Guerra ao Smart

Nos anos 1980, Terry Winograd, o mentor de Larry Page, um dos fundadores da Google, e Fernando Flores, antigo ministro da Economia de Salvador Allende, escreviam em relação à conceção informática que esta é “de ordem ontológica. Ela constitui uma intervenção sobre o fundo da nossa herança cultural e empur-ra-nos para fora dos hábitos arraigados da nossa vida, afetando profundamente as nossas maneiras de ser. (…) Ela é necessariamente reflexiva e política.” Pode-se dizer o mesmo da cibernética. Oficialmente, ainda somos governados pelo velho paradigma ocidental dualista onde há o sujeito e o mundo, o indivíduo e a sociedade, os homens e as máquinas, o espírito e o corpo, o vivo e o inerte; são distinções que o senso comum ainda tem como válidas. Na realidade, o capitalismo cibernetizado pratica uma ontologia, e portanto uma antropologia, cujas inovações reserva aos seus quadros. O sujeito ocidental racional, consciente dos seus interesses, que aspira ao domínio do mundo e que por isso é governável, dá lugar à conceção cibernética de um ser sem interioridade, de um selfless self, de um Eu sem Eu, emergente, climático, constituído pela sua exterioridade, pelas suas relações. Um ser que, armado com o seu Apple Watch, acaba por se apreender integralmente a partir de fora, a partir das estatísticas que cada um dos seus comportamentos engendra. Um Quantified Self que gostaria muito de controlar, medir e desesperadamente otimizar cada um dos seus gestos, cada um dos seus afetos. Para a cibernética mais avançada, já não há o homem e o seu meio ambiente, mas antes um ser-sistema, ele próprio inscrito num conjunto de sistemas complexos de informações, lugares de processos de auto-organização; um ser que percebemos melhor a partir da via média do budismo indiano do que de Descartes. “Para o homem, estar vivo equivale fazer parte de um amplo sistema mundial de comunicação”, avançava Wiener em 1948.Tal como a economia política produziu um homo economicus gerenciável no quadro dos Estados industriais, a cibernética produz a sua própria humanidade. Uma humanidade transparente, esvaziada pelos próprios f luxos que a atravessam, eletrizada pela informação, ligada ao mundo por uma quantidade sempre crescente de dispositivos. Uma humanidade inseparável do seu ambiente tecnológico, porque por ele constituída e aí conduzida. Tal é agora o objeto da governação, já não o homem nem os seus interesses, mas o seu “ambiente social”. Um ambiente cujo modelo é a cidade inteligente. Inteligente porque produz, graças aos seus sensores, a informação cujo tratamento permite a sua autogestão em tempo real. E inteligente porque produz e é produzida por habitantes inteligentes. A economia política reinava sobre os homens deixando-os livres de prosseguir os seus interesses, a cibernética controla-os, deixando-os livres para comunicar. “Devemos reinventar os sistemas sociais num quadro controlado”, resumia recentemente um professor qualquer do MIT. A visão mais petrificante e mais realista da metrópole do futuro não está nas brochuras que a IBM distribui aos municípios para lhes vender sistemas de controlo dos f luxos de água, de eletricidade ou do tráfego viário. É antes essa que se desenvolveu a priori “contra” a visão orwelliana da cidade: «smart cities» coproduzidas pelos seus habitantes (ou, pelo menos, pelos mais conectados de entre eles). Um outro professor do MIT em viagem pela Catalunha congratula-se por ver a sua capital tornar-se pouco a pouco uma “fab city”: “Sentado aqui em pleno centro de Barcelona vejo que se inventa uma nova cidade na qual todo o mundo poderá aceder às ferramentas para que ela se torne completamente autónoma.” Os cidadãos já não são mais subalternos mas sim smart people; “receptores e geradores de ideias, de serviços e de soluções”, como diz um deles. Nesta visão, a metrópole não se torna smart pela decisão e ação de um governo central, ela surge, tal como uma “ordem espontânea”, quando os seus ha-bitantes “encontram novos meios de fabricar, ligar e dar sentido aos seus próprios dados”. Detrás da promessa futurista de um mundo de homens e de objetos integralmente conectados – quando carros, frigoríficos, relógios, aspiradores e vibradores estiverem diretamente ligados entre si e à Internet –, há o que já aqui está: o facto de que o mais polivalente dos sensores esteja já em funcionamento – eu–próprio. “Eu” partilho a minha geo-localização, o meu estado de humor, as minhas ideias, o relato do que vi hoje de incrível ou de incrivelmente banal. Eu corri; imediatamente partilhei o meu percurso, o meu tempo, as minhas performances, e a sua autoavaliação. Permanentemente posto as fotos das minhas férias, das minhas noitadas, dos meus motins, dos meus colegas, daquilo que vou comer como daquilo que vou foder. Parece que não estou a fazer nada e no entanto produzo, em permanência, dados. Quer trabalhe ou não, a minha vida quotidiana, enquanto stockde informações, continua integralmente valorizável. Eu melhoro em contínuo o algoritmo.“Graças às redes difusas de sensores, teremos sobre nós próprios o ponto de vista omnisciente de Deus. Pela primeira vez, podemos cartografar com precisão o comportamento de massas das pessoas, até na sua vida quotidiana”, entusiasma-se um tal professor do MIT. Os grandes reservatórios refrigerados de da-dos constituem a despensa do governo atual. Ao perscrutar as bases de dados produzidas e continuadamente atualizadas pela vida quotidiana dos humanos conectados, ele procura as correlações que permitam estabelecer não leis universais, nem mesmo os “porquês”, mas os “quandos” e os “quês”, previsões pontuais e situadas, oráculos. Gerir o imprevisível, governar o ingovernável e já não tentar aboli-lo, essa é a ambição declarada da cibernética. A gestão do governo cibernético não é somente, como no tempo da economia política, prever para orientar a ação, mas agir diretamente sobre o virtual, estruturar os possíveis. A polícia de Los Angeles dotou-se há alguns anos de um novo programa informático chamado “Prepol”. Ele calcula, a partir de uma multidão de estatísticas sobre o crime, as probabilidades que este ou aquele delito seja cometido, bairro a bairro, rua a rua. É o próprio programa informático que, a partir dessas probabilidades atua-lizadas em tempo real, comanda as patrulhas de polícia na cidade. Um guru cibernético escrevia, no jornal Le Monde em 1948: “Poderemos sonhar com um tempo em que a máquina de governar virá suprir – para o bem ou para o mal, quem o saberá? – a insuficiência patente nos dias de hoje das lideranças e dos apare-lhos habituais da política.” Cada época sonha a seguinte, pronta a que o sonho de uma se torne no pesadelo quotidiano da outra. O objeto da grande recolha de informações pessoais não é um seguimento individualizado do conjunto da população. A insinuação na intimidade de cada um e de todos serve menos para produzir fichas individuais do que grandes bases estatísticas que ganham sentido pela quantidade. É mais econômico correlacionar as características comuns dos indivíduos numa multidão de “perfis”, e os devires prováveis que daí decorrem. Não interessa o indivíduo presente e inteiro, mas apenas aquilo que permite de-terminar as suas linhas de fuga potenciais. O interesse em aplicar vigilância sobre perfis, “acontecimentos” e virtualidades é que as entidades estatísticas não se revoltam; e que os indivíduos podem sempre pretender não ser vigiados, pelo menos enquanto pessoas. Enquanto a governamentalidade cibernética opera já a partir de uma lógica completamente nova, os seus sujeitos atuais continuam a pensar-se de acordo com o antigo paradigma. Cremos que os nossos dados “pessoais” nos pertencem, como o nosso carro ou os nossos sapatos, e que não fazemos mais do que exercer a nossa “liberdade individual” ao permitir que a Google, o Facebook, a Apple, a Amazon ou a polícia tenham acesso a eles, sem vermos que isso tem efeitos imediatos sobre aqueles que a tal se recusam, e que doravante serão tratados como suspeitos, potenciais desviantes. “Sem dúvida que”, preveem os autores de The New Digital Age, “no futuro ainda haverá pessoas a resistir à adoção e uso de tecnologias, pessoas que recusam ter um perfil virtual, um smartphone ou o menor contacto com sistemas de dados em linha. Por seu lado, um governo pode suspeitar que pessoas que desertem completamente disso tudo tenham algo a esconder e de que são assim mais suscetíveis de infringir a lei. Como medida antiterrorista, o governo constituirá então um fi-cheiro de «pessoas escondidas». Se o leitor não tem nenhum perfil conhecido em nenhuma rede social ou não tem um contrato de telemóvel, e se é particularmente difícil encontrar referências sobre si na Internet, o leitor poderá muito bem ser candidato a um ficheiro desses. Poderá também ver-se alvo de um conjunto de medidas especiais que incluam revistas rigorosas nos aeroportos e mesmo proibição de viajar.”

 

Trecho de “Aos nossos Amigos” do Comitê Invisível

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Da pesquisa

Não é a fraqueza das lutas que explica o desvanecimento de qualquer perspetiva revolucionária: é a ausência de perspectiva revolucionária credível que explica a fraqueza das lutas. Obcecados que somos por uma ideia política de revolução, negligenciamos a sua dimensão técnica. Uma perspetiva revolucionária já não tem que ver com a reorganização institucional da sociedade, mas com a configuração técnica dos mundos.

Trata-se, enquanto tal, de uma linha traçada no presente, não uma imagem flutuante no futuro. Se queremos reaver uma perspetiva, teremos que reagrupar a constatação difusa de que este mundo não pode mais continuar desejando construir outro melhor. Pois este mundo mantém-se, antes de mais, por via da dependência material que faz de cada um, na sua simples sobrevivência, dependente do bom funcionamento geral da máquina social.

Teremos que dispor de um aprofundado conhecimento técnico da organização deste mundo: um conhecimento que permita, simultaneamente, colocar fora de uso as estruturas dominantes e reservar-nos o tempo necessário à organização de uma desconexão material e política do curso geral da catástrofe, desconexão que não seja assombrada pelo espectro da penúria, pela urgência da sobrevivência.

Para o dizer de forma clara: enquanto não soubermos como nos livrar das centrais nucleares e enquanto desmantelá-las for um negócio para aqueles que as querem eternas, aspirar à abolição do Estado continuará a o fazer sorrir; enquanto a perspetiva de um levantamento significar por certo penúria de cuidados médicos, de alimentos ou de energia, não haverá nenhum movimento de massas decidido. Por outras palavras: temos que retomar um meticuloso trabalho de pesquisa. Temos de ir ao encontro, em todos os sectores, em todos os territórios que habitemos, daqueles que dispõem de conhecimentos técnicos estratégicos. É somente a partir daí que os movimentos ousarão verdadeiramente “bloquear tudo”.

