donos para financiar um desenvolvimento de software que não é desejável.
Mas o software livre é um caso diferente: Pessoas colaborando livremente e criando softwares. Agora, você que é programador, sabe muito bem:se eu tenho um algoritmo superior a outro, significa que meu custo computacional é menor em um que em outro. No final do dia, você só consegue melhorar um algoritmo porque processamento de dados é homogêneo: Mesmo havendo diferenças entre o tipo de cálculo sequencial de uma CPU ou paralelo de uma GPU, temos a noção de preços e custos (computacionais) por toda a informática, e, sem ela, não conseguiríamos evoluir.
Sobre o comentário de Marx: O bom de ter nascido e desenvolvido suas obras depois é dar a chance de entender e explorar as limitações do conhecimento desenvolvido posteriormente. Nenhuma citação de Marx poderia refutar Mises, pois o mesmo criou seu trabalho já conhecendo as limitações de Marx, e não o contrário.
Se você citar um Marxista contemporâneo que entendeu Mises refutando, irei realmente prestar atenção.
Bom, vou ler o artigo indicado (pela segunda vez, tinha passado os olhos e perdido o link da primeira) e talvez me convença do contrário, e desdigo tudo que disse, se preciso for.
Vou ler de novo, com mais calma o artigo. Mas ele parte da premissa errada:
“Muito se fala por aí que a escola austríaca refutou Marx. O argumento é simples, Marx, em O Capital (1863), postulou a sua teoria econômica baseada no valor-trabalho, a mesma de Smith (1776) e Ricardo (1817), só que com algumas diferenças, entre elas está o trabalho social médio e o valor social da mercadoria. Para esses autores, de maneiras diferente, Valor = Trabalho, sendo que, para o marxismo, Valor = Trabalho social médio”
Não é essa a refutação que eu me referia! Eu nunca me aprofundei no marxismo porque, como já disse antes, meu próprio tempo é escasso e algo que valorizo mais que a necessidade de entender uma teoria refutada. A refutação, conforme o livro do Hoppe que acabo de ler, está no fato de que é impossível criar uma sociedade medianamente complexa sem um sistema de preços / custos, o que impossibilita o planejamento central.
E esse argumento ele não abordou nem de passagem.
E ele começa misturando austríacos com neoclássicos… bá, misturada complicada pra caramba de levar a sério. Mas *prometo* vou ler de novo e tentar entender algum sentido do artigo, como se a explicação acima refutasse alguma coisa.

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Todos podemos ser ricos

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Abundância e escassez não são somente medidas de recursos existentes para a satisfação das nossas necessidades, são formas diferentes de relacionar os próprios recursos e as próprias necessidades em si. E isso acaba refletindo na forma como enxergamos o mundo.

Recursos abundantes excedem a necessidade por eles; eles podem até multiplicar quando utilizados. A maior parte das coisas que diferenciam “viver” de “sobreviver”, tais como amor, amizade, confiança, imaginação, coragem, aventura, experiências, estão disponíveis em abundância: quanto mais se toma parte neles, mais eles estão disponíveis para você e para todos os outros ao seu redor.

Por outro lado, recursos escassos existem em quantidade limitada, podendo não serem suficientes para as necessidades de todos. A economia de escassez é guiada pelas considerações feitas a partir das suas condições iniciais: nela, as leis de oferta e demanda são impostas, primeiramente por uma carência, seja ela real ou forjada, de bens necessários. Pode parecer que escassez é um fato inexorável da vida, mas não é tão simples. Nem toda escassez é imposta por condições específicas, e com frequência a impomos a nós mesmos pela forma como estimamos e aplicamos nossos recursos. Na nossa sociedade tecnologicamente avançada e pós-industrial, ferramentas e comodidades sem precedentes são abundantes, no entanto a maioria de nós sente que há uma carência de coisas das quais necessitamos. Isso não deveria causar espanto algum, já que os sistemas econômicos e sociais vigentes dependem que não exista o suficiente para todos para continuar existindo. A escassez e a privação são impostas, pintando-se a vida como uma corrida desenfreada por uma riqueza limitada e status social.

luxury-for-allDizem que os únicos homens livres são o mendigo e o rei. Eles de fato podem declarar-se senhores de tudo aquilo que que podem mensurar, por razões completamente diferentes: o primeiro possui o mundo inteiro por não se apropriar de nada, enquanto o segundo possui apenas aquilo que conquista. Aqui podemos perceber os paradigmas de escassez e abundância em atuação enquanto filosofias de vida. Assim como o catador, que prospera no excedente da sua sociedade, vê oportunidades e aventuras aonde um executivo só vê miséria e fome; o ídolo dos filmes ou da música precisa de milhões de fãs anônimos que os adorem (de forma que a própria individualidade é submetida a escassez em uma sociedade de espectadores), enquanto a mulher em um grupo de apoio mútuo geralmente alcança autoconfiança e felicidade quando os outros membros ao seu redor também o fazem.

Já houveram tempos nos quais os seres humanos tiveram uma relação de confiança com a Terra, vendo nela uma fonte de abundância: nós comíamos o fruto que brotava gratuitamente ao nosso redor, naturalmente embalado em uma embalagem biodegradável e que continha sementes das quais mais árvores frutíferas nasceriam. Hoje comemos guloseimas, compradas com o conteúdo criativo de nossas vidas, que possuem um estoque estritamente limitado e quando jogamos fora a sua embalagem, fabricados de plástico e substâncias químicas estranhas aos ecossistemas, que se adiciona na crescente pilha de lixo que torna cada vez mais escasso o fruto das árvores. Humanos de outras eras viviam em condições de banquete ou fome, festejando quando seus copos transbordavam e lutando juntos quando os tempos eram mais difíceis. Para nós, fome e banquete são experiências sociais. A nossa sociedade tecnológica a possibilita uma produção de alimentos sem precedentes e mesmo assim convivemos diariamente com a miséria e a fome.

be_realistic_demand_the_impossibleAbundância e escassez são, acima de tudo, manifestações de diferentes perspectivas da vida: ingenuidade ou inércia, confiança ou medo. Se reestruturarmos nossos valores e presunções a cerca do que o cosmos nos oferece, podemos entrar em uma nova era de abundância.

