Fisionomia das insurreições contemporâneas

Texto do livro “Aos nossos amigos” do Comitê Invisível

Um homem morre. Foi morto pela polícia, diretamente, indirectamente. É um anónimo, um desempregado, um “dealer” disto, daquilo, um estudante, em Londres, em Sidi Bouzid, Atenas ou Clichy-sous-Bois. Dizem que é um “jovem”, tenha 16 ou 30 anos. Dizem que é um jovem porque socialmente ele não é nada, e que houve um tempo em que nos tornávamos alguém quando chegávamos a adultos, onde os jovens eram precisamente aqueles que ainda não eram nada.
Um homem morre, um país subleva-se. Uma coisa não é causa da outra, apenas o detonador. Alexandros Grigoropoulos, Mark Duggan, Mohamed Bouazizi, Massinissa Guermah – o nome do morto torna-se, nesses dias, nessas semanas, o nome próprio do anonimato geral, da comum despossessão. E a insurreição é antes de mais feita por aqueles que nada são, daqueles que vogam pelos cafés, nas ruas, na vida, pela faculdade, pela Internet. Ela agrega todos os elementos flutuantes, plebeu depois pequeno-burguês, que a ininterrupta desagregação social segrega até mais não. Tudo o que é considerado marginal, ultrapassado ou sem futuro, regressa ao centro. Em Sidi Bouzid, em Kasserine, em Thala, são esses os “loucos”, os “perdidos”, os “bons em nada”, os “freaks”, que primeiramente espalharam a notícia da morte do seu companheiro de infortúnio. Eles subiram para cima das cadeiras, das mesas, dos monumentos, em todos os locais públicos, em toda a cidade. Eles sublevaram com as suas arengas quem estava disposto a ouvi-los. Logo atrás, foram os estudantes do secundário que entraram em ação, esses que não alimentam nenhuma esperança de carreira.
A sublevação dura alguns dias ou alguns meses, conduz à queda do regime ou à ruína de todas as ilusões de paz social.
Ela própria é anónima: sem líder, sem organização, sem reivindicações, sem programa. As palavras de ordem, quando as há, parecem esgotar-se na negação da ordem existente, e são abruptas: “Bazem!”, “O povo quer a queda do sistema!”, “Estamo-nos a cagar!”, “Tayyp, winter is coming”. Na televisão, nas ondas de rádio, os responsáveis martelam a sua retórica de sempre: são bandos de “çapulcu”, de vândalos, terroristas saídos de nenhures, certamente a soldo do estrangeiro. Aquele que se levanta não tem ninguém para colocar no trono em substituição, à parte talvez de um ponto de interrogação. Não são os bas-fonds, nem a classe operária, nem a pequena-burguesia, nem as multidões que se revoltam. Nada que apresente uma homogeneidade suficiente para admitir um representante. Não há nenhum novo sujeito revolucionário cuja emergência tenha escapado, até então, aos observadores. Quando se diz que “o povo” está na rua, não se trata de um povo que existisse previamente, pelo contrário, trata-se do povo que previamente faltava. Não é “o povo” que produz a sublevação, é a sublevação que produz o seu povo, suscitando a experiência e a inteligência comuns, o tecido humano e a linguagem da vida real entretanto desaparecidas. Se as revoluções do passado prometiam uma vida nova, as insurreições contemporâneas fornecem as ferramentas. Os giros de ultras do Cairo não eram grupos revolucionários antes da “revolução”, eram apenas bandos capazes de se organizar para enfrentar a polícia; é por terem tido um papel tão eminente aquando da “revolução” que eles se viram forçados a colocar, em plena situação, as questões habitualmente entregues aos “revolucionários”.
Aí reside o acontecimento: não no fenómeno mediático, que se forjou para vampirizar a revolta por via da sua celebração exterior, mas nos encontros que efetivamente se produziram ali. Eis o que é bem menos espetacular do que “o movimento” ou “a
revolução”, mas mais decisivo. Ninguém poderá dizer aquilo de que um encontro é capaz.