É somente a partir daí que se libertará a paixão de experimentar uma outra vida, paixão técnica em larga escala, que é como a inversão da situação de dependência tecnológica de todos. Este processo de acumulação de saber, de estabelecimento de cumplicidades em todos os domínios, é a condição de um regresso sério e massivo da questão revolucionária.“O movimento revolucionário não foi vencido pelo capitalismo, mas pela democracia”, dizia Mario Tronti. Ele foi ainda vencido por não ter conseguido apropriar-se do essencial da potência operária. O que faz o operário não é a sua exploração por um patrão, o que ele partilha com qualquer outro assalariado. Aquilo que positivamente faz o operário é o seu domínio técnico, incorporado, de um modo de produção particular. Há aí uma inclinação ao mesmo tempo sábia e popular, um conhecimento apaixonado que constituía a riqueza própria do mundo operário antes de o capital, precavendo-se contra o perigo aí contido e não sem antes ter previamente sugado todo esse conhecimento, ter decido fazer dos operários operadores, vigilantes e agentes de manutenção das máquinas. Mas mesmo aí, a potência operária mantém-se: quem sabe fazer funcionar um sistema também o sabe sabotar eficazmente. Ora, ninguém pode dominar individualmente o conjunto de técnicas que permitem ao sistema atual reproduzir-se. Isso, apenas uma força coletiva o pode fazer.

Construir uma força revolucionária, nos dias de hoje, é justamente isso: articular todos os mundos e todas as técnicas revolucionariamente necessárias, agregar toda a inteligência técnica numa força histórica e não num sistema de governo.O fracasso do movimento francês de luta contra a reforma das pensões, do Outono de 2010, ter-nos-á dado uma áspera lição: se a CGT teve mão sobre toda a luta, foi em virtude da nossa insuficiência nesse plano. Teria bastado fazer do bloqueio das refinarias, sector onde ela é hegemônica, o centro de gravidade do movimento. E de seguida, ganhar a possibilidade de a qualquer momento apitar o fim da partida, reabrindo as veias das refinarias e afrouxando dessa forma toda a pressão sobre o país. O que então faltou ao movimento foi precisamente um conhecimento mínimo do funcionamento material deste mundo, conhecimento que se encontra disperso nas mãos dos operá-rios, concentrado na carola de alguns engenheiros e certamente tornado comum, no lado adverso, numa qualquer obscura instância militar. Se tivéssemos sabido parar o aprovisionamento de gás lacrimogêneo da polícia ou se tivéssemos sabido interromper por um dia a propaganda televisiva, se tivéssemos sabido privar as autoridades de eletricidade, podemos ter a certeza de que as coisas não teriam acabado tão desgraçadamente. De resto, temos que considerar que a principal derrota política do movimento terá sido deixar ao Estado, na forma de requisições policiais, a prerrogativa estratégica de determinar quem teria gasolina e quem dela seria privado. “Se hoje em dia quiser desembaraçar-se de alguém, deverá atacar as suas infraestruturas”, escreve com muita justeza um universitário norte-americano.

Desde a Segunda Guerra Mundial que a Força Aérea norte-americana não parou de desenvolver a ideia de “guerra infraestrutural”, vendo nos equipamentos civis mais banais os melhores alvos para pôr de joelhos os seus adversários. Tal explica, aliás, que as infraestruturas estratégicas deste mundo estejam rodeadas de um crescente sigilo. Para uma força revolucionária, não faz sentido saber como bloquear a infraestrutura do adversário, se não se souber como a pôr a funcionar em seu proveito, caso seja necessário. Saber destruir o sistema tecnológico supõe experimentar e pôr em prática simultaneamente as técnicas que o tornam supérfluo. Regressar à terra é, para começar, não mais viver na ignorância das condições da nossa existência.

 

Esse texto é parte do livro Aos Nossos Amigos

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A recuperação no movimento feminista

[Nota do blog] Recuperação é o nome que se dá ao processo de cooptação de movimentos e tendências anticapitalistas pelo capitalismo. O termo foi cunhado pelos autores da Internacional Situacionista, que influenciaram fortemente as revoltas populares das décadas de 60 e 70 pelo mundo todo, sendo a mais conhecida a que ocorreu em Paris, em Maio de 1968.

TECNOLOGIA NÃO É NEUTRA

Na América Latina, o uso das redes sociais e das novas tecnologias cresce muito mais rápido do que a justiça e a igualdade.
Esse uso é permeado, portanto, pelas dinâmicas de desigualdade e exclusão. Os sites, aplicativos, redes sociais e plataformas funcionam por meio de algoritmos, programados para processar uma quantidade muito grande de informações que cedemos quando utilizamos a internet. O algoritmo é uma sequência definida de instruções e procedimentos que devem ser seguidos para executar tarefas e solucionar problemas nos programas de computadores e celulares. É como a construção de um prédio, onde são definidos os passos que devem necessariamente ser seguidos para chegar ao resultado definido.

Os algoritmos programados pelos funcionários das grandes empresas correspondem aos interesses particulares
delas e reproduzem uma série de estereótipos e preconceitos.

O problema não é a tecnologia em si. Se usada para atender o interesse coletivo, a tecnologia facilita o trabalho e
aproxima pessoas. Mas essas empresas direcionam a tecnologia para servir aos modelos capitalistas de negócios, que tratam a nossa vida como mais uma mercadoria para aumentar seu lucro. Desta maneira, reproduzem e aprofundam as desigualdades da sociedade capitalista, racista e patriarcal.

Pelo menos quatro problemas muito graves estão relacionados a isso:

Cada vez mais, as cidades, as casas e espaços em geral possuem câmaras de vigilância em nome da garantia da
segurança. A tecnologia destas câmaras são propriedade de empresas privadas que, em alguns casos, atuam em parceria com o poder público. Com isso, as empresas têm uma alta capacidade de coletar informações sobre a vida das pessoas, seus deslocamentos e companhias, suas atividades privadas, públicas e políticas. São várias as denúncias do racismo que orientam os algoritmos programados para alertar quando existe a presença de pessoas ou atividades “suspeitas”. Quem definiu o que é uma atividade suspeita? Ou como se parece uma pessoa suspeita?

O fato de que nossos dados estão todos armazenados por empresas privadas e governos faz com que hoje se

configure um processo de vigilância em massa. Se, antes, era necessário um aparato muito caro para espionar a conduta de cidadãos, hoje basta ter um celular no bolso para que sejam gravados os áudios
e imagens da nossa vida cotidiana. Isso é útil não apenas para a publicidade, mas para a criminalização dos movimentos sociais e de qualquer pessoa cuja conduta seja desviar das leis, por mais injustas que algumas leis possam ser.

No caso das redes sociais, os algoritmos também escolhem os assuntos e pessoas que mais aparecem para cada
usuário, filtrando conteúdos de acesso de acordo com cada comportamento na internet. Por exemplo, se curtimos, compartilhamos e comentamos as postagens de determinadas pessoas, provavelmente elas e pessoas parecidas a elas irão aparecer com mais frequência na nossa linha do tempo. Quando olhamos análises das redes sociais sobre temas da política atual, vemos que, ao invés do debate e da troca de informações, existem bolhas que não dialogam entre si. Desta maneira, as pessoas vão convivendo cada vez mais com gente muito parecida com elas. Não por acaso, temos visto tanta dificuldade e agressividade de lidar com as diferenças e com as divergências políticas. Cresce a banalização do ódio e a falta de capacidade para o diálogo, que é um pressuposto
da vida na democracia. Torna-se comum a ideia de banir quem tiver outra opinião, outra forma de viver a sexualidade, outra classe ou outra cor. E assim vai se tecendo uma lógica de autoritarismo e intolerância muito perigosa, que prepara culturalmente as pessoas para encararem o fascismo com naturalidade.

Os algoritmos das redes sociais censuram alguns conteúdos e permitem outros. Quem decide isso? Lembramos, de novo, de casos recentes, em que as fotos de mulheres onde apareciam seios – seja quando fosse parte da cultura indígena, ou quando retratasse mulheres amamentando – foram retiradas automaticamente do Facebook. Por outro lado, os perfis, grupos e comunidades que incitam o ódio e a violência contra as mulheres sempre são denunciados por muita gente, muitas vezes, e mesmo assim continuam no ar. Os algoritmos patriarcais e racistas acham que o corpo das mulheres é um problema – quando não é usado em propagandas – e são coniventes com a violência contra as mulheres.

 

 

 

APLICATIVOS QUE TRANSFORMAM NOSSAS VIDAS EM LUCRO

Precisamos estar alertas. Hoje vemos, por exemplo, vários grupos de mulheres nas redes sociais trocando experiências para parar de tomar hormônios contraceptivos. Isso é positivo, considerando que, desde cedo e para qualquer coisa, nos receitam pílulas para a pele, para os pelos, para não engravidar. Interromper o uso da pílula, em muitos casos, significa não aceitar as imposições da indústria farmacêutica e do poder médico. E recuperar, no caso das mulheres heterossexuais, que a responsabilidade com a contracepção deve ser das duas pessoas envolvidas na relação sexual. Contudo, alguns aplicativos foram programados com a intenção explícita de reunir dados sobre a saúde das mulheres para entregá-los ao mercado. Isso demonstra que as tecnologias não são neutras e que algumas questões levantadas pelo feminismo são incorporadas para que as empresas tenham ainda mais lucros.

Um estudo do grupo Coding Rights analisou alguns aplicativos relacionados aos ciclos menstruais, que são usados por milhões de mulheres – em sua maioria adolescentes e jovens. Os aplicativos, como o Glow, usam a necessidade de autoconhecimento do corpo, defendida pelas feministas, para que as mulheres disponibilizem informações sobre seu cotidiano, seus sentimentos, hábitos alimentares e sexuais. Os incômodos com a menstruação e as vivências, desejos e práticas das mulheres são transformados em informações quantificáveis, que poderão servir para que as transnacionais farmacêuticas vendam mais medicamentos.

Esse estudo aborda muitas questões que são caras para essa nossa discussão desde uma perspectiva feminista.
Somos nós quem produzimos as informações que se tornam valor quando apropriadas pelas empresas, seja nas redes sociais, nos aplicativos sobre menstruação ou naqueles que contam nossos passos e calorias. Esse é um tempo da nossa vida que é apropriado, como mais uma forma de trabalho não remunerado.

A nossa vida e o nosso comportamento são as mercadorias. As empresas donas dos aplicativos podem guardar nossos dados e usar conforme seja de seu interesse. Viramos números, fonte de lucro e propriedades das empresas, mas tudo isso acontece legitimado com um discurso de que podemos escolher e de que isso faz parte da nossa liberdade.

 

Texto completo aqui

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A Libertação das Ruas

As ruas, que já foram dos principais instrumentos para a expressão coletiva e convivência comunitária, foram resumidas hoje ao status de “passarelas” para que os carros “desfilem”; São apenas vias pelas quais saímos e chegamos aos nossos destinos para ficarmos aprisionados: no trabalho, nas escolas, nos mercados, nas igrejas (ou nas versões contemporâneas delas, os shopping center’s), e etc.

Ao nos deslocarmos por elas, é significativo que nos vejamos uns aos outros apenas atrás de vidros, enclausurados dentro do carro, nossa “bolha” que nos priva da convivência com nossos iguais e do contato com a natureza. Na nossa “bolha” estamos em constante competição com a natureza e uns com os outros.

