Da diferença entre organizar e se organizar

A vida quotidiana não foi sempre organizada. Para tal foi necessário, antes de mais, desmantelar a vida, a começar pela cidade. A vida e a cidade foram decompostas em funções, em função das “necessidades sociais”. O bairro de escritórios, o bairro fabril, o bairro residencial, os espaços para distensão, o bairro da moda onde nos vamos divertir, a zona onde se come, a zona onde se bule, a zona onde se engata, e o carro ou o autocarro para ligar tudo isto, são o resultado de um trabalho de formatação da vida que é a devastação de todas as formas de vida. Ele foi desenvolvi-do com método, durante mais de um século, por toda uma casta de organizadores, todo um exército cinzento de gestores. A vida e o homem foram dissecados num conjunto de necessidades, e de-pois organizada a síntese. Pouco importa que esta síntese tenha tomado o nome de “planificação socialista” ou de “mercado”. Pouco importa que tal tenha levado ao fracasso das cidades-novas ou ao sucesso dos bairros da moda. O resultado é o mesmo: deserto e anemia existencial. Nada subsiste de uma forma de vida quando esta é decomposta em órgãos. Daí provém, inversamente, a alegria palpável que extravasava das praças ocupadas da Puerta del Sol, de Tahrir, de Gezi ou a atração exercida, apesar das infernais lamas dos campos de Nantes, pela ocupação de ter-ras em Notre-Dames-des-Landes. Daí a alegria que se agarra a qualquer comuna. Repentinamente, a vida deixa de estar recortada em pedaços conectados. Dormir, lutar, comer, curar-se, festejar, conspirar, debater, provêm de um mesmo movimento vital. Nada está organizado, tudo se organiza. A diferença é notável. Um apela à gestão, o outro à atenção – disposições em todos os pontos incompatíveis. Relatando os levantamentos aymara do início dos anos 2000 na Bolívia, Raul Zibechi, um ativista uruguaio, escrevia: “nestes movimentos, a organização não é desligada da vida quotidiana, é a própria vida quotidiana que toma forma na ação insurrecional.” Ele constata que nos bairros de El Alto, em 2003, “um ethos comunal tomou o lugar do antigo ethos sindical”. Eis alguém que esclarece no que consiste a luta contra o poder infraestrutural. Quem diz infraestrutura diz que a vida foi desligada das suas condições. Que colocaram condições à vida. Que esta depende de fatores sobre os quais já não tem controlo. Que perdeu o pé. As infraestruturas organizam uma vida suspendi-da, uma vida sacrificável, à mercê de quem as gere. O niilismo metropolitano não é mais do que uma forma vaidosa de não o admitir. Inversamente, fica assim mais claro o que se procura nas experimentações em curso em tantos bairros e vilas de todo o mundo, bem como os seus inevitáveis escolhos. Não um re-gresso à terra, mas um regresso sobre a terra. O que constitui a força estratégica das insurreições, a sua capacidade de destruir a infraestrutura do adversário de forma duradoura é, justamen-te, o seu nível de auto-organização da vida comum. Que um dos primeiros ref lexos de Occupy Wall Street tenha sido ir bloquear a ponte de Brooklyn ou que a Comuna de Oakland tenha pro-curado paralisar com milhares de pessoas o porto da cidade, aquando da greve geral de 12 de Dezembro de 2011, são factos que dão conta da ligação intuitiva entre auto-organização e bloqueio. A fragilidade da auto-organização, que mal se esboçava nestas ocupações, não poderia permitir que estas tentativas fossem mais longe. As praças Tahrir e Taksim são pelo contrário nós centrais da circulação viária de Cairo e de Istambul. Bloquear estes f luxos era abrir a situação. A ocupação era imediatamente bloqueio. Daí a sua capacidade para desarticular o reino da normalidade numa metrópole inteira. A um nível totalmente diferente, é difícil não fazer a ligação entre o facto de os zapatistas se proporem atualmente a interligar 29 lutas de defesa contra projetos de minas, de estradas, de centrais elétricas, de barragens, implicando diferentes povos indígenas de todo o México, e que eles próprios tenham passado os últimos dez anos a dotar por todos os meios possíveis a sua autonomia em relação aos poderes federais como econômicos.

 

Aos Nossos Amigos

This entry was posted in Aos Nossos Amigos, Crimethinc. Bookmark the permalink.