É desta forma que as insurreições se prolongam, molecularmente, impercetivelmente, na vida dos bairros, dos coletivos, dos squats, dos centros sociais, dos seres singulares, no Brasil como em Espanha, no Chile como na Grécia. Não porque elas ponham em marcha um programa político, mas porque elas colocam em andamento devires-revolucionários. Porque aquilo que se viveu fica a brilhar com uma tal intensidade que aqueles que o experienciaram tornam-se-lhe fiéis, não se querem separar, antes construir de facto o que agora faz falta à sua vida de antes. Se o movimento espanhol de ocupação de praças, uma vez desaparecido o ecrã-radar mediático, não tivesse sido seguido por todo um processo de mises en commum e de auto-organização, nos bairros de Barcelona e de outros sítios, a tentativa de destruição da ocupação de Can Vies, em Junho de 2014, não teria sido votada ao fracasso por três dias de motins de todo o bairro de Sants, e não se teria visto toda uma cidade participar, ato contínuo, na reconstrução do lugar atacado. Teria havido apenas alguns ocupas a protestar no meio da indiferença generalizada contra uma enésima expulsão. O que aqui se constrói não é nem a “sociedade nova” no seu estado embrionário, nem a organização que derrubará finalmente o poder para constituir um novo, é antes a potência coletiva que, por via da sua consistência e da sua inteligência, condena o poder à impotência, frustrando uma a uma todas as suas manobras.
Os revolucionários são frequentemente aqueles que as revoluções apanham mais desprevenidos. Mas há, nas insurreições contemporâneas, qualquer coisa que os desconcerta particularmente: elas já não partem de ideologias políticas, mas de verdades éticas. Aqui estão duas palavras cuja aproximação soa a qualquer espírito moderno como um oximoro. Estabelecer o que é verdadeiro é o papel da ciência, não é assim?, que não tem nada que ver com as nossas normas morais e outros valores contingentes. Para o moderno, há o Mundo de um lado, ele próprio de outro, e a linguagem para superar o abismo. Uma verdade, como nos foi ensinado, é um ponto sólido sobre o abismo – um enunciado que descreve adequadamente o Mundo. Oportunamente esquecemos a lenta aprendizagem ao longo da qual adquirimos, com a linguagem, uma relação com o mundo. A linguagem, longe de servir para descrever o mundo, ajuda-nos sobretudo a construir um. As verdades éticas não são, assim, verdades sobre o Mundo, mas as verdades a partir das quais nós nele permanecemos. São verdades, afirmações, enunciadas ou silenciosas, que se experimentam mas não se demonstram. O olhar taciturno que surge, punhos cerrados, nos olhos do pequeno chefe e que o desfigura durante um longo minuto é uma delas, e vale bem o tonitruante “temos sempre razão em revoltar-nos”. São verdades que nos ligam, a nós mesmos, ao que nos rodeia e uns aos outros. Elas introduzem-nos de uma assentada numa vida comum, a uma existência não separada, sem consideração pelos muros ilusórios do nosso Eu. Se os terranos estão prontos a arriscar a sua vida para que uma praça não seja transformada em parque de estacionamento como em Gamonal, em Espanha, que um jardim não se torne um centro comercial como em Gezi, na Turquia, que pequenos bosques não sejam transformados num aeroporto como em Notre-Dame-des-Landes, é mesmo porque aquilo de que gostamos, aquilo a que estamos ligados – seres, lugares ou ideias – também faz parte de nós, que esse nós não se reduz a um Eu que habita durante o tempo de uma vida um corpo físico limitado pela sua pele, o todo enfeitado pelo conjunto das propriedades que acredita ter. Quando se toca no mundo, somos nós próprios que somos atacados.