Contra a natureza, nos privamos do vento a bater no rosto, do frescor da chuva e do calor que já não nos toca a pele, ao mesmo tempo em que emitimos gases que aquecem a atmosfera e matam o planeta lentamente, simplesmente pelo “conforto” do ambiente condicionado aos nossos padrões industrializados.

Contra os outros competimos para chegar primeiro, seja aonde for que estejamos indo. Brigamos e nos estressamos por cada cortada, por cada freada, por cada sinal fechado simplesmente porque a nossa “bolha” de conforto mais parece uma prisão, ou então porque tempo é dinheiro e tempo se locomovendo não é produtivo…

Pense nos usos mais variados usos que teríamos para as ruas, sem os carros: poderiam ser transformados em jardins e cozinhas comunitárias, poderiam ser realizados teatros públicos e exposições de ideias científicas e filosóficas, poderiam ser convertidas em rodas de debates sobre assuntos escolhidos, poderiam ser usadas para comitês discutindo melhorias no bairro. Também poderiam ser convertidas em locais de dádiva, onde seriam oferecidos serviços e itens variados, gratuitamente. Ou seja, uma infinidade de opções. Seriam, enfim, um local onde as nossas habilidades humanas iriam florescer, onde nossa criatividade, aliada a das demais pessoas, seria usada para transformar as coisas a nossa volta. Procuraríamos, no lugar de nos “qualificarmos” para um emprego, ou seja, nos acostumarmos a exercer uma atividade sem significado que detestamos, a ter um controle espontâneo de nossas mentes e membros, que serviriam de meios de expressão de nós mesmos e de confecção de ferramentas para melhorar a vida de todos ao nosso redor.

A satisfação de nossas vidas proveria através da expressão dessa individualidade, da descoberta de inúmeras formas de criação coletiva e da felicidade de realizá-las em conjunto com as demais pessoas. A rua seria, finalmente de fato, pública: todos poderiam participar e ninguém precisaria pagar nada. Ou seja, teríamos algo diferente do que os atuais clubes privados, quase sempre geridos com fins lucrativos que limitam a experiência dos sócios ao “consumo” de um espaço artificial que são impedidos de alterar. Fica mais fácil entender as revoltas generalizadas que terminavam com carros sendo virados ou incendiados em maio de 1968, na França: é uma revolta, frequentemente inconsciente, contra o trabalho alienado. Pela transformação de nós mesmos em simples apêndices sem consciência de uma máquina sem consciência, seja ela física ou burocrática.

Essa visão assombrosa de todo potencial que não é usado para criarmos coisas nós mesmos ativamente ou para nos conectarmos uns com os outros, mas para a produção de uma coleção infindável de mercadorias cujas propriedades não podemos decidir diretamente, que sequer são meios de enriquecer nossas vidas, mas apenas nossa atividade criativa estocada em objetos postos a venda num mercado é o que, inconscientemente, nos faz reclamar toda segunda quando acordamos para ir ao trabalho. E as ruas é são o primeiro simbolo dessa privação com que nos deparamos. Cabe a nós libertá-las.

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O Cavalo de Ruuskanen

Ao chegar o terceiro inverno da crise do mundo
Os camponeses de Nivala derrubaram árvores como de costume
E como de costume os cavalos pequenos arrastaram os troncos de madeira
Até os rios, mas este ano
Receberam apenas cinco marcos finlandeses por um tronco, o preço portanto
De um pedaço de sabão. E ao chegar a quarta primavera da crise
Foram leiloadas as propriedades dos que não haviam pago os impostos no outono.
E os que haviam pago não puderam comprar rações para seus cavalos
Indispensáveis no trabalho da floresta e do campo
De modo que as costelas dos cavalos apontavam no
Pêlo sem lustre, e então o magistrado de Nivala
Foi ao camponês Ruuskanen, em seu campo, e falou
Com autoridade: “Você não sabe que existe uma lei que
Proíbe a judiação de animais? Olhe seu cavalo. As costelas
Estão à mostra. Este cavalo está doente
E deve ser morto”. E foi embora. Mas três dias depois
Ao voltar, ele viu Ruuskanen novamente
Com seu cavalo esquálido no campo minúsculo, como se
Nada tivesse acontecido e não houvesse lei nem magistrado.
Aborrecido
Enviou dois guardas com ordens estritas
De tomar o cavalo a Ruuskanen e levar
O animal maltratado imediatamente ao matadouro.
Mas os guardas, puxando o cavalo de Ruuskanen
Através da aldeia, viam, olhando em torno
Cada vez mais camponeses saindo das casas
Seguindo-os atrás do cavalo, e no fim do povoado
Pararam, inseguros, e o camponês Niskanen
Um homem devoto, amigo de Ruuskanen, sugeriu
Que a vila arranjasse alguma ração para o cavalo, de modo que
A matança não fosse necessária. Então, em vez do cavalo
Os guardas levaram consigo de volta, ao magistrado amante dos bichos
O camponês Niskanen com sua feliz mensagem
Em favor do cavalo de Ruuskanen. “Ouça, senhor magistrado”, disse ele
“Este cavalo não está doente, apenas sem ração, e Ruuskanen
Morrerá de fome sem seu cavalo. Mate o cavalo
E logo terá que matar o próprio homem, senhor magistrado.”
“Olhe como fala comigo”, disse o magistrado. “O
Cavalo está doente e lei é lei, por isso será morto.”
Preocupados
Voltaram os dois guardas com Niskanen
Retiraram do estábulo de Ruuskanen o cavalo de Ruuskanen
Prepararam-se para levá-lo ao matadouro, mas
Ao chegarem novamente à saída do lugar, lá estavam
Cinquenta camponeses como se fossem grandes pedras, e
Olhavam em silêncio para os dois guardas. Em silêncio
Deixaram estes o cavalo velho na saída do lugar.
E sempre em silêncio
Os camponeses de Nivala conduziram o cavalo de Ruuskanen
De volta ao estábulo.
“Isto é rebelião”, disse o magistrado. Um dia depois
Uma dúzia de guardas com rifles chegou com o trem de Oulu
A Nivala, a vila tão agradavelmente situada
Rodeada de prados, apenas para demonstrar
Que lei é lei. Naquela tarde
Os camponeses retiraram das paredes nuas
Seus fuzis, pendurados junto aos quadros
Pintados com frases bíblicas. Os velhos fuzis
Da guerra civil de 1918, que lhes haviam distibuído
Para usar contra os vermelhos. Agora
Apontavam-nos contra os doze guardas
De Oulu. Naquela mesma noite
Trezentos camponeses, vindos de muitas
Aldeias vizinhas, sitiaram a casa do magistrado
Na colina perto da igreja. Hesitante
O magistrado apareceu na escada, acenou com a mão branca e
Falou do cavalo de Ruuskanen com palavras bonitas
Prometendo deixá-lo viver, mas os camponeses
Já não falavam do cavalo de Ruuskanen, mas sim exigiam
Que os leilões cessassem e que os impostos
Fossem perdoados. Amedrontado até a morte
O magistrado correu ao telefone, pois os camponeses
Haviam esquecido não apenas que havia uma lei, mas também
Que havia um telefone na casa do magistrado, e agora ele telefonava
Seu grito de socorro a Helsinque, e na mesma noite
Chegaram de Helsinque, a capital, em sete veículos
Duzentos soldados com metralhadoras, na frente
Um tanque. E com esta máquina de guerra
Foram derrotados os camponeses, açoitados na Casa do Povo
Seus líderes arrastados ao Tribunal de Nivala e condenados
A um ano e meio de prisão, para que a ordem
Fosse restaurada em Nivala.
Mas sobretudo, em seguida somente
O cavalo de Ruuskanen foi anistiado
Por intervenção pessoal do Ministro do Estado
Em resposta às muitas cartas recebidas.

Bertolt Brecht.
Poemas: 1913-1956; trad. Paulo César de Souza. Ed. 34, 2000.

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A Internet Como Uma Nova Cerca

Esse texto é um recorte da zine de mesmo nome do coletivo CrimethInc, traduzido e disponibilizado no seguinte endereço

Recomendamos fortemente a leitura do material completo

Um dos eventos que serviu de base para a transição ao capitalismo foi o primeiro
cercamento dos bens comuns, quando a terra que antes era usada livremente por
todas as pessoas foi tomada e transformada em propriedade privada. Este processo
se repetiu diversas vezes ao longo do desenvolvimento do capitalismo.
Parece que nós não conseguimos reconhecer os “bens comuns” a menos que
estejam ameaçados com o cercamento. Ninguém pensa na canção “Parabéns
Pra Você” como um bem comum, pois a Time Warner (que alega possuir os
direitos autorais) não teve sucesso em lucrar com toda a cantoria em festinhas de
aniversário. Originalmente, camponeses e povos indígenas também não viam a
terra como propriedade em comum — pelo contrário, eles consideravam absurda
a ideia de que a terra poderia ser propriedade de alguém.
Seria igualmente difícil, há apenas algumas gerações atrás, imaginar que um
dia se tornaria possível exibir anúncios publicitários para as pessoas sempre que
elas conversassem juntas, ou mapear os seus gostos e relações sociais num piscar
de olhos, ou acompanhar as suas linhas de raciocínio em tempos real ao
monitorar as suas buscas no Google.
Nós sempre tivemos redes sociais, mas ninguém podia usá-las para vender
anúncios — nem elas eram tão facilmente mapeadas. Agora, elas ressurgem
como algo que nos é oferecido por corporações, algo externo a nós e que
precisamos consultar. Aspectos de nossas vidas que antes nunca poderiam ter
sido privatizados agora estão praticamente inacessíveis sem os últimos produtos
da Apple. A computação em nuvem e a vigilância governamental onipresente
somente enfatizam a nossa dependência e vulnerabilidade.
Ao invés de ser a vanguarda do inevitável progresso da liberdade, a internet
é o mais novo campo de batalha de uma disputa secular com aqueles que
querem privatizar e dominar não apenas a terra, mas também todos os aspectos
do nosso ser. O fardo da prova de que a internet ainda oferece uma fronteira
para avançar a liberdade está sobre aquelas pessoas que têm a esperança de
defendê-la. Ao longo desta luta, pode se tornar claro que a liberdade digital,
como todas as formas importantes de liberdade, não é compatível com o
capitalismo e o Estado.

Desertando a utopia digital

Computadores contra a Computação

“Existe um mundo invisível conectado no cabo de toda ferramenta — utilize a ferramenta para o que ela foi feita, e ela encaixa você no molde de todas as pessoas que fizeram o mesmo; desconecte a ferramenta deste mundo, e você poderá usá-la para mapear outros.”
—Hunter/Gatherer

O produto capitalista ideal tiraria o seu valor do incessável trabalho não pago de toda raça humana. Nós seríamos dispensáveis; enquanto ele seria indispensável. Ele colocaria toda atividade humana em um único terreno unificado, que seria acessível somente através de produtos corporativos, onde o trabalho forçado e o mercado se fundiriam. Ele realizaria tudo isso sob a bandeira da autonomia e da descentralização, e talvez até mesmo da “democracia direta”.

