Por Janos Biro
Aqueles que estão tentando colaborar com uma mudança qualitativa na sociedade, defendendo o fim da submissão e da concentração de poder, têm que ter uma coisa em mente: a capacidade da ordem vigente de assimilar e transformar movimentos, mesmo os mais radicais, em idéias inofensivas ou mesmo oportunidades para o comércio e para a perpetuação do capitalismo. O capitalismo já devorou o movimento hippie, que hoje pode ser comprado em lojas de marca ou em feiras populares. Já devorou o ambientalismo, que é defendido por supermercados e por igrejas. Está devorando o anarquismo e o feminismo, que estão se tornando acessórios de moda. Os marxistas se dividem em infinitos grupos que se odeiam mais do que odeiam o capitalismo. Não podemos simplesmente achar que basta superlotar a boca do monstro até que ele não possa engolir mais nada, porque sua enorme boca tem um poder incrível de expansão. Cada movimento revolucionário que ele engole aumenta sua capacidade de engolir outros movimentos com cada vez menos mastigação.
O capitalismo precisa expandir mercados, sempre. Um novo movimento de insatisfeitos é sempre uma nova oportunidade de vender novos produtos. O capitalismo está perfeitamente satisfeito em vender coisas que supostamente o criticam, o ofendem e o atacam, pois, contanto que as pessoas continuem comprando produtos, ele vai continuar se expandindo. Ele prepara terreno dando boas vindas a ONGs e outras organizações que supostamente estão tentando corrigir problemas do sistema. As pessoas estão cada vez mais insatisfeitas, e por isso há cada vez mais voluntários lutando contra os efeitos do sistema. Eles estão consumindo livros, estão organizando encontros e estão prosseguindo sua vida como consumidores, por mais conscientes e bem intencionados que sejam. Eles medem suas conquistas pelas lutas que travam, e não pelas lutas que não mais precisarão ser feitas. Ano após ano, aumentam os esforços para conter os estragos do monstro, e ano após ano os estragos aumentam, mais assuntos precisam de atenção imediata e urgente, e há mais pessoas lutando mais firme e assim por diante. É uma bola de neve. Será que existe alguma alternativa viável de ação que não possa ser assimilada pelo capitalismo?
O que eu tenho aqui é uma proposta, apenas uma sugestão para criar uma alternativa ao “movimento”. Em primeiro lugar, nunca use essa palavra para se referir ao que você está tentando fazer. A palavra “movimento” já está carregada de conceitos que atraem o olfato do monstro mais rapidamente. Ao invés disso, eu sugiro usar uma palavra diferente para cada ocasião, como confluência ou coalizão. Use o dicionário, invente uma palavra nova ou não use palavra alguma. Isso é útil para que as pessoas se perguntem: afinal, o que é isso que você está fazendo? Aí você tem uma oportunidade de explicar não só o que é, mas como é. Se tivermos algo como “movimento ciber-eco-anarco-romantico-feminista”, as pessoas reagirão automaticamente ao nome, em geral para dizer que é uma bobagem. Então, nunca faça um movimento, faça algo mais.
- Mas o que este “algo mais” precisa ter para ser realmente imune à assimilação? Há um número de sugestões que já foram feitas em outras ocasiões e que talvez sejam úteis agora: Não repita o que já foi tentado no passado, tente algo novo.
- Espalhe idéias e não ideologias.
- Conte vitórias por mudanças qualitativas, e não quantitativas.
- Não crie ou melhore modelos estáticos, mas contribua para uma mudança contínua e dinâmica nas causas dos problemas, e não simplesmente nas conseqüências.
- Não feche seu objetivo a alvos específicos, mas amplie sua análise para uma visão holística dos problemas.
- Rejeite todos os termos pré-moldados que possam etiquetar suas ações.
- Faça isso por você mesmo, não por um “ideal moral superior”.
- Não espere derrubar o velho para então criar o novo, nem crie o novo antes, o que já seria uma idealização, mas crie o novo enquanto destrói o velho e como parte inseparável dessa destruição.
Eu quero comentar algumas dessas sugestões. É possível fazer algo novo? Só há uma maneira de saber: tentando. Qual a diferença entre espalhar idéias e espalhar ideologias? Uma ideologia lembra um conjunto completo de idéias, que são facilmente elevadas ao nível de doutrina, e que por sua vez quase sempre se mantêm através de dogmas. Não podemos nos trancar numa visão estática de mundo, por mais que ela pareça funcionar idealmente, a realidade não funciona como nossas mentes. De nada adiante comemorar coisas como “25 anos de luta!”, “100.000 associados!”, “10.000 pessoas beneficiadas!”. A medição quantitativa de resultados é enganosa porque a quantidade de problemas pode estar aumentando ainda mais, nem sempre no mesmo lugar. “Bem, fazemos nossa parte reduzindo os índices de (o que for) em 35%, agora é trabalho de outra organização reduzir os índices de (outra coisa) que tem aumentado assustadoramente nos últimos anos”. Esta é a importância da visão holística, não ficar preso a um resultado fragmentado e insuficiente, mas considerar as conexões ocultas entre os problemas. Não só é preciso rejeitar os termos, mas a lógica e a moral civilizatória. Precisamos superar a linguagem civilizatória, que é uma linguagem feita para a dominação. Ao invés de uma revolução precisamos de uma resolução. A questão número oito é a mais polêmica, alguns são mais niilistas e outros são mais idealistas, e eu acho que há espaço para ambos, desde que no final se equilibrem. Alguns vão preferir destruir o velho, outros vão preferir criar o novo, e ambos não podem se isolar, mas dialogar e perceber que estão trabalhando juntos afinal.