Paradoxalmente, mesmo quando uma verdade ética se enuncia como recusa, o facto de se dizer “Não!” coloca-nos de pés assentes na existência. Não menos paradoxalmente, o indivíduo descobre-se então tão pouco individual que basta por vezes que um só se suicide para que voe em estilhaços todo o edifício da falsidade social. O gesto de Mohamed Bouazizi imolando-se defronte do município de Sidi Bouzid comprova-o o suficiente. A sua potência de deflagração reside na afirmação despedaçante que encerra. Ele diz: “a vida que nos é dada não merece ser vivida”, “não nascemos para nos deixarmos humilhar desta forma pela polícia”, “podem reduzir-nos à insignificância, mas nunca nos retirarão a parte de soberania que pertence aos vivos” ou ainda “vede como nós, nós os ínfimos, nós os pouco existentes, nós os humilhados, estamos para lá dos miseráveis meios pelos quais conservais fanaticamente o vosso poder decrépito”. Foi isto que se ouviu nitidamente naquele gesto. Se a entrevista televisiva de Waël Ghonim, no Egipto, após o seu sequestro por parte dos “serviços”, teve um tal efeito de reviravolta sobre a situação, foi porque do fundo das suas lágrimas explodia também uma verdade no coração de cada um. De igual modo, durante as primeiras semanas de Occupy Wall Street – antes que os habituais gestores de movimento instituíssem os seus pequenos “grupos de trabalho” encarregues de preparar as decisões que a assembleia teria apenas de votar – o modelo das intervenções diante das 1500 pessoas lá presentes era este tipo que um dia tomou a palavra para dizer: “Hi! What’s up? My name is Mike. I’m just a gangster from Harlem. I hate my life. Fuck my boss! Fuck my girlfriend! Fuck the cops! I just wanted to say: I’m happy to be here, with you all” (“Olá! Como é que isso vai? O meu nome é Mike. Sou apenas um gangster de Harlem. Odeio a minha vida. Que se foda o meu patrão! Que se foda a minha namorada! Que se fodam os polícias! Só vos queria dizer: estou feliz por estar aqui, com todos vocês”). E as suas palavras eram repetidas sete vezes pelo coro de “megafones humanos” que substituíam os microfones proibidos pela polícia.


O verdadeiro conteúdo de Occupy Wall Street não era a reivindicação, colada ao movimento como um post-it sobre um hipopótamo, de melhores salários, de casas decentes ou de uma segurança social mais generosa, mas a repugnância pela vida que nos fazem viver. A repugnância por uma vida onde estamos todos sozinhos, sozinhos face à necessidade de cada um ganhar a sua vida, de se albergar, de se alimentar, de se divertir ou de se tratar. Repugnância pela forma de vida miserável do indivíduo metropolitano – desconfiança escrupulosa/ ceticismo refinado, conquistador/ amores superficiais, efémeros/ sexualização desenfreada, em consequência, de qualquer encontro/ seguido de regresso periódico a uma separação confortável e desesperada/ distração permanente, portanto ignorante de si, portanto medo de si, portanto medo do outro. A vida comum que se esboçava em Zuccotti Park, em tendas, ao frio, à chuva, cercada pela polícia na praça mais sinistra de Manhattan, não era certamente la vita nuova inaugurada, mas apenas o ponto de onde se começava a tornar evidente a tristeza da existência metropolitana. Apercebíamo-nos, enfim juntos na nossa condição comum, da nossa igual redução ao grau de empreendedor de si. Esta mudança existencial foi o coração pulsante de Occupy Wall Street, enquanto Occupy Wall Street foi fresco e vivaz.
O que está em jogo nas insurreições contemporâneas é a questão de saber o que é uma forma desejável de vida e não a natureza das instituições que a subjugam. Mas reconhecê-lo implicaria o reconhecimento imediato da nulidade ética do Ocidente. O que impediria que se colocasse a vitória deste ou daquele partido islâmico, após esta ou aquela rebelião, na conta do suposto atraso mental das populações. Haveria, pelo contrário, que admitir que a força dos islamitas reside justamente no facto de a sua ideologia política se apresentar, antes de mais, como um sistema de prescrições éticas. Dito de outra forma, o seu maior sucesso em relação aos outros políticos deve-se precisamente a não se colocarem de forma central no terreno da política. Poder-se-á então parar de choramingar ou de gritar bicho-papão de cada vez que um adolescente sincero prefira integrar as fileiras dos “jihadistas” em vez da multidão suicidária dos assalariados do sector terciário. E aceitaremos assim, de forma adulta, descobrir a carantonha que fazemos nesse espelho pouco abonatório.