Com certeza, se tal produto fosse inventado, alguns anticapitalistas bem intencionados alegariam que o reino dos céus está próximo — só faltaria remover o capitalismo da equação. O hino dos comedores de lótus.

Não seria a primeira vez que dissidentes teriam extrapolado a sua utopia a partir das infraestruturas da ordem dominante. Lembre-se do entusiasmo que Karl Marx e Ayn Rand compartilhavam sobre as ferrovias! Em contraste, nós acreditamos que a tecnologia produzida pela competição capitalista tende a ser a incarnação e imposição da sua lógica; se desejamos escapar desta ordem, nunca devemos achar que dominamos as suas ferramentas. Quando usamos ferramentas, somos usados por elas.

Segue a nossa tentativa de identificar a ideologia embutida na tecnologia digital e de sugerir algumas hipóteses sobre como lidar com ela.

A Rede se Fecha

Na nossa era, a dominação não é imposta somente por comandos emitidos dos dominadores para os dominados, mas por algoritmos que produzem e reajustam os diferenciais de poder sistematicamente. O algoritmo é o mecanismo fundamental que perpetua as hierarquias de hoje; ele determina as possibilidades com antecedência, enquanto oferece uma ilusão de liberdade através da escolha. O digital reduz as infinitas possibilidades da vida a uma treliça de algoritmos interconectados — a escolhas entre zeros e uns. O mundo é reduzido a uma representação, e a representação se expande para preencher o mundo; o irredutível desaparece. Aquilo que não é computado não existe. O digital pode apresentar uma gama de escolhas de tirar o fôlego — das possíveis combinações de uns e zeros — mas os termos de cada escolha são definidos com antecedência.

Um computador é uma máquina que executa algoritmos. O termo originalmente descrevia um ser humano que seguia ordens de forma tão rígida quanto uma máquina. Alan Turing, o pai das ciências da computação, nomeou o computador digital como uma extensão metafórica da forma mais impessoal de trabalho humano: “A ideia por trás dos computadores digitais pode ser explicada dizendo-se que essas máquinas possuem o objetivo de realizar qualquer operação que possa ser realizada por um computador humano”. Nos cinquenta anos que se seguiram, nós vimos esta metáfora invertida e invertida novamente, enquanto humano e máquina se tornam cada vez mais indivisíveis. “O computador humano deveria estar seguindo regras fixas,” Turing continuou; “ele não tem autoridade para desviar delas nem nos mínimos detalhes”.

Da mesma maneira que as tecnologias que foram feitas pra nos poupar tempos só nos deixaram mais ocupados, passar o trabalho braçal de computar números para os computadores não nos poupou de trabalho braçal — mas tornou a computação parte fundamental de todos os aspectos de nossas vidas.

Desde o princípio, o objeto do desenvolvimento digital tem sido a convergência do potencial humano e do controle algorítmico. Existem locais onde este projeto já está pronto. As imagens da “tela Retina” do iPhone são tão densas que a olho nu não podemos dizer que são compostas por pixels. Ainda existem falhas nessas telas, mas elas ficam menores a cada dia.

A Rede que fecha o espaço entre nós também fecha os espaços dentro de nós. Ela cerca os bens comuns que anteriormente resistiam à comoditização, bens comuns como as redes sociais que só reconhecemos como tal agora que foram mapeadas para o cercamento. Enquanto a rede cresce para englobar nossas vidas inteiras, temos que nos tornar pequenos os suficiente para caber em suas equações. Imersão total.

 

 

 

O Digital Divide

Liberais bem-intencionados estão preocupados que existem comunidades inteiras que ainda não foram integradas na rede digital global. Por isso os laptops de graça para o “mundo em desenvolvimento”, tablets que custam cem dólares para alunos de escolas. Eles só conseguem imaginar o “um” do acesso digital ou o “zero” da exclusão digital. A partir deste binário, o acesso digital é preferível — mas o próprio binário é um produto do processo que produz a exclusão, e não uma solução pra ela.

“Nos disseram que o avião tinha ‘abolido as fronteiras’; na verdade, foi só depois que o avião se tornou uma arma séria que as fronteiras se tornaram definitivamente intransponíveis.”
–George Orwell,
“You and the Atomic Bomb”

O projeto de levar a computação às massas retoma e expande a unificação da humanidade sob o capitalismo. Nenhum projeto de integração já se expandiu tão amplamente nem penetrou tão profundamente quanto o capitalismo, e o digital irá em breve preencher todo o seu espaço. “Os pobres ainda não possuem os nossos produtos!” — esse é o grito de guerra de Henry Ford. A Amazon.com vende tablets abaixo do custo, mas ela reconhece que é um investimento empresarial. Trabalhadores são desvalorizados se não possuem acesso digital; mas estarem disponíveis através de um único clique, forçados a competirem intercontinentalmente em tempo real, não fará crescer o valor de mercado da classe trabalhadora. A globalização capitalista já mostrou isso. Mais mobilidade para os indivíduos não garante mais igualdade nesse tabuleiro.

Integrar não é necessariamente igualar: a corrente, a rédea e o chicote também conectam. Mesmo onde conecta, o digital divide.

Como o capitalismo, o digital separa aquelas pessoas que têm daquelas que não têm. Mas não é um computador o que falta para quem não tem. Quem não tem, não tem poder, que não é distribuído igualmente pela digitalização. Ao invés de um binário de capitalistas e proletários, está emergindo um mercado universal onde cada pessoa será incessantemente avaliada e comparada. A tecnologia digital pode impor diferenciais de poder mais profunda e eficientemente que qualquer sistema de castas da história.

A nossa habilidade de nos envolvermos em relações sociais e econômicas de todos os tipos já é determinada pela qualidade do nosso processador. Na ponta mais baixa do espectro econômico, a pessoa desempregada consegue o transporte mais em conta através de um aplicativo no celular (onde antes a carona costumava dar uma oportunidade igual). Na ponta mais alta, o investidor lucra diretamente através da capacidade de processamento de seus computadores (fazendo o mercado de ações de antigamente parecer justo em comparação), assim como a mineração de Bitcoins.

É impensável que a igualdade digital poderá ser construída em um terreno tão desparelho. A disparidade entre ricos e pobres não diminuiu nos países que estão na vanguarda da digitalização. Quanto mais difundido se torna o acesso digital, mais veremos acelerar a polarização social e econômica. O capitalismo produz e faz circular as novas inovações mais rapidamente que qualquer sistema anterior, mas ao lado delas ele produz desigualdades cada vez maiores: quando antes os cavalos dominavam em um mundo de pedestres, hoje os bombardeiros invisíveis navegam sobre os motoristas¹. E o problema não é apenas que o capitalismo é uma competição injusta, mas é que ele impõe essa competição em todas as esferas da vida. A digitalização faz com que seja possível incorporar até os aspectos mais íntimos de nossos relacionamentos na sua lógica.

A divisa digital não corre apenas entre indivíduos e partes da população; ela corre dentro de cada um de nós. Em uma era de precariedade, quando todo mundo ocupa simultaneamente múltiplas e instáveis posições sociais e econômicas, as tecnologias digitais nos empoderam seletivamente de acordo com as formas com que somos privilegiados enquanto ocultam as formas em que somos marginalizados. O estudante de graduação que deve para o financiamento estudantil se comunica com outros devedores através das redes sociais, mas é mais provável que eles compartilhem os seus currículos e que avaliem restaurantes do que organizem um boicote ao pagamento dos seus empréstimos.

Somente quando compreendermos os protagonistas de nossa sociedade como redes ao invés de indivíduos isolados é que cairá a ficha da gravidade de tudo isto: a coletividade digital se baseia no sucesso de mercado, enquanto todos nós vivenciamos o fracasso no isolamento. Nas redes sociais do futuro — as quais os anunciantes, as agências de crédito, os empregadores, os senhorios e a polícia monitorarão em uma matriz de controle único — só conseguiremos nos encontrar à medida em que afirmarmos o mercado e o nosso valor dentro dele.

Podemos esperar que quanto mais difundido se tornar o acesso digital, mais veremos a polarização social e econômica se acelerar.

O sistema se Atualiza

A competição e a expansão do mercado sempre estabilizaram o capitalismo ao oferecerem nova mobilidade social, dando às pessoas pobres uma chance no jogo justamente quando elas não tinham mais razões para querer jogar. Mas agora que o mundo todo está integrado em um único mercado e que o capital está se concentrando nas mãos de uma elite cada vez menor, o que poderia impedir uma nova onda de revoltas?

Henry Ford foi um dos inovadores que respondeu à última grande crise que ameaçou o capitalismo. Ao aumentar os salários, a produção industrial e o crédito, ele expandiu o mercado para os seus produtos — enfraquecendo as demandas revolucionárias do movimento trabalhador ao transformar produtores em consumidores. Isso encorajou até os trabalhadores mais precários a buscar a inclusão ao invés da revolução.

As lutas da geração seguinte entraram em erupção em um novo terreno, quando os consumidores repetiam as demandas dos produtores pela autodeterminação no mercado de trabalho: primeiro como uma demanda por individualidade, e então, quando aquilo foi alcançado, por autonomia. Isto culminou com o clássico imperativo da contracultura do “faça-você-mesmo” — “Torne-se a mídia” — no mesmo momento em que a infraestrutura global de telecomunicações foi miniaturizada para fazer com que os trabalhadores individuais fossem tão flexíveis quanto as economias nacionais.

Nos tornamos a mídia, e a nossa demanda por autonomia foi atendida — mas isso não nos fez livres. Assim como as lutas dos produtores foram apagadas ao transformá-los em consumidores, as demandas dos consumidores foram apagadas transformando-os em produtores: enquanto a velha mídia funcionava de cima para baixo e de maneira unidirecional, a nova mídia tira o seu valor de conteúdos criados pelo usuário. Enquanto isso, a globalização e a automação erodiram o acordo que Ford tinha negociado entre capitalistas e setor privilegiado da classe trabalhadora, produzindo uma população redundante e precária.

Neste contexto volátil, novas corporações como Google estão atualizando o acordo fordista através do trabalho e da distribuição gratuitos. Ford ofereceu aos trabalhadores uma maior participação no capitalismo através do consumo em massa; o Google dá tudo de graça ao transformar tudo em trabalho não remunerado. Ao oferecer crédito, Ford permitiu que os trabalhadores se transformassem em consumidores ao venderem o seu futuro trabalho, além do seu presente; o Google dissolveu a distinção entre produção, consumo e vigilância, tornando possível capitalizar em cima daqueles que podem não ter nada para gastar.