O que há de tão desvantajoso na noção de “movimento”? Para começar, movimentos tendem a separar as pessoas em grupos distintos: há o movimento feminista, o ecologista, o anarquista, e eles raramente conversam entre si. Isto também exclui as pessoas comuns e intimida os novatos: “Ei, você nunca foi numa reunião, você não usa nossa camiseta, você não doou um centavo, você nem sequer leu este livro, como pode dizer que faz parte do movimento?”. Fora de um movimento podemos dizer que estamos apenas contribuindo para a disseminação de certos questionamentos e idéias. Isto atrai novas pessoas sem separar as antigas: “Que idéias são essas que você debate tanto com aquele cara?”. As pessoas podem fazer parte da mudança sem precisar ter carteirinhas de sócio e sem começar de baixo. Não há compromisso com o grupo só porque é um grupo. Só há compromisso com as suas próprias idéias. Grupos devem ser formados pelos laços de amizade e intimidade, e não por frágeis laços de idéias comuns, que no fundo podem causar mais conflitos que resoluções porque nunca são exatamente iguais. Isso também elimina a hierarquia disfarçada do “ele sabe mais, e nós sabemos pouco”. É também importante sair do mero jogo numérico de tentar converter o máximo de pessoas possível. É mais vantajoso em longo prazo desenvolver idéias entre amigos do que entre desconhecidos, cujo valor passa a ser meramente o de um número a mais para o grupo. Alcançar uma ou duas pessoas que seja, mas de maneira profunda e permanente, é melhor que atingir milhares que se esquecerão do que você disse na próxima semana.
Outras armadilhas que podemos evitar são: reduzir tudo a poucas opções: “direita ou esquerda”. “capitalismo ou socialismo”, “isto ou aquilo”. Um movimento tende a restringir seu alcance dizendo “somos um movimento pró isto, isto e isto e contra aquilo, aquilo e aquilo outro”. É também uma grande desvantagem o fato que uma pessoa raramente consegue fazer parte de mais de um movimento, mesmo que tenham objetivos parecidos, porque é sobrecarregada por ele. Devemos sempre fugir do extremismo: “abaixo tudo!”, ou o inverso “tudo é bom, tudo é válido”. É claro que precisamos de definições, mas elas não precisam ser imutáveis, devem ser flexíveis o bastante para ficar firmes sem se quebrar. Quanto maior for a descentralização de organização, mais podemos atacar por todos os lados e atrapalhar bastante a capacidade do monstro de abocanhar a “cabeça do grupo”, mas tudo isso ainda não garante que não seremos assimilados. Até agora o que foi discutido foi uma alternativa ao “como fazer”. Deve haver uma alternativa também ao “que fazer”.
Para falar disso, eu gostaria de expandir nossa metáfora do monstro que assimila tudo. Ele não simplesmente destrói movimentos, ele adquire seu “poder” quando os assimila, e se torna capaz de usá-los contra os próximos inimigos, como um vilão de desenhos animados e história em quadrinhos. Contra esse tipo de charada existem duas soluções criativas, desenvolvidas por contadores de estórias. Uma delas parte do princípio que é impossível não ser assimilado, mas ainda não está tudo perdido! A idéia é dar algo aparentemente poderoso para que o monstro engula. Uma das propriedades dessa coisa, em contato com outro elemento interno do monstro, cria uma nova coisa, imprevisível para o monstro, e que irremediavelmente o levará à morte ou anulará todos os seus poderes. A outra solução parte do princípio que com bastante paciência e observação do ponto fraco do inimigo, é possível fazer um ataque “super-hiper-efetivo”, que matará o monstro antes que ele possa dizer “eu compro”, isto quer dizer, antes que ele possa assimilar as idéias. Ambas estão sujeitas à critica, mas é o melhor que eu posso oferecer no momento.
Eu não tenho um exemplo real para dar em nenhuma das opções. Se eu soubesse de um exemplo real que funcionasse contra o Estado, eu já o teria usado. Não estou sendo enigmático, estou sendo o mais claro que posso. Tanto quanto eu sei, ainda não inventaram nada que possa fazer o papel nem da primeira idéia nem da segunda. Mas o fato de que ninguém pensou nisso ainda não significa que ninguém jamais pensará. Não podemos desistir de inventar novas idéias, principalmente porque faz muito pouco tempo que estamos nos ocupando seriamente com a questão da civilização, e só recentemente adquirimos alguns conhecimentos que realmente nos ajudam a identificar qual a verdadeira questão. No mais, um detalhe importante é lembrar que não basta destruir o monstro. Isso ele já está fazendo sozinho, ele está entrando em colapso. O problema é como deixar ele cair sem que ele destrua todos nós, ou fazer com que ele caia antes que possa maximizar ainda mais seu potencial de destruição e seu alcance.