Na Eslovénia rebentou em 2012, na tranquila cidade de Maribor, uma revolta de rua que seguidamente inflamou uma boa parte do país. Uma insurreição neste país com ar quase helvético, eis algo desde logo inesperado. Mas o mais surpreendente é que o ponto de partida tenha sido a revelação de que à medida que os radares de velocidade se multiplicavam nas ruas da cidade, uma única empresa privada próxima do poder embolsava a quase totalidade das multas. Poderá haver algo menos “político”, como ponto de partida para uma insurreição, do que uma questão de radares de estrada? Mas poderá haver algo mais ético do que a recusa em se deixar tosquiar como um carneiro? É Michel Kolhaas no século XXI. A importância do tema da corrupção reinante, em praticamente todas as revoltas contemporâneas, atesta que estas são éticas antes de serem políticas, ou que são políticas precisamente naquilo que desprezam da política, onde se incluí a política radical. Enquanto ser de esquerda quiser dizer: negar a existência de verdades éticas e substituir esta carência por uma moral tão frágil quanto oportuna, os fascistas poderão continuar a passar como única força política afirmativa, como os únicos que não se desculpam por viverem como vivem. Eles irão de sucesso em sucesso e continuarão a fazer convergir para eles próprios a energia das revoltas nascentes.
Talvez esteja também aí a razão do fracasso, sem isso incompreensível, de todos os “movimentos contra a austeridade”, que deveriam nas condições atuais incendiar o horizonte e que, pelo contrário, se perpetuam numa Europa que tenta o seu décimo frouxo relançamento. É que a questão da austeridade não é colocada no terreno em que de facto se situa: o de um brutal desacordo ético, um desacordo sobre o que é viver, o que é viver bem. Dizendo de forma sumária: ser austero, nos países de cultura protestante, é antes de mais tido como virtude; ser austero, numa boa parte do sul da Europa, é no fundo ser um pobre coitado. O que se passa hoje não é apenas que alguns queiram impor a outros uma austeridade económica que os últimos não desejam. O que se passa é que alguns consideram que a austeridade é, em absoluto, uma boa coisa, ao passo que outros consideram, sem verdadeiramente o ousarem dizer, que a austeridade é, em absoluto, uma miséria. Limitar-se a lutar contra os planos de austeridade é não apenas acrescentar algo a este mal-entendido, mas também, por acréscimo, estar seguro de perder, ao admitir implicitamente uma ideia de vida que não nos convém. Não há que perscrutar demasiado o pouco entusiasmo das “pessoas” em se lançar numa batalha perdida à partida. O que é preciso é antes de mais assumir o verdadeiro desafio do conflito: uma certa ideia protestante de felicidade – ser trabalhador, poupado, sóbrio, honesto, diligente, casto, modesto, discreto – que se pretende impor a toda a Europa. O que é necessário opor aos planos de austeridade é uma outra ideia de vida, que consista, por exemplo, em partilhar em vez de economizar, em conversar em vez de calar, em lutar em vez de sofrer, em celebrar as vitórias em vez de estar à defensiva, em entrar em contacto em vez de permanecer na sua reserva. É imensurável a força que os movimentos indígenas do subcontinente americano recolheram ao assumir o buen vivir como afirmação política. Por um lado, isto traça um claro perfil daquilo pelo que e contra o que se luta; por outro, abre a porta à descoberta serena das mil outras formas de entendimento da “vida boa”, formas que por serem diferentes não são no entanto inimigas, pelo menos não necessariamente.

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