A atenção em si está suplementando o capital financeiro como a moeda determinante em nossa sociedade. É um novo prêmio de consolação pelo qual os precarizados podem competir — quem nunca será milionário ainda pode sonhar um milhão de visualizações no YouTube — e um novo incentivo para impulsionar a constante inovação da qual o capitalismo depende. Como no mercado financeiro, tanto as corporações como os indivíduos podem tentar a sorte, mas aqueles que controlam as estruturas através das quais a atenção circula são os que detém o maior poder. A ascensão do Google não vem das suas receitas de anúncios ou da venda de produtos, mas das formas em que ele molda os fluxos de informação.

Olhando mais além nesta estrada, podemos imaginar um feudalismo digital no qual o capital financeiro e a atenção foram ambos consolidados nas mão de uma elite, uma ditadura benevolente de computadores (humanos ou não) mantém a internet como um playground para uma população supérflua. Programas e programadores individuais serão substituíveis — quanto mais mobilidade interna oferece uma estrutura hierárquica, mas forte e resiliente ela é — mas a estrutura em si não será negociável. Podemos até imaginar o resto da população participando de forma aparentemente horizontal e voluntária no refinamento da programação — dentro de certos parâmetros, é claro, como em todo algoritmo.

O feudalismo digital pode chegar sob a bandeira da democracia direta, proclamando que todas as pessoas têm o direito à cidadania e à participação, apresentando a si mesmo como uma solução para os excessos do capitalismo. Aqueles que sonham com uma renda mínima garantida, ou que desejam ser compensados pela coleta online de seus “dados pessoais”, devem compreender que essas reivindicações só seriam realizadas por um estado de vigilância que tudo vê — e que tais demandas legitimam o poder e a vigilância estatal mesmo que elas nunca sejam atendidas. Os defensores do Estado usarão a retórica da cidadania digital para justificar o mapeamento de todo mundo em novas cartografias do controle, fixando cada um de nós em uma identidade digital única de forma a concretizar a sua visão de uma sociedade sujeita à total regulação e a sua consequente aplicação. “Cidades inteligentes” irão impor a ordem algorítmica ao mundo offline, substituindo o imperativo do crescimento insustentável do capitalismo contemporâneo com novos imperativos: vigilância, resiliência e gerenciamento².

Nessa projeção distópica, o projeto digital de reduzir o mundo a uma representação converge com o programa da democracia eleitoral, na qual somente representantes agindo através dos canais legais podem exercer o poder. Ambos se opõem a tudo que é incomputável e irredutível, encaixando a humanidade em uma conformidade forçada e artificial. Fundidos como democracia eletrônica, eles representariam a oportunidade de votar em uma ampla gama de decisões, ao mesmo tempo em que tornariam a infraestrutura em si inquestionável — quanto mais participativo é um sistema, mais “legítimo”. E mesmo assim, toda noção de cidadania implica na existência de uma parte excluída; toda noção de legitimidade política implica na existência de ilegitimidade.

A liberdade genuína significa sermos capazes de determinar as nossas vidas e relações desde baixo. Devemos ser capazes de definir nossas próprias bases conceituais, formular tanto as perguntas quanto as respostas. Isso não é o mesmo que obter uma melhor representação ou mais participação na ordem dominante. Defender a inclusão digital e administração de um Estado “democrático” equipa aqueles que detêm o poder para legitimar as estruturas através das quais eles o exercem.

É um equívoco pensar que as ferramentas que foram feitas para nos dominar servirão aos nossos propósitos se somente conseguíssemos depôr aqueles que controlam a sociedade. É o mesmo erro que toda revolução já feita cometeu a respeito da polícia, dos tribunais e das prisões. As ferramentas para alcançar a libertação devem ser forjadas na luta.

 

As Redes Sociais

Contemplamos um futuro onde os sistemas digitais irão suprir todas as nossas necessidades, contanto que só desejemos a ordem existente, entregue instantaneamente.Frase Estranha.

Traçando a trajetória de nosso imaginário digital, em breve estaremos sempre votando, sempre trabalhando, sempre comprando, sempre presos. Mesmo as fantasias que separam a alma do corpo para viajar dentro do computador deixam o sujeito liberal intacto: todo pós-humanismo que nos foi oferecido foi um neoliberalismo, todo.

Os gradualistas liberais que lutam pela privacidade online e pela neutralidade da rede apresentam os subalternos que eles defendem como indivíduos. Mas enquanto operarmos de acordo com o paradigma dos “direitos humanos”, nossas tentativas de nos organizarmos contra sistemas de controle digital somente irão reproduzir a sua lógica. O regime de constituições e marcos que está atualmente chegando a um fim não apenas protegeu o sujeito liberal, o indivíduo — ele o inventou. Cada um dos direitos do sujeito liberal implica numa estrutura de violência institucional para garantir a sua atomização funcional — o particionamento da propriedade privada, a privacidade das urnas eleitorais e das celas da prisão.

Se não considerássemos nada mais, a “redificação” da vida cotidiana enfraquece a já frágil individualidade liberal. Onde começa e termina o “eu”, quando o meu conhecimento vem de mecanismos de buscas e os meus pensamentos são ativados e dirigidos por atualizações online? Contrariando isso, somos encorajados a apoiar o nosso frágil individualismo através da construção e disseminação de propaganda autobiográfica. O perfil online é um molde reacionário que tenta preservar a última brasa da subjetividade individual ao vendê-la. Digamos, “economia da identidade”.

Mas o objeto de exploração é uma rede, e o sujeito em revolta também. Nenhum dos dois se pareceu com o indivíduo liberal por muito tempo. O navio negreiro e a revolta de escravos são ambos redes compostas de alguns aspectos de muitas pessoas. A sua diferença não consiste de tipos diferentes de pessoas, mas de princípios diferentes de relacionamento em rede. Todo corpo contém diversos corações. A perspectiva que a representação digital fornece sobre a nossa própria atividade nos permite deixar claro que estamos perseguindo um conflito entre princípios organizacionais opostos, e não entre redes ou indivíduos específicos.

As redes produzidas e ocultadas pelo liberalismo são inevitavelmente hierárquicas. O liberalismo busca estabilizar a pirâmide da desigualdade ao constantemente aumentar a sua base. Nosso desejo é demolir as pirâmides, abolir as indignidades da dominação e da submissão. Não reivindicamos que os ricos deem para os pobres; buscamos destruir as cercas. Não podemos dizer que o digital é essencialmente hierárquico, pois não sabemos nada de “essências”; só sabemos que o digital é fundamentalmente hierárquico, no sentido de que ele é construído sobre as mesmas fundações que o liberalismo. Se um digital diferente for possível, ele irá surgir de uma fundação diferente.

Não precisamos de novas versões da tecnologia existente; precisamos de uma premissa melhor para as nossas relações. Novas tecnologias são inúteis a não ser à medida em que nos ajudam a estabelecer e defender novas relações.

Redes sociais antecedem a internet; diferentes práticas sociais nos conectam em rede de acordo com diferentes lógicas. Compreendendo as nossas relações em termos de circulação ao invés de identidade estática — em termos de trajetórias ao invés de localizações, ou forças ao invés de objetos — poderemos deixar de lado a questão dos direitos individuais e partir para a criação de novas coletividades fora da lógica que produziu o digital e suas divisas.

A Força Desiste

Para cada ação, há uma reação equivalente e oposta. A integração cria novas exclusões; os atomizados buscam uns aos outros. Toda nova forma de controle cria outro local de rebelião. A infraestrutura de policiamento e segurança cresceu exponencialmente nas últimas duas décadas, mas isso não produziu um mundo mais pacificado — pelo contrário, quanto maior a coerção, mais instabilidades e distúrbios. O projeto de controlar populações ao digitalizar suas interações e ambientes é em si mesmo uma estratégia de enfrentamento para evitar os levantes que devem seguir à polarização econômica, à degradação social e à devastação ecológica causadas pelo capitalismo.

A onda de insurreições que varreu o globo desde 2010 — da Tunísia ao Egito, através da Espanha e Grécia ao movimento Occupy por todo mundo, e mais recentemente na Turquia e no Brasil — foi amplamente compreendida como um produto das redes digitais. Mas ela também é uma reação contra a digitalização e as disparidades que ela reforça. Notícias dos acampamentos do movimento Occupy se espalharam pela Internet, mas aquelas pessoas que os frequentavam estavam lá porque estavam insatisfeitas com o meramente virtual — ou porque, sendo pobres ou sem-teto, elas não tinham nenhum acesso a ela. Antes de 2011, quem poderia ter imaginado que a Internet produziria um movimento global sobre a premissa da presença permanente no espaço físico compartilhado?

Isto é apenas uma prova da reação violenta que acontecerá quando mais e mais porções da vida forem encaixadas na grade digital. Os resultados não são pré-determinados, mas nós podemos ter certeza de que haverão novas oportunidades para as pessoas se unirem fora e contra a lógica do capitalismo e do controle estatal. Enquanto testemunhamos a emergência da cidadania digital e do mercado de identidades, vamos começar nos perguntando quais tecnologias os digitalmente excluídos irão necessitar. As ferramentas utilizadas durante a luta pelo Parque de Gezi em Istambul no verão de 2013 podem apresentar um humilde ponto de partida. Como podemos extrapolar do mapeamento de protesto para as ferramentas que serão necessárias para a insurreição e sobrevivência, especialmente quando as duas são a mesma coisa? Olhando para o Egito, podemos ver a necessidade de ferramentas que pudessem coordenar o compartilhamento de comida — ou o desmantelamento dos exércitos.

Compreender a expansão do digital como uma barreira ao nosso potencial não significa deixar de usar a tecnologia digital. Significa mudar a nossa abordagem em relação a ela. Qualquer visão positiva de um futuro digital será apropriada para perpetuar e incentivar a ordem dominante; a razão para nos engajarmos no terreno do digital é para desestabilizar as disparidades que ele impõe. Ao invés de estabelecer projetos digitais com a intenção de prefigurar o mundo que queremos ver, podemos ir atrás de práticas digitais que perturbem o controle. Ao invés de defendermos os direitos de uma nova classe digital — ou de incorporar todo mundo em tal classe através da cidadania universal —, podemos seguir o exemplos daquelas pessoas que são privadas, começando a partir das insurreições contemporâneas que redistribuam o poder de forma radical.

Vistos como uma classe, os programadores hoje ocupam a mesma posição que a burguesia em 1848, de posse de um poder social e econômico desproporcional à sua influência política. Nas revoluções de 1848, a burguesia sentenciou a humanidade a mais dois séculos de infortúnios ao assumir definitivamente o lado da lei e da ordem contra os trabalhadores pobres. Os programadores fascinados com a revolução da Internet poderiam fazer algo ainda pior hoje: eles podem se tornar ditadores digitais cuja tentativa de criar uma utopia democrática produz o totalitarismo definitivo.

Por outro lado, se uma massa crítica de programadores mudar suas alianças para as lutas reais dos excluídos, o futuro estará em disputa mais uma vez. Mas isso significaria abolir o digital como o conhecemos — e com ele a sua própria existência como classe. Desertando a utopia digital.