  • Quanto mais você reconhece as oportunidades na sua vida, mais você tira vantagem delas.
  • Quanto mais você reconhece os tesouros oferecidos pela vida, mais você tem confiança para os oferecê-los aos seus

Texto extraído, traduzido e adaptado de Crimethinc

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Subverta e Transforme

2bf993687cc213f46e50[1]Você notou que exortações para que você se dedique a algo são sempre seguidas de sugestões? Seguidores de doutrinas procuram espaços para demarcar territórios em você, vendedores procuram por agarras em você para te manejar por ai… de profetas até anunciantes, de pornógrafos até radicais, todos te exortam a “seguir seus desejos”, mas a questão que fica é: Quais? Os “reais”? Quem decide que desejos são esses?

Isso só deixa claro que existe uma verdadeira guerra pela sua alma. E aqueles sempre  citados desejos são sempre construídos – eles mudam, eles dependem de fatores externos, como cultura, contexto histórico e social. Nós “gostamos” de fast-food porque precisamos correr para o trabalho ou para a cama, para trabalhar no outro dia. Ou então porque a comida processada do mercado não tem um gosto muito diferente. Nós “temos que” checar nossos emails, nosso Facebook, nosso Whatsapp, porque a dissolução da comunidade nos afastou de nossos amigos e parentes, porque nossos chefes preferem não “perder tempo” nos falando. Nós “queremos” trabalhar porque ninguém na sociedade vai cuidar ou se importar com aqueles que não o fazem, porque é difícil imaginar coisas mais prazerosas para fazer de nosso tempo quando tudo ao nosso redor é desenhado para o consumo e comércio. Cada desejo que temos, cada conceito que formulamos, é formado da linguagem e da civilização que nos criou.

Isso signfica que teriamos desejos diferentes em um mundo diferente? Sim, mas não porque seriamos livres para agirmos “de acordo com a nossa natureza”. Sequer existe tal coisa. Além da sua vida, não existe um “verdadeiro você”. Você é precisamente o que você pensa, faz e sente. E essa é tragédia da vida do homem que a desperdiça falando no celular, indo a reuniões e apertando o controle remoto: não é que ele negue seus próprios sonhos, necessariamente, mas que ele os faz atender a realidade, ao invés de fazer o exato oposto. O contador cheio de pena dos adolescentes que fogem para ficar juntos pode ser que se sinta de fato feliz – mas é uma felicidade diferente dos adolescentes em fuga.

Se nossos desejos são construtos, se nós somos de fato produtos de nosso ambiente, então nossa liberdade é medida em quanto controle temos desse ambiente. Não tem sentido dizer que uma mulher é livre para se sentir como quiser a respeito de seu corpo enquanto ela cresce cercada por anúncios de dietas e posteres de modelos semi-anoréxicas. Não faz sentido dizer que um homem é livre quando tudo que ele precisa para conseguir comida, abrigo, sucesso e companhia já está estabelecido pela sociedade e tudo o que resta é escolher uma entre as opções estabelecidas (burocrata ou técnico? burgues ou boêmio? coxinha ou petralha?). Temos que fazer a nossa liberdade abrindo rasgos na cortina da realidade, forjando novas realidades que irão, por sua vez, nos moldar. Colocar-se em novas situações constantemente é a única forma de se assegurar de não tomar decisões coberto pela inercia do habito, do costume, da lei, do preconceito – e é você quem deve criar essas situações. Liberdade só existe no momento da revolução.Renee_clerkin_paleo_diet

E esse momento não é tão raro quanto você pensa. Mudança, mudança revolucionária, acontece constantemente e em todo lugar – e todos tem um papel nela, conscientemente ou não. “Ser radical é simplesmente encarar a realidade”, nas palavras do velho expatriado. A questão é simplesmente se você toma seu quinhão de responsabilidade nessa mudança ou não, agindo deliberadamente com noção do seu próprio poder.

Se podemos criar o mundo que quisermos, então talvez seja verdade que possamos nos adaptar a qualquer mundo também. Mas moldá-lo é infinitamente preferivel.Escolher entre gastar a sua vida em reação e adaptação, correndo para alcançar qualquer coisa que estiver acontecendo significa estar constantemente a mercê de tudo. Não é uma forma de buscar seus sonhos, sejam eles quais forem.

Então esqueça a tal “revolução” que irá acontecer um dia. A melhor razão para ser revolucionário é simplesmente o fato de que é a melhor forma de se viver. Te oferece a chance de levar a vida que importa, te mantêm consciente do ciclo de conecções que nos ligam com o todo e vice versa, entre o individuo e a comunidade, entre um e o todo. Nenhuma instituição pode te oferecer liberdade, mas você pode experenciar ela desafiando e reinventando as insttuições. Quando as crianças na escola inventam suas próprias palavras para os sons que lhes são ensinados, quando pessoas aparecem aos milhares para interferir em reuniões fechadas, é isso que elas estão fazendo: redescobrindo a auto-determinação, redescobrindo que o poder pertence a quem o exerce.

