O Ocaso do Vanguardismo

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David Graeber

Pensadores revolucionários têm afirmado que a era do vanguardismo terminou há mais de um século. Afora um punhado de minúsculos grupos sectários, é quase impossível encontrar intelectuais radicais que acreditem seriamente que seu papel deva ser determinar a correta análise histórica da situação mundial, no intuito de liderar as massas na verdadeira direção revolucionária. No entanto (assim como ocorre com a ideia de progresso em si, com a qual esta tem óbvia relação), parece muito mais fácil renunciar ao princípio do que se livrar dos presentes hábitos de pensamento. Atitudes vanguardistas, ou mesmo sectárias, arraigaram-se tão profundamente no radicalismo acadêmico que é difícil dizer o que significaria pensar fora delas.

A densidade do problema realmente me atingiu quando tive o primeiro contato com os modos consensuais de tomada de decisão empregados em movimentos políticos anarquistas e de inspiração anarquista na América do Norte, que, por sua vez, tinham muitas semelhanças com o estilo de tomada de decisão política corrente onde eu havia feito meu campo de pesquisa antropológica, na área rural de Madagascar. Há uma enorme variação nos diferentes estilos e formas de consenso, mas uma característica que quase todas as vertentes norte-americanas têm em comum é o fato de se ordenarem em consciente oposição à maneira de organização e, especialmente, de debate típica dos grupos marxistas sectários clássicos. Ao passo que estes invariavelmente se organizam em torno de algum mestre teórico, que oferece uma abrangente análise da situação mundial e, muitas vezes, da História humana como um todo, mas muito pouca reflexão teórica acerca de questões mais imediatas de organização e prática, grupos de inspiração anarquista tendem a operar segundo a hipótese de que um indivíduo jamais pode, ou provavelmente nem deve, converter por completo outro a seu próprio ponto de vista; que estruturas de tomada de decisão são maneiras de administrar a diversidade; e, portanto, que
devemos nos concentrar em manter o processo igualitário e em ponderar questões imediatas de ação no presente. Um dos princípios fundamentais do debate político, por exemplo, é a obrigação de dar aos outros participantes o benefício da dúvida por honestidade e boa intenção, o que quer que se pense de seus argumentos. Em parte isto também emerge do estilo de debate que a tomada de decisão por consenso encoraja: enquanto o voto estimula a reduzir as posições dos oponentes a uma hostil caricatura, ou o que for preciso para derrotá-los, um processo consensual é construído sobre o princípio de conciliação e criatividade, em que as propostas são constantemente alteradas até surgir uma com que todos possam ao menos conviver. Dessa forma, incentiva-se sempre dar a melhor interpretação possível aos argumentos alheios.

Tudo isso mexeu comigo porque me fez perceber como a prática intelectual comum – o tipo de coisa que fui treinado para fazer na Universidade de Chicago, por exemplo – de fato lembra modos sectários de debate. Uma das coisas que mais me perturbaram em meus estudos lá foi precisamente a maneira como éramos estimulados a ler os argumentos de outros teóricos: se houvesse duas formas de ler uma frase, uma das quais sugerisse que o autor tivesse um mínimo de bom senso e a outra que ele fosse um completo idiota, a tendência era sempre escolher a segunda. Algumas vezes me perguntei como isto podia se conciliar com a ideia de que a prática intelectual é, em algum nível elementar, um empreendimento comum na busca da verdade. O mesmo vale para outros hábitos intelectuais: por exemplo, a montagem cuidadosa de listas de diferentes “formas de se estar errado” (em geral terminadas em “ismo”, isto é, subjetivismo, empirismo; todos muito parecidos com seus paralelos sectários: reformismo, desviacionismo de esquerda, hegemonismo…) e a disposição para escutar pontos de vista divergentes dos próprios apenas para descobrir a que variedade de equívoco ligá-los.
Combine-se isto à tendência de se tratarem divergências intelectuais (muitas vezes
insignificantes) não só como símbolos de pertencimento a algum “ismo” imaginado, mas como grandes falhas morais, no mesmo patamar do racismo ou do imperialismo (e muitas vezes de fato partes deles), e tem-se uma reprodução quase exata da espécie de debate intelectual típico das mais ridículas facções vanguardistas.

Ainda creio que a prevalência cada vez maior desses novos, e em minha opinião muito mais saudáveis, modos de discurso entre ativistas terá seus efeitos sobre a academia, mas é difícil negar que até agora a mudança tem sido muito lenta.

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