 

  1. Com uma impressora 3D você pode fazer uma arma, mas a NSA consegue fazer vírus de computador que assumem o controle de sistemas industriais inteiros.
  2. As cidades inteligentes não serão baseadas em prédios mais verdes, mas na vigilância e controle de nossas propriedades pessoais: o Walmart já está usando chips RFID, os mesmos usados em passaportes, para rastrear o fluxo de seus bens ao redor do mundo.
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Da diferença entre organizar e se organizar

A vida quotidiana não foi sempre organizada. Para tal foi necessário, antes de mais, desmantelar a vida, a começar pela cidade. A vida e a cidade foram decompostas em funções, em função das “necessidades sociais”. O bairro de escritórios, o bairro fabril, o bairro residencial, os espaços para distensão, o bairro da moda onde nos vamos divertir, a zona onde se come, a zona onde se bule, a zona onde se engata, e o carro ou o autocarro para ligar tudo isto, são o resultado de um trabalho de formatação da vida que é a devastação de todas as formas de vida. Ele foi desenvolvi-do com método, durante mais de um século, por toda uma casta de organizadores, todo um exército cinzento de gestores. A vida e o homem foram dissecados num conjunto de necessidades, e de-pois organizada a síntese. Pouco importa que esta síntese tenha tomado o nome de “planificação socialista” ou de “mercado”. Pouco importa que tal tenha levado ao fracasso das cidades-novas ou ao sucesso dos bairros da moda. O resultado é o mesmo: deserto e anemia existencial. Nada subsiste de uma forma de vida quando esta é decomposta em órgãos. Daí provém, inversamente, a alegria palpável que extravasava das praças ocupadas da Puerta del Sol, de Tahrir, de Gezi ou a atração exercida, apesar das infernais lamas dos campos de Nantes, pela ocupação de ter-ras em Notre-Dames-des-Landes. Daí a alegria que se agarra a qualquer comuna. Repentinamente, a vida deixa de estar recortada em pedaços conectados. Dormir, lutar, comer, curar-se, festejar, conspirar, debater, provêm de um mesmo movimento vital. Nada está organizado, tudo se organiza. A diferença é notável. Um apela à gestão, o outro à atenção – disposições em todos os pontos incompatíveis. Relatando os levantamentos aymara do início dos anos 2000 na Bolívia, Raul Zibechi, um ativista uruguaio, escrevia: “nestes movimentos, a organização não é desligada da vida quotidiana, é a própria vida quotidiana que toma forma na ação insurrecional.” Ele constata que nos bairros de El Alto, em 2003, “um ethos comunal tomou o lugar do antigo ethos sindical”. Eis alguém que esclarece no que consiste a luta contra o poder infraestrutural. Quem diz infraestrutura diz que a vida foi desligada das suas condições. Que colocaram condições à vida. Que esta depende de fatores sobre os quais já não tem controlo. Que perdeu o pé. As infraestruturas organizam uma vida suspendi-da, uma vida sacrificável, à mercê de quem as gere. O niilismo metropolitano não é mais do que uma forma vaidosa de não o admitir. Inversamente, fica assim mais claro o que se procura nas experimentações em curso em tantos bairros e vilas de todo o mundo, bem como os seus inevitáveis escolhos. Não um re-gresso à terra, mas um regresso sobre a terra. O que constitui a força estratégica das insurreições, a sua capacidade de destruir a infraestrutura do adversário de forma duradoura é, justamen-te, o seu nível de auto-organização da vida comum. Que um dos primeiros ref lexos de Occupy Wall Street tenha sido ir bloquear a ponte de Brooklyn ou que a Comuna de Oakland tenha pro-curado paralisar com milhares de pessoas o porto da cidade, aquando da greve geral de 12 de Dezembro de 2011, são factos que dão conta da ligação intuitiva entre auto-organização e bloqueio. A fragilidade da auto-organização, que mal se esboçava nestas ocupações, não poderia permitir que estas tentativas fossem mais longe. As praças Tahrir e Taksim são pelo contrário nós centrais da circulação viária de Cairo e de Istambul. Bloquear estes f luxos era abrir a situação. A ocupação era imediatamente bloqueio. Daí a sua capacidade para desarticular o reino da normalidade numa metrópole inteira. A um nível totalmente diferente, é difícil não fazer a ligação entre o facto de os zapatistas se proporem atualmente a interligar 29 lutas de defesa contra projetos de minas, de estradas, de centrais elétricas, de barragens, implicando diferentes povos indígenas de todo o México, e que eles próprios tenham passado os últimos dez anos a dotar por todos os meios possíveis a sua autonomia em relação aos poderes federais como econômicos.

 

Aos Nossos Amigos

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O direito à propriedade e a desigualdade de direitos

Não existe direito gratuito. Todo direito requer o trabalho de outras pessoas na sua manutenção. O direito universal à saúde por exemplo, vigente na constituição brasileira de 1988, é um direito garantido pelo Estado, ao financiar através de impostos a nossa rede pública de saúde. Isso quer dizer que parte da remuneração do trabalho de todos é retirada para fazer com que esse direito exista. E assim o é com qualquer direito. Falar em direito natural requer que partamos do principio que esse direito existe naturalmente, independente da ação humana necessária para garantí-lo. Assim era quando se imaginava que os reis possuíssem procuração divina para governar que, caso questionada, seria respondida pela entidade enfurecida. Atualmente, é comum encontrar o conceito de direito natural vinculado ao direito de propriedade, como se esse se manifestasse através de uma força suprahumana (“a lógica irrefutável”) no mundo real. Tão pouco é intuitiva a noção de que a gerência sobre nosso corpo nos leve a sustentar a suposta naturalidade do direito a propriedade, primeiramente porque supõe que todo título de propriedade existente foi fruto da ação física direta do detentor do direito (como se fosse o dono da Coca-Cola, por exemplo, que fabrica e leva o produto aos mercados ao redor do mundo). Além disso, os produtos das nossas ações não são propriedades do nosso ser, como a cor de nossa pele ou o formato do nosso rosto, mas sim frutos de uma relação social específica que deu origem a nossa mente e nossa concepção de mundo. Para que o primeiro homem a construir uma roda o fizesse, primeiro teve que construí-la em sua mente e de forma alguma isso acontece de forma autóctone. É falsa a ideia de que o indivíduo é um fim em si, pois ele só vê a si como indivíduo na medida em que o é em um contexto social, em um grupo, que tanto o molda quanto é moldado por ele, consciente e inconscientemente. Assim como Robin Crusoé chega náufrago à ilha deserta já um inglês completo, também nossa visão de mundo é construída social e historicamente. Portanto, a noção de nosso corpo é uma propriedade privada nossa só faz sentido caso ele seja de fato privado de nós mesmos:

O corpo é uma propriedade, mas apenas se alguém é privado dessa propriedade faz sentido dizer que ele se torna uma propriedade privada. A privação do corpo é a coerção de ter que comprar o corpo, o que só seria possível se outro o priva para aliená-lo, vendê-lo.  Então, somente se os corpos forem alienados, apenas se forem objetos de compra e venda, os corpos são propriedades privadas. E como o corpo inclui o cérebro, a capacidade de pensar e de decidir, a venda do corpo significa também a venda da fonte da capacidade de pensar e de decidir. Consequentemente, uma vez que o corpo se torna propriedade privada, ele é incapaz de se vender, mas é vendido por outro corpo que pensa e decide: trata-se da relação entre senhor e escravo. (HUMANAESFERA – O CORPO É  UMA PROPRIEDADE PRIVADA?)

E tão pouco é gratuito o direito à propriedade. Na verdade é um dos mais caros, a medida que aumentam as massas de despossuídos, aumentam também os investimentos feitos em segurança, em construção de muros, em armamento pesado e etc.
Mas aqui é importante que façamos a distinção entre propriedade de bens de consumo e meios de produção: os primeiros são bens adquiridos para nosso consumo, geralmente produzidos pela ação humana sobre os meios de produção. Uma escova de dentes, por exemplo, é um bem de consumo. Meios de produção são os itens usados para produzir outros itens. Não vou aqui me aprofundar na relação de produção e produtor, já o fiz em outros posts. Em ambos os casos, o direito de propriedade é garantido através do uso da força em maior ou menor grau, mas ambos estão ligados fundamentalmente, já que a capacidade de auferir força para fazer garantir esse direito é distribuída desigualmente na sociedade, como fica claro quando a Guarda Municipal de certas capitais toma cobertores de moradores de rua por aí mas não vemos ela fazendo coisas parecidas com outros membros da sociedade com mais meios de se defender juridicamente. A forma usada para auferir essa força é através do poder econômico, que fica acumulado obviamente na mão daqueles que possuem títulos de propriedade sobre os meios de produção. E essa é uma situação bastante peculiar, já que todos os seres humanos tem a necessidade natural de meios de sobrevivência (comida, abrigo, água potável etc) mas a capacidade de produzir esses itens de consumo é radicalmente concentrada em uma parcela diminuta da população, com condições de sobra para proteger os seus direitos, o que leva a uma crescente desigualdade e violência, principalmente entre os que estão despossuídos tanto dos meios de produção quanto privados dos bens de consumo, já que é essa a camada que tem menos condições de garantir o seu direito de propriedade.

Alguns podem agora argumentar que essa disparidade é causada pela ação do Estado, que na condição de monopolista do uso da violência distorce o balanço social “natural” do mercado. No entanto esse tipo de argumentação não leva em consideração o fato de que o Estado não possui uma substância própria, é uma abstração mental, concebida e utilizada para servir de garantidora da propriedade privada da forma como é hoje:

O Estado é meramente uma abstração mental, já que não possui qualquer substância própria. No entanto, ele é tratado como uma forma auto-subsistente, como um ente holístico, sendo assim visto como alvo primordial por muitos anarquistas, libertários e autonomistas. Ora, com isto, estes, na prática, além de deixá-lo absolutamente intacto, atacando moinhos de vento, acabam buscando submeter a luta a objetivos espetaculares, ou seja, holísticos, mitológicos, estratégicos, ativísticos, militantes, e reproduzem em suas relações cotidianas a própria coisa que queriam combater.
Com efeito, na práxis concreta cotidiana, o Estado não passa de um conglomerado de empresas (prisões, polícia, tribunal, forças armadas, companhias estatais etc) para as quais, como todas as outras empresas, os proletários – aqueles privados de todos os meios de vida – alienam suas capacidades de agir e de pensar em troca do salário, produzindo e reproduzindo ampliadamente a privação de suas próprias condições de existência: a propriedade privada, pela qual, quanto mais trabalham, mais transformam o mundo num poder que lhes é privado, hostil e desumano – o capital.
(HUMANAESFERA – PROPRIEDADE PRIVADA, SUBSTÂNCIA DO ESTADO)

Além disso, caso vivêssemos em uma realidade diferente, aonde não existissem estados nacionais, ainda assim a diferença de capacidade de auferir força para fazer valer o direito a propriedade recriaria as instituições que compõe os estados nacionais, afinal, o que garante a paridade de força entre duas supostas “agencias de segurança”?