Grite bem alto: A cultura nos pertence! Nós podemos fazer música, mitologia, ciência, tecnologia, tradição, psicologia, literatura, história, ética, política. Mas até fazermos, estamos presos comprando filmes produzidos em massa e ouvindo música de mercenários da indústria, sentados e sem rosto em arenas de rock e em eventos esportivos, lutando
contra invenções e programas de outras pessoas, ouvindo explicações que fazem menos sentido que a bruxaria fazia para nossos ancestrais, envergonhadamente aceitando os julgamentos de sacerdotes, repreendendo a nós mesmos por não alcançarmos os padrões exigidos pelas escolas e nem pelos padrões de beleza enfiados goela abaixo pelas revistas, ouvindo de pais e psiquiatras e gerentes que o problema somos nós, comprando nossas vidas inteiras dos especialistas e empreendedores para quem vendemos ela – e rangendo os dentes em fúria por eles estarem cortando as últimas árvores e prendendo nossos amigos com o dinheiro e a autoridade que demos a eles. Essas são consequências da passividade a qual relegamos nós mesmos. Nas filas dos bancos, na nossa estação de trabalho, sentados no banco do ônibus vendo a rua passar pela janela, todos ansiamos por sermos protagonistas das nossas próprias epopeias, mestres do nosso próprio destino.

Se queremos transformar a nós mesmos, temos que transformar o mundo – mas para começar a mudar o mundo, temos que mudar a nós mesmos. Hoje somos território ocupado. Nossos apetites e atitudes e papéis foram moldados pelo mundo que nos vira contra nós mesmos e contra os outros. Como podemos tomar e compartilhar o controle de nossas vidas, sem medo nem vacilo, quando passamos a vida sendo condicionados a fazer foto2o contrário?

Não importa o que você faça, não culpe a si mesmo pelos fragmentos da velha ordem que permacerem em você. É impossível se separar da cadeia de causas e efeitos que te produziram. O truque é encontrar formar de satisfazer a sua programação que simultaneamente a subvertam – que criam, no processo de satisfazer aqueles desejos, codições que construam novos desejos. Se precisar seguir lideres, siga aqueles que iram se depor dos tronos. Se precisar liderar, procure amigos que iram te ajudar a se destronar. Se tiver que lutar contra outros, procure lutas para o benefício de todos. Quando o assunto é desviar dos imperativos do próprio condicionamento, você descubrirá que ceder e minar é uma tática muito mais efetiva do que a velha herança cristã da “renúncia e luta”.

Para retomar a questão inicial: sim, nós estamos também fazedo sugestões. Seríamos canalhas negando isso! Mas seríamos canalhas também não oferecendo sugestões, não incentivando liberdade e auto determinação em um mundo que os desencoraja. Exortar a que se “pense por si mesmo” é irônico – mas hoje, recusar a se opor a propaganda dos missionários, empresários e políticos significa simplesmente abandonar a sociedade ao controle deles. Não há pureza no silêncio. E liberdade não existe apenas na ausência de controle – é algo que devemos fazer juntos. Tomar responsabilidade pela nossa parte na constante mudança do mundo significa não ter medo de tomar parte na construção da nossa sociedade, influenciando e sendo influenciados enquanto fazemos isso.

Nós fazemos sugestões, nós espalhamos essa propaganda de desejos porque esperamos que fazendo isso, satisfazendo a nossa própria paixão programada por propaganda de uma forma que mine uma ordem estabelecida que desencoraja todos nós a brincarmos com nossas paixões, possamos entrar em um mundo de total liberdade e diversidade, aonde propaganda, lutas de poder e coisas do tipo sejam obsoletas. Vejo você do outro lado.

 

Texto traduzido de CrimethInc

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Venha para a Resistência: Apaixone-se

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Amar é o ato fundamental da revolução, da resistência ao mundo tedioso, socialmente restritivo, culturalmente constritivo, e notoriamente ridículo de hoje.

O amor transforma o mundo. Onde o amante antigamente sentia-se entediado, ele agora sente paixão. Onde ele era complacente, agora está impelido à ação franca. O mundo que uma vez parecia vazio e cansativo, torna-se cheio de significado, cheio com riscos e recompensas, com majestade e perigo. A vida para o amante é um presente, uma aventura; todo momento é memorável, banhado em sua beleza passageira. Quando se apaixona, uma pessoa que se sentia desorientada, alienada e confusa finalmente sabe exatamente o que quer. De repente, sua existência faz sentido; torna-se valiosa, até gloriosa e nobre. Paixão ardente é um antídoto que curará os piores casos de desespero e resignação.

O amor possibilita que os indivíduos conectem-se a outros de modo significativo – impelindo os a deixar suas conchas e arriscar sendo honestos e espontâneos juntos, conhecendo um ao outro de modo profundo. Então o amor torna possível para nós cuidar uns dos outros genuinamente, ao contrário de só ocorrer no fim da linha como na doutrina cristã. Mas ao mesmo tempo, o amor catapulta a amante fora das rotinas do dia-a-dia e a separa do resto da humanidade, vivendo como se estivesse num mundo inteiramente diferente do deles.

Nesse sentido, o amor é subversivo, porque ele coloca uma ameaça para a ordem estabelecida das nossas vidas modernas. Os rituais entediantes da produtividade do dia de trabalho e a etiqueta social não significam mais nada para a pessoa que se apaixonou, há forças mais importantes guiando-a do que a mera inércia ou a deferência à tradição. Estratégias de marketing que dependem de apatia e insegurança não tem efeito sobre ele. Entretenimento desenvolvido para consumo passivo, que depende de exaustão ou cinismo não o interessam mais.

Não há lugar para o apaixonado, para o romântico no mundo de hoje, seja no campo dos negócios ou no privado – para ele seria mais vantajoso viajar de carona até o Alasca (ou sentar no parque para ver as nuvens passar) com seu coração sensível do que estudar para o exame de cálculo ou vender imóveis… e se ele decide que é isso que quer, terá a coragem para fazer ao invés de ser atormentado por um desejo insatisfeito. Ele sabe que ir para um cemitério e fazer amor debaixo das estrelas pode ser uma noite mais memorável do que assistir televisão jamais poderá ser. Então o amor representa uma ameaça para nossa economia de consumo, que depende de consumo de grande variedade de produtos e o trabalho que esse consumo necessita para se perpetuar.

