Estigma do Grupo – Ismo de mais, revolução de menos

As grandes ilusões coletivas, anêmicas por derramarem o sangue de tantas pessoas, têm desde então dado lugar a milhares de ideologias fragmentárias, vendidas pela sociedade de consumo como tantas outras máquinas portáteis de imbecilizar. Será necessário outro tanto de sangue para atestar que 100 mil alfinetadas são tão mortais quanto três cacetadas?
O que eu iria fazer em um grupo de ativistas que me obrigasse a deixar no vestiário, não digo algumas idéias – já que minhas idéias teriam me levado a me juntar ao grupo -, mas os sonhos e desejos de que nunca me separo, a vontade de viver autenticamente e sem limites? Qual o sentido de mudar de isolamento, mudar de monotonia, mudar de mentira? Quando a ilusão de uma mudança real é exposta, a simples mudança de
ilusão se torna insuportável.

Raoul Vaneigem – A Arte de Viver Para as Novas Gerações

É comum vermos nos grupos de esquerda uma especie de “patriotismo”. Não um patriotismo comum, por um espaço geográfico específico ou um conjunto de tradições culturais, mas sim por uma identificação intima com o grupo em si. E não é uma identificação com as pessoas no grupo mas sim com a forma das relações entre os membros desse grupo, uma espécie unica de espetáculo anti-espetacular, tão sádico e autoritário como qualquer outro espetáculo. A ideologia é tratada como mercadoria. A revolução televisionada na romantização do passado ou na idealização do futuro, aonde as massas teriam ou terão despertado de seu longo sono inerte pela ação desses “revolucionários” esclarecidos.

Nesses grupos, personagens históricas são elevados ao nível de ideologias completas e seu pensamento, personificado, leva grupos de pessoas a se identificarem com um nome – geralmente terminado em “ismo” ou “ista” – e exibem esse nome como se fosse um título a ser exibido com orgulho, a exemplo de títulos meritocráticos concedidos a militares ou então como se fosse uma característica particular que os identifica como grupo, grupo este que possui sua própria dinâmica social,sua própria hierarquia, suas próprias deidades e seus próprios rituais de sacrifício.

Os indivíduos que abraçam essas ideologias abrem mão de seus próprios pensamentos independentes em favor de justificações retóricas, muitas
vezes fornecidas por gurus dos grupos, para suas próprias crenças, que passam a ser a crença do grupo, em um movimento de desejar pertencer a
algo, se identificar fora de si mesmos.

A partir desse momento, os membros desse grupo exclusivo passam a iniciar uma caçada a todos aqueles que não são “iniciados”. Apontam para todos, despejando acusações a respeito de falsos profetas, se engajando numa histeria paranoica coletiva para apontar aqueles que, dentre os membros e os não-membros, são agentes da “direita”, da “burguesia”, da “oposição”, dos “marxistas”, dos “liberais”… A lista de inimigos é virtualmente infinita, basta abraçar como dogma uma visão histórica ou uma analise sociológica em particular e pronto, todas as outras opiniões passam a dividir o mesmo lugar dentro da lixeira da filosofia.

Essa espiral de ódio coletivo é arregimentada por grupos messiânicos, praticantes da “ação de base” de iluminação da população “alienada”, acostumados a empurrar goela abaixo de quem quer que seja a sua ideologia, felizes participantes que são do espetáculo cotidiano que permeia as relações humanas no capitalismo. Nesses grupos, esse ódio desabrocha e vira pauta central, se transforma em ferramenta de poder para aqueles que se beneficiam dele. Alguns ocupam os “espaços democráticos”, outros as “movimentações sociais”, outros ainda não ocupam nada a não ser caracteres em algum monitor ou bytes no banco de dados de alguma rede social multibilionária. Em comum, a unica coisa que compartilham é a sua incapacidade de se quer incomodar o status quo, o capital, o espetáculo.

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