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Como vender Anarquia

de Janos Biro
Publicado Originalmente em protopia

O filme V de vingança é baseado numa história em quadrinhos que critica os regimes totalitaristas. Temas como a liberdade, o moralismo e o autoritarismo são discutidos junto com questões como identificação, massificação e violência. Num todo, é uma obra prima. Porque então alguns anarquistas se revoltaram quando Hollywood fez a versão cinematográfica de V de vingança? É fato que muita coisa foi amenizada, mas o fato da obra não estar completa não é motivo para quebrar um cinema. Pelo menos parte da mensagem estava ali, já não está valendo? Pelo menos é isso que somos levados a pensar, mas quando pensamos: porque afinal Hollywood iria fazer um filme assim? E quando vemos os produtos relacionados ao filme sendo vendidos pela Internet, começamos a desconfiar…
Esta é a descrição do produto “Máscara de V de vingança”, no site da Amazon: “Vá em frente e sorria para a câmera. Divirta todos que você encontrar com essa máscara do V de vingança. A máscara é exatamente igual àquela usada por V no filme de ação, V de vingança. A máscara é feita de plástico e vem num tamanho padrão. Por favor, note que não inclui chapéu e cabelo. A máscara tem um bigode e um cavanhaque que lembra o histórico Guy Fawkes. Vá em frente, use essa máscara e lidere a revolução, mas, por favor, não acabe na cadeia. As pessoas não deveriam temer seus governos. Os governos deveriam temer as pessoas! Imagine-se numa distopia, onde o governo controla cada movimento seu. Toda esperança estava perdida, no entanto uma pessoa, um homem, ousou se levantar e liderar uma revolução inteira sozinho. Seu nome era V, sempre se lembre, lembre-se do cinco de novembro!”
Ao ver uma idéia anarquista sendo vendida, sendo assimilada pelo capitalismo, eu finalmente entendi o que levou aqueles anarquistas a quebrarem o cinema. As pessoas estão se revoltando contra a cultura, e ao mesmo tempo a indústria cultural busca aliviar essa sensação vendendo fantasias de revolta. Criando um mundo imaginário onde você pode se revoltar, contanto que pague por isso, e assim desviando a revolta que de outra forma atingiria o mundo real. Nos revoltamos por não podermos mais nos revoltar. A sociedade usa esse artifício para manter suas contradições livres do questionamento. Isso é uma violência, não importa o quanto reprimamos isso, eventualmente ela vai se manifestar. Não importa quantas válvulas de escape sejamos capazes de construir. Quando se manifestar, podemos acabar no outro extremo, o que será ruim. Mas é a natureza humana. Quanto mais a negarmos, mas violentamente ela irá reagir. Essa é a contradição do discurso pacifista, pois não é possível ignorar a violência que já sofremos, não é possível esquecer o passado e lidar com tudo racionalmente a partir de agora. Seria ideal, mas é irreal. Por mais que você seja contra o dano à propriedade, não é possível ignorar essa reação. Você comeu comida estragada e não quer vomitar no seu terno novo, mas não vomitar não é uma opção. Segurar esse tipo de reação só vai piorar as coisas, então o negócio é saber lidar com elas.
O próprio ato de quebrar o cinema pode ser encarado como uma distração. Mais uma válvula de escape. Como de costume, não há um manual sobre o que fazer. O que podemos é identificar o que não funciona. O problema não é o fato de termos reguladores, afinal reguladores são necessários para manter um sistema em homeostase, mas sim que temos uma pseudo-regulação. Ela não expulsa a pressão, ela a acumula em outro lugar. A nossa autonomia vai sendo substituída por coisas que no fundo não a podem substituir, e o homem se sente cada vez mais carente de coisas que ele cada vez menos pode definir, porque a carência vai sendo transferida de um lado para o outro. No final ela atinge todos os aspectos do seu ser e ele se sente carente de si mesmo, sente que sua realização enquanto ser humano é impossível. Isso porque a autonomia é o princípio da vida, sem ela ninguém pode dizer que está vivo, sem ela somos meros objetos. É esse tipo de violência que a cultura comete, ela nos tira a possibilidade de estar vivo, mas não nos mata. Isso é pior que morrer. E a cultura espera que sejamos pacíficos e discutamos racionalmente sobre isso? Desculpe, mas objetos falando de liberdade não nos interessam, porque objetos não podem ser livres. O que nos interessa é resgatar nossa capacidade de ser mais que um objeto, e se essa cultura impede isso, então ela deve mudar. O que quer que ela tenha produzido que não puder ser aproveitado por seres humanos autônomos vai perder seu valor, isso inclui propriedades. A manutenção dessas existências não justifica a impossibilidade da vida humana.
E se pessoas se tornam objetos e passam a pertencer à cultura tanto quanto as outras propriedades, podem ser assassinadas? Eu não defenderia essa interpretação, porque acredito que as pessoas, por mais que reprimam isso, sempre vão buscar autonomia. Nunca serão objetos por escolha, portanto nada justifica que eu os mate por se comportarem como objetos. Os assassinatos que V cometeu eram uma vingança pessoal. Apenas ele podia se vingar dessa forma, e não sem dar a própria vida em troca. Ele aproveitou a sua vingança pessoal para lutar por algo mais que pessoal, e não o contrário. Nós sofremos a violência da cultura, mas todos sofrem. Não podemos fazer vingança contra um homem por um ato da cultura, e de nada adiantaria, pois simplesmente seriam substituídos. V se encontrava numa posição especial, foi torturado até perder a identidade. Sua vingança se tornou sua identidade, a única coisa que dava sentido à sua vida. Mas sua vida perderia o sentido depois que a vingança fosse realizada, por isso ele transformou um ato pessoal numa manifestação que fizesse sentido a todas as pessoas. Todas elas puderam se identificar entre si no fato terem suas vidas impossibilitadas pela cultura.
V nos lembra da impossibilidade de se viver numa cultura de domínio, esta é sua verdadeira obra, e não matar tiranos ou explodir o parlamento. Sabemos que essas ações por si só seriam inúteis. Com base nisso, podemos dizer se quebrar o cinema foi um mero ato de vandalismo ou um ato de “legítima revolta” em resposta à violência que foi cometida: tentar transformar uma boa mensagem sobre o totalitarismo num produto vendável que banaliza um questionamento sério, que transforma a realidade numa ficção. Que diz, em outras palavras: “Anarquismo é divertido, porque tem explosões e lutas, mas é só de mentirinha”. É triste ver as pessoas saírem do cinema “de alma lavada”, pois enquanto lavamos nossa alma com alvejante, nossa autonomia está sendo jogada no lixo.

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Fisionomia das insurreições contemporâneas