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Estigma do Grupo – Ismo de mais, revolução de menos

As grandes ilusões coletivas, anêmicas por derramarem o sangue de tantas pessoas, têm desde então dado lugar a milhares de ideologias fragmentárias, vendidas pela sociedade de consumo como tantas outras máquinas portáteis de imbecilizar. Será necessário outro tanto de sangue para atestar que 100 mil alfinetadas são tão mortais quanto três cacetadas?
O que eu iria fazer em um grupo de ativistas que me obrigasse a deixar no vestiário, não digo algumas idéias – já que minhas idéias teriam me levado a me juntar ao grupo -, mas os sonhos e desejos de que nunca me separo, a vontade de viver autenticamente e sem limites? Qual o sentido de mudar de isolamento, mudar de monotonia, mudar de mentira? Quando a ilusão de uma mudança real é exposta, a simples mudança de
ilusão se torna insuportável.

Raoul Vaneigem – A Arte de Viver Para as Novas Gerações

É comum vermos nos grupos de esquerda uma especie de “patriotismo”. Não um patriotismo comum, por um espaço geográfico específico ou um conjunto de tradições culturais, mas sim por uma identificação intima com o grupo em si. E não é uma identificação com as pessoas no grupo mas sim com a forma das relações entre os membros desse grupo, uma espécie unica de espetáculo anti-espetacular, tão sádico e autoritário como qualquer outro espetáculo. A ideologia é tratada como mercadoria. A revolução televisionada na romantização do passado ou na idealização do futuro, aonde as massas teriam ou terão despertado de seu longo sono inerte pela ação desses “revolucionários” esclarecidos.

Nesses grupos, personagens históricas são elevados ao nível de ideologias completas e seu pensamento, personificado, leva grupos de pessoas a se identificarem com um nome – geralmente terminado em “ismo” ou “ista” – e exibem esse nome como se fosse um título a ser exibido com orgulho, a exemplo de títulos meritocráticos concedidos a militares ou então como se fosse uma característica particular que os identifica como grupo, grupo este que possui sua própria dinâmica social,sua própria hierarquia, suas próprias deidades e seus próprios rituais de sacrifício.

Os indivíduos que abraçam essas ideologias abrem mão de seus próprios pensamentos independentes em favor de justificações retóricas, muitas
vezes fornecidas por gurus dos grupos, para suas próprias crenças, que passam a ser a crença do grupo, em um movimento de desejar pertencer a
algo, se identificar fora de si mesmos.

A partir desse momento, os membros desse grupo exclusivo passam a iniciar uma caçada a todos aqueles que não são “iniciados”. Apontam para todos, despejando acusações a respeito de falsos profetas, se engajando numa histeria paranoica coletiva para apontar aqueles que, dentre os membros e os não-membros, são agentes da “direita”, da “burguesia”, da “oposição”, dos “marxistas”, dos “liberais”… A lista de inimigos é virtualmente infinita, basta abraçar como dogma uma visão histórica ou uma analise sociológica em particular e pronto, todas as outras opiniões passam a dividir o mesmo lugar dentro da lixeira da filosofia.

Essa espiral de ódio coletivo é arregimentada por grupos messiânicos, praticantes da “ação de base” de iluminação da população “alienada”, acostumados a empurrar goela abaixo de quem quer que seja a sua ideologia, felizes participantes que são do espetáculo cotidiano que permeia as relações humanas no capitalismo. Nesses grupos, esse ódio desabrocha e vira pauta central, se transforma em ferramenta de poder para aqueles que se beneficiam dele. Alguns ocupam os “espaços democráticos”, outros as “movimentações sociais”, outros ainda não ocupam nada a não ser caracteres em algum monitor ou bytes no banco de dados de alguma rede social multibilionária. Em comum, a unica coisa que compartilham é a sua incapacidade de se quer incomodar o status quo, o capital, o espetáculo.

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O Ocaso do Vanguardismo

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David Graeber

Pensadores revolucionários têm afirmado que a era do vanguardismo terminou há mais de um século. Afora um punhado de minúsculos grupos sectários, é quase impossível encontrar intelectuais radicais que acreditem seriamente que seu papel deva ser determinar a correta análise histórica da situação mundial, no intuito de liderar as massas na verdadeira direção revolucionária. No entanto (assim como ocorre com a ideia de progresso em si, com a qual esta tem óbvia relação), parece muito mais fácil renunciar ao princípio do que se livrar dos presentes hábitos de pensamento. Atitudes vanguardistas, ou mesmo sectárias, arraigaram-se tão profundamente no radicalismo acadêmico que é difícil dizer o que significaria pensar fora delas.

A densidade do problema realmente me atingiu quando tive o primeiro contato com os modos consensuais de tomada de decisão empregados em movimentos políticos anarquistas e de inspiração anarquista na América do Norte, que, por sua vez, tinham muitas semelhanças com o estilo de tomada de decisão política corrente onde eu havia feito meu campo de pesquisa antropológica, na área rural de Madagascar. Há uma enorme variação nos diferentes estilos e formas de consenso, mas uma característica que quase todas as vertentes norte-americanas têm em comum é o fato de se ordenarem em consciente oposição à maneira de organização e, especialmente, de debate típica dos grupos marxistas sectários clássicos. Ao passo que estes invariavelmente se organizam em torno de algum mestre teórico, que oferece uma abrangente análise da situação mundial e, muitas vezes, da História humana como um todo, mas muito pouca reflexão teórica acerca de questões mais imediatas de organização e prática, grupos de inspiração anarquista tendem a operar segundo a hipótese de que um indivíduo jamais pode, ou provavelmente nem deve, converter por completo outro a seu próprio ponto de vista; que estruturas de tomada de decisão são maneiras de administrar a diversidade; e, portanto, que
devemos nos concentrar em manter o processo igualitário e em ponderar questões imediatas de ação no presente. Um dos princípios fundamentais do debate político, por exemplo, é a obrigação de dar aos outros participantes o benefício da dúvida por honestidade e boa intenção, o que quer que se pense de seus argumentos. Em parte isto também emerge do estilo de debate que a tomada de decisão por consenso encoraja: enquanto o voto estimula a reduzir as posições dos oponentes a uma hostil caricatura, ou o que for preciso para derrotá-los, um processo consensual é construído sobre o princípio de conciliação e criatividade, em que as propostas são constantemente alteradas até surgir uma com que todos possam ao menos conviver. Dessa forma, incentiva-se sempre dar a melhor interpretação possível aos argumentos alheios.

Tudo isso mexeu comigo porque me fez perceber como a prática intelectual comum – o tipo de coisa que fui treinado para fazer na Universidade de Chicago, por exemplo – de fato lembra modos sectários de debate. Uma das coisas que mais me perturbaram em meus estudos lá foi precisamente a maneira como éramos estimulados a ler os argumentos de outros teóricos: se houvesse duas formas de ler uma frase, uma das quais sugerisse que o autor tivesse um mínimo de bom senso e a outra que ele fosse um completo idiota, a tendência era sempre escolher a segunda. Algumas vezes me perguntei como isto podia se conciliar com a ideia de que a prática intelectual é, em algum nível elementar, um empreendimento comum na busca da verdade. O mesmo vale para outros hábitos intelectuais: por exemplo, a montagem cuidadosa de listas de diferentes “formas de se estar errado” (em geral terminadas em “ismo”, isto é, subjetivismo, empirismo; todos muito parecidos com seus paralelos sectários: reformismo, desviacionismo de esquerda, hegemonismo…) e a disposição para escutar pontos de vista divergentes dos próprios apenas para descobrir a que variedade de equívoco ligá-los.
Combine-se isto à tendência de se tratarem divergências intelectuais (muitas vezes
insignificantes) não só como símbolos de pertencimento a algum “ismo” imaginado, mas como grandes falhas morais, no mesmo patamar do racismo ou do imperialismo (e muitas vezes de fato partes deles), e tem-se uma reprodução quase exata da espécie de debate intelectual típico das mais ridículas facções vanguardistas.

Ainda creio que a prevalência cada vez maior desses novos, e em minha opinião muito mais saudáveis, modos de discurso entre ativistas terá seus efeitos sobre a academia, mas é difícil negar que até agora a mudança tem sido muito lenta.

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Esperança em Comum

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autor: David Graeber

Tudo indica que chegamos a um impasse. O capitalismo como o conhecemos parece estar
ruindo. Porém, enquanto instituições financeiras cambaleiam e se desfazem, não há
alternativa evidente. A resistência organizada mostra-se dispersa e incoerente; o movimento pela justiça global, uma sombra de sua antiga essência. Temos boas razões para crer que, dentro de aproximadamente uma geração, o capitalismo terá deixado de existir: pelo simples motivo de que é impossível manter uma máquina de crescimento perpétuo em um planeta finito. Em face dessa perspectiva, a reação instantânea – mesmos dos “progressistas” – é, muitas vezes, de temor, de aferrar-se ao capitalismo por simplesmente não conseguir imaginar uma alternativa que não fosse ainda pior.

A primeira pergunta que deveríamos fazer é: como isso aconteceu? É normal para o ser
humano ser incapaz de imaginar sequer como seria um mundo melhor?
A desesperança não é natural. Ela tem de ser produzida. Se de fato quisermos entender esta situação, devemos começar entendendo que os últimos trinta anos viram a construção de um vasto aparato burocrático que visa a criar e manter a desesperança, uma espécie de máquina gigante projetada, acima de tudo, para destruir qualquer sentimento de possíveis futuros alternativos. Em sua raiz está uma verdadeira obsessão por parte dos comandantes do mundo por assegurar que os movimentos sociais sejam impedidos de crescer, florescer, propor alternativas; que aqueles que desafiam os esquemas de poder existentes jamais possam, sob quaisquer circunstâncias, alcançar a vitória. Isto requer a criação de uma extensa aparelhagem de exércitos, prisões, polícias, várias formas de empresas de segurança privada e de organizações de inteligência policial e militar e máquinas de propaganda de todas as variedades concebíveis, a maioria das quais não ataca as alternativas de maneira direta, mas gera um penetrante clima de temor, conformidade jingoísta e simples desespero que faz qualquer pretensão de mudar o mundo parecer uma fantasia vã. Manter esse mecanismo parece ainda mais importante, para os representantes do “mercado livre”, do que manter algum tipo de economia de mercado viável. De que outro modo se pode explicar, por exemplo, o que houve na antiga União Soviética, onde seria de se imaginar que o fim da Guerra Fria fosse levar ao desmantelamento do exército e da KGB e à reconstrução das fábricas, mas na verdade o que ocorreu foi precisamente o oposto? Este é apenas um exemplo extremo do que tem acontecido em todo lugar. Em termos econômicos, esse mecanismo não passa de um peso morto; todas as armas, as câmeras de segurança e as máquinas de propaganda têm um custo extraordinário e não produzem efeito algum, e o resultado disso é que estão afundando com elas todo o sistema capitalista e, possivelmente, o próprio planeta.

As espirais de financeirização e a interminável série de bolhas econômicas por que temos
passado são resultado direto desse aparato. Não é coincidência o fato de os Estados Unidos terem se tornado tanto a maior potência militar (“de segurança”) e o maior promotor de seguranças fictícias do mundo. Esse aparato existe para retalhar e pulverizar a imaginação humana, para destruir qualquer possibilidade de se anteverem futuros alternativos. Em consequência, só o que resta imaginar é mais e mais dinheiro e espirais de dívida completamente fora de controle. Afinal, o que é a dívida senão um dinheiro imaginário cujo valor só pode se tornar real no futuro – lucros futuros, os rendimentos da exploração de trabalhadores que ainda nem nasceram? O capital financeiro, por sua vez, é a compra e venda desses lucros futuros imaginários, e, pressupondo-se que o capitalismo em si continuará presente por toda a eternidade, o único tipo de democracia econômica que resta imaginar é aquele em que todos são igualmente livres para investir no mercado – agarrar seu próprio quinhão no jogo de compra e venda de lucros futuros imaginários, mesmo que esses lucros sejam extraídos deles mesmos. A liberdade transformou-se no direito de ter sua parte nos rendimentos da própria escravidão permanente.