Texto do livro “Aos nossos amigos” do Comitê Invisível

Um homem morre. Foi morto pela polícia, diretamente, indirectamente. É um anónimo, um desempregado, um “dealer” disto, daquilo, um estudante, em Londres, em Sidi Bouzid, Atenas ou Clichy-sous-Bois. Dizem que é um “jovem”, tenha 16 ou 30 anos. Dizem que é um jovem porque socialmente ele não é nada, e que houve um tempo em que nos tornávamos alguém quando chegávamos a adultos, onde os jovens eram precisamente aqueles que ainda não eram nada.
Um homem morre, um país subleva-se. Uma coisa não é causa da outra, apenas o detonador. Alexandros Grigoropoulos, Mark Duggan, Mohamed Bouazizi, Massinissa Guermah – o nome do morto torna-se, nesses dias, nessas semanas, o nome próprio do anonimato geral, da comum despossessão. E a insurreição é antes de mais feita por aqueles que nada são, daqueles que vogam pelos cafés, nas ruas, na vida, pela faculdade, pela Internet. Ela agrega todos os elementos flutuantes, plebeu depois pequeno-burguês, que a ininterrupta desagregação social segrega até mais não. Tudo o que é considerado marginal, ultrapassado ou sem futuro, regressa ao centro. Em Sidi Bouzid, em Kasserine, em Thala, são esses os “loucos”, os “perdidos”, os “bons em nada”, os “freaks”, que primeiramente espalharam a notícia da morte do seu companheiro de infortúnio. Eles subiram para cima das cadeiras, das mesas, dos monumentos, em todos os locais públicos, em toda a cidade. Eles sublevaram com as suas arengas quem estava disposto a ouvi-los. Logo atrás, foram os estudantes do secundário que entraram em ação, esses que não alimentam nenhuma esperança de carreira.
A sublevação dura alguns dias ou alguns meses, conduz à queda do regime ou à ruína de todas as ilusões de paz social.
Ela própria é anónima: sem líder, sem organização, sem reivindicações, sem programa. As palavras de ordem, quando as há, parecem esgotar-se na negação da ordem existente, e são abruptas: “Bazem!”, “O povo quer a queda do sistema!”, “Estamo-nos a cagar!”, “Tayyp, winter is coming”. Na televisão, nas ondas de rádio, os responsáveis martelam a sua retórica de sempre: são bandos de “çapulcu”, de vândalos, terroristas saídos de nenhures, certamente a soldo do estrangeiro. Aquele que se levanta não tem ninguém para colocar no trono em substituição, à parte talvez de um ponto de interrogação. Não são os bas-fonds, nem a classe operária, nem a pequena-burguesia, nem as multidões que se revoltam. Nada que apresente uma homogeneidade suficiente para admitir um representante. Não há nenhum novo sujeito revolucionário cuja emergência tenha escapado, até então, aos observadores. Quando se diz que “o povo” está na rua, não se trata de um povo que existisse previamente, pelo contrário, trata-se do povo que previamente faltava. Não é “o povo” que produz a sublevação, é a sublevação que produz o seu povo, suscitando a experiência e a inteligência comuns, o tecido humano e a linguagem da vida real entretanto desaparecidas. Se as revoluções do passado prometiam uma vida nova, as insurreições contemporâneas fornecem as ferramentas. Os giros de ultras do Cairo não eram grupos revolucionários antes da “revolução”, eram apenas bandos capazes de se organizar para enfrentar a polícia; é por terem tido um papel tão eminente aquando da “revolução” que eles se viram forçados a colocar, em plena situação, as questões habitualmente entregues aos “revolucionários”.
Aí reside o acontecimento: não no fenómeno mediático, que se forjou para vampirizar a revolta por via da sua celebração exterior, mas nos encontros que efetivamente se produziram ali. Eis o que é bem menos espetacular do que “o movimento” ou “a
revolução”, mas mais decisivo. Ninguém poderá dizer aquilo de que um encontro é capaz.
É desta forma que as insurreições se prolongam, molecularmente, impercetivelmente, na vida dos bairros, dos coletivos, dos squats, dos centros sociais, dos seres singulares, no Brasil como em Espanha, no Chile como na Grécia. Não porque elas ponham em marcha um programa político, mas porque elas colocam em andamento devires-revolucionários. Porque aquilo que se viveu fica a brilhar com uma tal intensidade que aqueles que o experienciaram tornam-se-lhe fiéis, não se querem separar, antes construir de facto o que agora faz falta à sua vida de antes. Se o movimento espanhol de ocupação de praças, uma vez desaparecido o ecrã-radar mediático, não tivesse sido seguido por todo um processo de mises en commum e de auto-organização, nos bairros de Barcelona e de outros sítios, a tentativa de destruição da ocupação de Can Vies, em Junho de 2014, não teria sido votada ao fracasso por três dias de motins de todo o bairro de Sants, e não se teria visto toda uma cidade participar, ato contínuo, na reconstrução do lugar atacado. Teria havido apenas alguns ocupas a protestar no meio da indiferença generalizada contra uma enésima expulsão. O que aqui se constrói não é nem a “sociedade nova” no seu estado embrionário, nem a organização que derrubará finalmente o poder para constituir um novo, é antes a potência coletiva que, por via da sua consistência e da sua inteligência, condena o poder à impotência, frustrando uma a uma todas as suas manobras.
Os revolucionários são frequentemente aqueles que as revoluções apanham mais desprevenidos. Mas há, nas insurreições contemporâneas, qualquer coisa que os desconcerta particularmente: elas já não partem de ideologias políticas, mas de verdades éticas. Aqui estão duas palavras cuja aproximação soa a qualquer espírito moderno como um oximoro. Estabelecer o que é verdadeiro é o papel da ciência, não é assim?, que não tem nada que ver com as nossas normas morais e outros valores contingentes. Para o moderno, há o Mundo de um lado, ele próprio de outro, e a linguagem para superar o abismo. Uma verdade, como nos foi ensinado, é um ponto sólido sobre o abismo – um enunciado que descreve adequadamente o Mundo. Oportunamente esquecemos a lenta aprendizagem ao longo da qual adquirimos, com a linguagem, uma relação com o mundo. A linguagem, longe de servir para descrever o mundo, ajuda-nos sobretudo a construir um. As verdades éticas não são, assim, verdades sobre o Mundo, mas as verdades a partir das quais nós nele permanecemos. São verdades, afirmações, enunciadas ou silenciosas, que se experimentam mas não se demonstram. O olhar taciturno que surge, punhos cerrados, nos olhos do pequeno chefe e que o desfigura durante um longo minuto é uma delas, e vale bem o tonitruante “temos sempre razão em revoltar-nos”. São verdades que nos ligam, a nós mesmos, ao que nos rodeia e uns aos outros. Elas introduzem-nos de uma assentada numa vida comum, a uma existência não separada, sem consideração pelos muros ilusórios do nosso Eu. Se os terranos estão prontos a arriscar a sua vida para que uma praça não seja transformada em parque de estacionamento como em Gamonal, em Espanha, que um jardim não se torne um centro comercial como em Gezi, na Turquia, que pequenos bosques não sejam transformados num aeroporto como em Notre-Dame-des-Landes, é mesmo porque aquilo de que gostamos, aquilo a que estamos ligados – seres, lugares ou ideias – também faz parte de nós, que esse nós não se reduz a um Eu que habita durante o tempo de uma vida um corpo físico limitado pela sua pele, o todo enfeitado pelo conjunto das propriedades que acredita ter. Quando se toca no mundo, somos nós próprios que somos atacados.
Paradoxalmente, mesmo quando uma verdade ética se enuncia como recusa, o facto de se dizer “Não!” coloca-nos de pés assentes na existência. Não menos paradoxalmente, o indivíduo descobre-se então tão pouco individual que basta por vezes que um só se suicide para que voe em estilhaços todo o edifício da falsidade social. O gesto de Mohamed Bouazizi imolando-se defronte do município de Sidi Bouzid comprova-o o suficiente. A sua potência de deflagração reside na afirmação despedaçante que encerra. Ele diz: “a vida que nos é dada não merece ser vivida”, “não nascemos para nos deixarmos humilhar desta forma pela polícia”, “podem reduzir-nos à insignificância, mas nunca nos retirarão a parte de soberania que pertence aos vivos” ou ainda “vede como nós, nós os ínfimos, nós os pouco existentes, nós os humilhados, estamos para lá dos miseráveis meios pelos quais conservais fanaticamente o vosso poder decrépito”. Foi isto que se ouviu nitidamente naquele gesto. Se a entrevista televisiva de Waël Ghonim, no Egipto, após o seu sequestro por parte dos “serviços”, teve um tal efeito de reviravolta sobre a situação, foi porque do fundo das suas lágrimas explodia também uma verdade no coração de cada um. De igual modo, durante as primeiras semanas de Occupy Wall Street – antes que os habituais gestores de movimento instituíssem os seus pequenos “grupos de trabalho” encarregues de preparar as decisões que a assembleia teria apenas de votar – o modelo das intervenções diante das 1500 pessoas lá presentes era este tipo que um dia tomou a palavra para dizer: “Hi! What’s up? My name is Mike. I’m just a gangster from Harlem. I hate my life. Fuck my boss! Fuck my girlfriend! Fuck the cops! I just wanted to say: I’m happy to be here, with you all” (“Olá! Como é que isso vai? O meu nome é Mike. Sou apenas um gangster de Harlem. Odeio a minha vida. Que se foda o meu patrão! Que se foda a minha namorada! Que se fodam os polícias! Só vos queria dizer: estou feliz por estar aqui, com todos vocês”). E as suas palavras eram repetidas sete vezes pelo coro de “megafones humanos” que substituíam os microfones proibidos pela polícia.


O verdadeiro conteúdo de Occupy Wall Street não era a reivindicação, colada ao movimento como um post-it sobre um hipopótamo, de melhores salários, de casas decentes ou de uma segurança social mais generosa, mas a repugnância pela vida que nos fazem viver. A repugnância por uma vida onde estamos todos sozinhos, sozinhos face à necessidade de cada um ganhar a sua vida, de se albergar, de se alimentar, de se divertir ou de se tratar. Repugnância pela forma de vida miserável do indivíduo metropolitano – desconfiança escrupulosa/ ceticismo refinado, conquistador/ amores superficiais, efémeros/ sexualização desenfreada, em consequência, de qualquer encontro/ seguido de regresso periódico a uma separação confortável e desesperada/ distração permanente, portanto ignorante de si, portanto medo de si, portanto medo do outro. A vida comum que se esboçava em Zuccotti Park, em tendas, ao frio, à chuva, cercada pela polícia na praça mais sinistra de Manhattan, não era certamente la vita nuova inaugurada, mas apenas o ponto de onde se começava a tornar evidente a tristeza da existência metropolitana. Apercebíamo-nos, enfim juntos na nossa condição comum, da nossa igual redução ao grau de empreendedor de si. Esta mudança existencial foi o coração pulsante de Occupy Wall Street, enquanto Occupy Wall Street foi fresco e vivaz.
O que está em jogo nas insurreições contemporâneas é a questão de saber o que é uma forma desejável de vida e não a natureza das instituições que a subjugam. Mas reconhecê-lo implicaria o reconhecimento imediato da nulidade ética do Ocidente. O que impediria que se colocasse a vitória deste ou daquele partido islâmico, após esta ou aquela rebelião, na conta do suposto atraso mental das populações. Haveria, pelo contrário, que admitir que a força dos islamitas reside justamente no facto de a sua ideologia política se apresentar, antes de mais, como um sistema de prescrições éticas. Dito de outra forma, o seu maior sucesso em relação aos outros políticos deve-se precisamente a não se colocarem de forma central no terreno da política. Poder-se-á então parar de choramingar ou de gritar bicho-papão de cada vez que um adolescente sincero prefira integrar as fileiras dos “jihadistas” em vez da multidão suicidária dos assalariados do sector terciário. E aceitaremos assim, de forma adulta, descobrir a carantonha que fazemos nesse espelho pouco abonatório.
Na Eslovénia rebentou em 2012, na tranquila cidade de Maribor, uma revolta de rua que seguidamente inflamou uma boa parte do país. Uma insurreição neste país com ar quase helvético, eis algo desde logo inesperado. Mas o mais surpreendente é que o ponto de partida tenha sido a revelação de que à medida que os radares de velocidade se multiplicavam nas ruas da cidade, uma única empresa privada próxima do poder embolsava a quase totalidade das multas. Poderá haver algo menos “político”, como ponto de partida para uma insurreição, do que uma questão de radares de estrada? Mas poderá haver algo mais ético do que a recusa em se deixar tosquiar como um carneiro? É Michel Kolhaas no século XXI. A importância do tema da corrupção reinante, em praticamente todas as revoltas contemporâneas, atesta que estas são éticas antes de serem políticas, ou que são políticas precisamente naquilo que desprezam da política, onde se incluí a política radical. Enquanto ser de esquerda quiser dizer: negar a existência de verdades éticas e substituir esta carência por uma moral tão frágil quanto oportuna, os fascistas poderão continuar a passar como única força política afirmativa, como os únicos que não se desculpam por viverem como vivem. Eles irão de sucesso em sucesso e continuarão a fazer convergir para eles próprios a energia das revoltas nascentes.
Talvez esteja também aí a razão do fracasso, sem isso incompreensível, de todos os “movimentos contra a austeridade”, que deveriam nas condições atuais incendiar o horizonte e que, pelo contrário, se perpetuam numa Europa que tenta o seu décimo frouxo relançamento. É que a questão da austeridade não é colocada no terreno em que de facto se situa: o de um brutal desacordo ético, um desacordo sobre o que é viver, o que é viver bem. Dizendo de forma sumária: ser austero, nos países de cultura protestante, é antes de mais tido como virtude; ser austero, numa boa parte do sul da Europa, é no fundo ser um pobre coitado. O que se passa hoje não é apenas que alguns queiram impor a outros uma austeridade económica que os últimos não desejam. O que se passa é que alguns consideram que a austeridade é, em absoluto, uma boa coisa, ao passo que outros consideram, sem verdadeiramente o ousarem dizer, que a austeridade é, em absoluto, uma miséria. Limitar-se a lutar contra os planos de austeridade é não apenas acrescentar algo a este mal-entendido, mas também, por acréscimo, estar seguro de perder, ao admitir implicitamente uma ideia de vida que não nos convém. Não há que perscrutar demasiado o pouco entusiasmo das “pessoas” em se lançar numa batalha perdida à partida. O que é preciso é antes de mais assumir o verdadeiro desafio do conflito: uma certa ideia protestante de felicidade – ser trabalhador, poupado, sóbrio, honesto, diligente, casto, modesto, discreto – que se pretende impor a toda a Europa. O que é necessário opor aos planos de austeridade é uma outra ideia de vida, que consista, por exemplo, em partilhar em vez de economizar, em conversar em vez de calar, em lutar em vez de sofrer, em celebrar as vitórias em vez de estar à defensiva, em entrar em contacto em vez de permanecer na sua reserva. É imensurável a força que os movimentos indígenas do subcontinente americano recolheram ao assumir o buen vivir como afirmação política. Por um lado, isto traça um claro perfil daquilo pelo que e contra o que se luta; por outro, abre a porta à descoberta serena das mil outras formas de entendimento da “vida boa”, formas que por serem diferentes não são no entanto inimigas, pelo menos não necessariamente.

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