E como a bolha estava fundamentada na destruição de futuros, quando ela estourou pareceu –  pelo menos até o momento – não haver restado simplesmente nada.
O efeito, entretanto, é claramente temporário. Se a história do movimento pela justiça global nos diz algo, é que no momento em que parecer existir algum sentimento de abertura, a imaginação logo dará um salto à frente. Foi o que de fato aconteceu no fim dos anos 90, quando pareceu, por um momento, que podíamos estar rumando para um mundo de paz. Nos EUA, nos últimos cinquenta anos, sempre que se vislumbra alguma possibilidade de paz irrompendo, ocorre o mesmo: o surgimento de um movimento social radical dedicado aos princípios de ação direta e democracia participativa, que almeja revolucionar o próprio sentido da vida política. No fim dos anos 50, foi o dos direitos civis; duas décadas depois, o antinuclear. Desta vez aconteceu em escala planetária, e desafiou o capitalismo de frente. Essas manifestações tendem a ser extraordinariamente efetivas. Decerto o movimento pela justiça global o foi. Poucos percebem que uma das principais razões por que ele pareceu surgir e deixar de existir de modo tão rápido foi o fato de ter alcançado seus objetivos com grande velocidade. Nenhum de nós sonhava, quando estávamos organizando os protestos em Seattle em 1999 ou nas reuniões do FMI em Washington em 2000, que dentro de meros três ou quatro anos o procedimento da OMC teria entrado em colapso, que as ideologias de “comércio livre” estariam quase inteiramente desacreditadas, que todos os acordos comerciais que nos atiraram – do MIA à Área de Livre Comércio das Américas – teriam sido derrotados, o Banco Mundial atingido em suas bases e o poder do FMI sobre a maior parte da população mundial de fato destruído. No entanto, foi precisamente o que aconteceu. O destino do FMI em
especial é assombroso. Outrora o terror do Hemisfério Sul, ele é, agora, um resquício
destroçado de sua antiga essência, achacado e desacreditado, relegado a queimar suas
reservas de ouro e a buscar desesperadamente uma nova missão global.

Enquanto isso, a maior parte da “dívida do terceiro mundo” simplesmente desapareceu. Tudo isso foi resultado de um movimento que conseguiu mobilizar a resistência global de forma tão eficiente que a princípio as instituições reinantes ficaram desacreditadas e, por fim, aqueles que comandavam os governos na Ásia e em especial na América Latina foram forçados por seus próprios povos a desafiar o sistema financeiro internacional. A confusão em que o movimento caiu deveu-se em grande parte ao fato de nenhum de nós haver realmente considerado a possibilidade de vitória.

Contudo, é claro que existe outra razão. Nada aterroriza tanto os governantes do mundo, e em particular os dos Estados Unidos, quanto o perigo de uma democracia feita pelo povo. Sempre que um movimento democrático genuíno começa a emergir – especialmente se baseado nos princípios de desobediência civil e de ação direta –, a reação é a mesma: o governo faz concessões imediatas (certo, vocês podem ter o direito ao voto; nada de armas nucleares), depois começa a elevar as tensões militares no exterior. O movimento é então forçado a se transformar em uma manifestação antiguerra, que, quase invariavelmente, é organizada de forma muito menos democrática. Assim, o movimento pelos direitos civis foi seguido pelo Vietnã, o antinuclear por guerras por procuração em El Salvador e na Nicarágua, e o da justiça global pela “Guerra ao Terror”.

Neste ponto, contudo, podemos enxergar essa “guerra” em seu caráter verdadeiro: o esforço descontrolado e nitidamente malfadado de uma potência em declínio para tornar sua peculiar combinação de máquinas de guerra burocráticas e capitalismo financeiro especulativo em uma condição global permanente. Se a arquitetura podre ruiu de maneira abrupta no fim de 2008, isso se deveu pelo menos em parte ao fato de que uma boa porção do trabalho já tinha sido feita por um movimento que, em face do surto de repressão após o 11 de Setembro, combinado à confusão acerca de como dar prosseguimento a seu impressionante sucesso inicial, parecera haver praticamente sumido de cena.
É evidente que não sumiu de fato. Estamos claramente à beira de outro renascimento em massa da imaginação popular. Não deveria ser tão difícil. A maioria dos elementos já está à disposição. O problema é que, nossas percepções tendo sido distorcidas por décadas de propaganda implacável, não somos mais capazes de enxergá-los. Consideremos o termo “comunismo”. Raras vezes uma palavra foi difamada de modo tão patente. O padrão, que aceitamos de forma mais ou menos impensada, é que comunismo significa controle estatal da economia, e isto é um sonho utópico impossível porque a História mostrou que simplesmente “não funciona”. O capitalismo, embora desagradável, é portanto a única opção que resta. Na verdade, porém, comunismo significa apenas qualquer situação em que agimos de acordo com o princípio do “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades” – que é a forma como quase todos sempre agem se estão trabalhando juntos para cumprir um objetivo. Se duas pessoas estão consertando um cano e uma pede: “Dê-me a chave”, a outra não irá responder: “E o que eu ganho com isso?” (isto é, se elas de fato querem o cano consertado). Isto vale mesmo no caso de as duas serem empregadas da Bechtel ou do Citigroup. Elas aplicam princípios comunistas porque estes são a única alternativa que realmente funciona. É pela mesma razão que cidades ou países inteiros se valem de alguma forma de comunismo cru após uma catástrofe natural ou um colapso econômico (poderíamos dizer, nessas circunstâncias, que mercados e cadeias de comando hierárquicas são luxos com que eles não podem arcar). Quanto mais criatividade for preciso, quanto mais for necessário improvisar em uma dada tarefa, mais igualitária a forma de comunismo resultante está propensa a ser – é por isso que mesmo engenheiros da computação republicanos, ao tentarem criar novas ideias para softwares, tendem a formar pequenos coletivos democráticos. Somente quando o trabalho se torna padronizado e maçante – como em linhas de produção – é possível impor formas de comunismo mais autoritárias, até mesmo fascistas. O fato, no entanto, é que mesmo
empresas privadas têm uma organização interna comunista.

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Doar

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David Graeber

Você reparou que já não existem novos intelectuais franceses? Houve uma autêntica
enxurrada no final dos anos 70 e no início dos 80: Derrida, Foucault, Baudrillard, Kristeva, Lyotard, de Certeau…mas desde então não apareceu quase nenhum. Acadêmicos antenados e hipsters intelectuais foram forçados a reciclar interminavelmente teorias que agora contam 20 ou 30 anos ou se voltar para países como a Itália ou até a Eslovênia em busca de uma metateoria capaz de chamar a atenção.

O pioneiro antropólogo francês Marcel Mauss estudou “economias da dádiva”, como as dos Kwakiutl da Colúmbia Britânica. Suas conclusões foram surpreendentes.
Há uma série de razões para isto. Uma está ligada à política da própria França, onde ocorreu um esforço orquestrado por parte das elites midiáticas para substituir verdadeiros intelectuais por especialistas cabeças-ocas de estilo americano. Contudo, o êxito não foi completo. Mais importante, a vida intelectual francesa tornou-se muito mais engajada politicamente. Na imprensa dos Estados Unidos, houve quase um apagão de notícias culturais vindas da França desde o grande movimento grevista de 1995, quando aquela nação foi a primeira a rejeitar de forma definitiva o “modelo americano” de economia e se recusou a dar início ao desmantelamento de seu Estado de bem-estar social. Na imprensa americana, a França imediatamente se tornou o país tolo, que tenta em vão mudar o rumo da história.
É claro que este fato isolado dificilmente irá intimidar os leitores americanos de Deleuze e
Guattari. O que os acadêmicos dos Estados Unidos esperam da França é um alto nível
intelectual, a capacidade de sentir que se está fazendo parte de ideias radicais e selvagens – demonstrando a violência inerente das concepções ocidentais de verdade e humanidade, ou algo do tipo –, mas de formas que não impliquem um programa de ação política, ou, em geral, uma responsabilidade de agir. É fácil ver como uma classe de pessoas consideradas quase inteiramente irrelevantes tanto pelas elites políticas como por 99% da população geral poderia se sentir assim. Em outras palavras, enquanto a mídia americana representa a França como tola, os acadêmicos americanos vão em busca dos pensadores franceses que parecem cumprir as expectativas.

Como resultado, sequer ouvimos falar de alguns dos estudiosos mais interessantes da França na atualidade. Entre eles está um grupo de intelectuais que carrega o pomposo nome de Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales, ou MAUSS, e tem se dedicado a um ataque sistemático às bases filosóficas da teoria econômica. O grupo tira sua inspiração de Marcel Mauss, grande sociólogo francês do início do século XX, cuja obra mais famosa, Ensaio sobre a dádiva (1925), foi talvez a mais magnífica refutação das ideias por trás da teoria econômica já escrita. Numa época em que o “mercado livre” é empurrado goela abaixo de todos como um produto tão autêntico quanto natural do ser humano, o trabalho de Mauss, que demonstrou não apenas que a maioria das sociedades fora do Ocidente não adotava nada semelhante a princípios mercadológicos, mas também que tampouco o faz a maioria dos ocidentais modernos, é mais relevante do que nunca.

Enquanto os estudiosos americanos francófilos parecem incapazes de pensar em algo para dizer sobre a ascensão do neoliberalismo global, o MAUSS está lhe atacando as próprias fundações.
A título de retrospectiva: Marcel Mauss nasceu em 1872, em Vosges, numa família judia
ortodoxa. Seu tio, Émile Durkheim, é considerado o fundador da sociologia moderna. Vivia rodeado de um grupo de brilhantes e jovens acólitos, dentre os quais Mauss foi designado para estudar religião. O círculo, no entanto, foi aniquilado pela I Guerra Mundial; muitos morreram nas trincheiras, incluindo o filho de Durkheim, e ele próprio sucumbiu ao luto pouco tempo depois. Mauss ficou para juntar os cacos.
Segundo todos os relatos, porém, Mauss nunca foi levado totalmente a sério em seu papel de herdeiro necessário; homem de extraordinária erudição (conhecia pelo menos uma dúzia de idiomas, incluindo sânscrito, maori e árabe clássico), ele ainda, de alguma forma, carecia da austeridade esperada de um grand professeur. Ex-pugilista amador, era um homem robusto de modos brincalhões, um tanto bobos, o tipo de pessoa que estava sempre fazendo malabarismos com uma dúzia de ideias brilhantes em vez de construir grandes sistemas filosóficos. Passou a vida trabalhando em pelo menos cinco livros diferentes (sobre oração, sobre nacionalismo, sobre as origens do dinheiro etc.), dos quais nunca terminou nenhum.

Ainda assim, conseguiu instruir uma nova geração de sociólogos e inventar a antropologia
francesa mais ou menos sozinho, bem como publicar uma série de ensaios de extraordinário caráter inovador, dos quais praticamente cada um gerou por si só um novo corpus de teoria social.
Mauss foi também um socialista revolucionário. Desde seus dias de estudante colaborou de forma regular com a imprensa esquerdista e durante a maior parte da vida permaneceu um membro ativo do movimento cooperativista francês. Fundou e durante muitos anos ajudou a dirigir uma cooperativa de consumidores em Paris, e com frequência era enviado em missões para fazer contato com o movimento em outros países (motivo pelo viveu na Rússia após a revolução). Entretanto, não era marxista. Seu socialismo seguia mais a tradição de Robert Owen ou Pierre-Joseph Proudhon: ele considerava que comunistas e sociais-democratas incorriam no mesmo erro ao crerem que a sociedade podia ser transformada primordialmente pela ação do governo. Em vez disso, o papel do governo, acreditava Mauss, era fornecer a estrutura legal para um socialismo que tinha de ser construído do zero, mediante a criação de instituições alternativas.

 

A revolução russa, portanto, causou-lhe profunda ambivalência. Embora exultante com a
expectativa de um genuíno experimento socialista, Mauss sentiu-se ultrajado com o uso
sistemático do terror pelos bolcheviques, sua supressão das instituições democráticas e,
acima de tudo, sua “doutrina cínica segundo a qual os fins justificam os meios”, o que,
concluiu ele, era justamente o cálculo amoral e racional do mercado, ligeiramente invertido.
O ensaio de Mauss acerca da “dádiva” foi, mais do que qualquer outra coisa, sua resposta aos eventos ocorridos na Rússia, em particular a Nova Política Econômica de Lênin de 1921, que abandonou tentativas anteriores de abolir o comércio. Se o mercado não podia simplesmente ser varrido da legislação, mesmo na Rússia, provavelmente a menos monetarizada das sociedades europeias, então estava claro, concluiu o pensador, que os revolucionários teriam de começar a pensar muito mais a sério no que esse “mercado” de fato representava, de onde viera e como realmente poderia ser uma alternativa viável a ele.

Era hora de efetivar os resultados da pesquisa histórica e etnográfica. As conclusões de Mauss foram surpreendentes. Em primeiro lugar, quase tudo o que a “ciência econômica” tinha a dizer sobre o tema da história da economia revelou-se inteiramente inverídico. A crença universal dos entusiastas do mercado livre, tanto à época como hoje, era que o motor essencial do ser humano é o desejo de maximizar os prazeres, os confortos e as possessões materiais (sua “utilidade”) e que portanto todas as interações humanas importantes podem ser analisadas em termos mercadológicos. No princípio, segundo a versão oficial, havia o escambo. As pessoas eram forçadas a obter o que queriam
trocando diretamente um objeto por outro. Como isso era inconveniente, acabaram por
inventar o dinheiro como meio universal de troca. A criação de tecnologias mais avançadas
(crédito, sistema bancário, bolsas de valores) foi uma simples extensão lógica.
O problema era que, como Mauss logo notou, não havia motivo para acreditar que uma
sociedade baseada no escambo um dia houvesse existido. Em vez disso, o que os
antropólogos estavam descobrindo eram sociedades em que a vida econômica se baseava
em princípios absolutamente diferentes, a maioria dos objetos vinha e voltava como presentes e quase tudo o que chamaríamos de comportamento “econômico” era baseado em uma pretensão de generosidade pura e uma recusa em calcular quem dera o que a quem. Tais “economias da dádiva” podiam em certas ocasiões tornar-se altamente competitivas, mas quando isso ocorria era da maneira exatamente oposta à nossa: em vez de brigar para ver quem acumulava mais, os vencedores eram aqueles que conseguiam doar mais. Em alguns casos notórios, como o dos Kwakiutl da Colúmbia Britânica, isso podia levar a dramáticas disputas de liberalidade, em que chefes ambiciosos tentavam superar uns aos outros distribuindo milhares de braceletes de prata, cobertores Hudson’s Bay ou máquinas de costura Singer e até mesmo destruindo riquezas afundando famosas relíquias de família no mar, ou ainda incendiando enormes pilhas de riquezas e desafiando os rivais a fazer o mesmo.

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A revolução não será televisionada

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… e se passar ninguém estará assistindo.

A revolução não vai te dar influência política, um carro de luxo, ou antidepressivos de marca. Ela tornará tudo isso supérfluo.

A revolução não vai te ajudar a ganhar massa muscular ou tonificar suas coxas flácidas. Ela vai possibilitar que você se sinta bonito no seu corpo, não por causa dele.

A revolução não vai te ajudar a ganhar massa muscular ou tonificar suas coxas flácidas. Ela vai possibilitar que você se sinta bonito no seu corpo, não por causa dele.

A revolução não te dará poderes sobrehumanos ou criatividade, audácia ou solução para conflitos. Ela vai remover os obstáculos que te impedem de exercer os poderes que você já tem.

A revolução não vai acabar com a violência, desavenças ou lutas interpessoais. Ela vai te oferecer a chance de finalmente lutares pelos teus próprios interesses, e deixar as peças caírem onde elas devem.

A revolução não somente vai dar oportunidades iguais a todos gêneros, etnias e nacionalidades ― ela vai acabar com as fronteiras que os separam.

A revolução não te tornará autosuficiente. Ela te tornará apto a cuidar dos outros, e os outros a cuidar de você.

A revolução não te dará o homem ou a mulher dos teus sonhos. Ela trará à tona a beleza única daqueles à sua volta.

A revolução nem sempre vai te nutrir, te abrigar ou te curar, mas fome, sede e frio vão te preocupar muito menos.

A revolução não significa que tu finalmente terás o que mereces. Ela te dará tesouros que ninguém jamais merecerá, assim como ela te magoará com uma dor para a qual nada te preparou.

A revolução não será simples, limpa ou fácil. Ela te ajudará a encontrar significado nas coisas difíceis, a ser corajoso ao encarar complexidades e contradições, a sujar tuas mãos e gostar disso.

A revolução não vai acontecer amanhã ― ela nunca acontecerá. Ela está acontecendo agora mesmo. Ela é um universo alternativo que corre paralelo a este, esperando que tu troques de lado.

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