Não existe direito gratuito. Todo direito requer o trabalho de outras pessoas na sua manutenção. O direito universal à saúde por exemplo, vigente na constituição brasileira de 1988, é um direito garantido pelo Estado, ao financiar através de impostos a nossa rede pública de saúde. Isso quer dizer que parte da remuneração do trabalho de todos é retirada para fazer com que esse direito exista. E assim o é com qualquer direito. Falar em direito natural requer que partamos do principio que esse direito existe naturalmente, independente da ação humana necessária para garantí-lo. Assim era quando se imaginava que os reis possuíssem procuração divina para governar que, caso questionada, seria respondida pela entidade enfurecida. Atualmente, é comum encontrar o conceito de direito natural vinculado ao direito de propriedade, como se esse se manifestasse através de uma força suprahumana (“a lógica irrefutável”) no mundo real. Tão pouco é intuitiva a noção de que a gerência sobre nosso corpo nos leve a sustentar a suposta naturalidade do direito a propriedade, primeiramente porque supõe que todo título de propriedade existente foi fruto da ação física direta do detentor do direito (como se fosse o dono da Coca-Cola, por exemplo, que fabrica e leva o produto aos mercados ao redor do mundo). Além disso, os produtos das nossas ações não são propriedades do nosso ser, como a cor de nossa pele ou o formato do nosso rosto, mas sim frutos de uma relação social específica que deu origem a nossa mente e nossa concepção de mundo. Para que o primeiro homem a construir uma roda o fizesse, primeiro teve que construí-la em sua mente e de forma alguma isso acontece de forma autóctone. É falsa a ideia de que o indivíduo é um fim em si, pois ele só vê a si como indivíduo na medida em que o é em um contexto social, em um grupo, que tanto o molda quanto é moldado por ele, consciente e inconscientemente. Assim como Robin Crusoé chega náufrago à ilha deserta já um inglês completo, também nossa visão de mundo é construída social e historicamente. Portanto, a noção de nosso corpo é uma propriedade privada nossa só faz sentido caso ele seja de fato privado de nós mesmos:
O corpo é uma propriedade, mas apenas se alguém é privado dessa propriedade faz sentido dizer que ele se torna uma propriedade privada. A privação do corpo é a coerção de ter que comprar o corpo, o que só seria possível se outro o priva para aliená-lo, vendê-lo. Então, somente se os corpos forem alienados, apenas se forem objetos de compra e venda, os corpos são propriedades privadas. E como o corpo inclui o cérebro, a capacidade de pensar e de decidir, a venda do corpo significa também a venda da fonte da capacidade de pensar e de decidir. Consequentemente, uma vez que o corpo se torna propriedade privada, ele é incapaz de se vender, mas é vendido por outro corpo que pensa e decide: trata-se da relação entre senhor e escravo. (HUMANAESFERA – O CORPO É UMA PROPRIEDADE PRIVADA?)
E tão pouco é gratuito o direito à propriedade. Na verdade é um dos mais caros, a medida que aumentam as massas de despossuídos, aumentam também os investimentos feitos em segurança, em construção de muros, em armamento pesado e etc.
Mas aqui é importante que façamos a distinção entre propriedade de bens de consumo e meios de produção: os primeiros são bens adquiridos para nosso consumo, geralmente produzidos pela ação humana sobre os meios de produção. Uma escova de dentes, por exemplo, é um bem de consumo. Meios de produção são os itens usados para produzir outros itens. Não vou aqui me aprofundar na relação de produção e produtor, já o fiz em outros posts. Em ambos os casos, o direito de propriedade é garantido através do uso da força em maior ou menor grau, mas ambos estão ligados fundamentalmente, já que a capacidade de auferir força para fazer garantir esse direito é distribuída desigualmente na sociedade, como fica claro quando a Guarda Municipal de certas capitais toma cobertores de moradores de rua por aí mas não vemos ela fazendo coisas parecidas com outros membros da sociedade com mais meios de se defender juridicamente. A forma usada para auferir essa força é através do poder econômico, que fica acumulado obviamente na mão daqueles que possuem títulos de propriedade sobre os meios de produção. E essa é uma situação bastante peculiar, já que todos os seres humanos tem a necessidade natural de meios de sobrevivência (comida, abrigo, água potável etc) mas a capacidade de produzir esses itens de consumo é radicalmente concentrada em uma parcela diminuta da população, com condições de sobra para proteger os seus direitos, o que leva a uma crescente desigualdade e violência, principalmente entre os que estão despossuídos tanto dos meios de produção quanto privados dos bens de consumo, já que é essa a camada que tem menos condições de garantir o seu direito de propriedade.
Alguns podem agora argumentar que essa disparidade é causada pela ação do Estado, que na condição de monopolista do uso da violência distorce o balanço social “natural” do mercado. No entanto esse tipo de argumentação não leva em consideração o fato de que o Estado não possui uma substância própria, é uma abstração mental, concebida e utilizada para servir de garantidora da propriedade privada da forma como é hoje:
O Estado é meramente uma abstração mental, já que não possui qualquer substância própria. No entanto, ele é tratado como uma forma auto-subsistente, como um ente holístico, sendo assim visto como alvo primordial por muitos anarquistas, libertários e autonomistas. Ora, com isto, estes, na prática, além de deixá-lo absolutamente intacto, atacando moinhos de vento, acabam buscando submeter a luta a objetivos espetaculares, ou seja, holísticos, mitológicos, estratégicos, ativísticos, militantes, e reproduzem em suas relações cotidianas a própria coisa que queriam combater.
Com efeito, na práxis concreta cotidiana, o Estado não passa de um conglomerado de empresas (prisões, polícia, tribunal, forças armadas, companhias estatais etc) para as quais, como todas as outras empresas, os proletários – aqueles privados de todos os meios de vida – alienam suas capacidades de agir e de pensar em troca do salário, produzindo e reproduzindo ampliadamente a privação de suas próprias condições de existência: a propriedade privada, pela qual, quanto mais trabalham, mais transformam o mundo num poder que lhes é privado, hostil e desumano – o capital.
(HUMANAESFERA – PROPRIEDADE PRIVADA, SUBSTÂNCIA DO ESTADO)
Além disso, caso vivêssemos em uma realidade diferente, aonde não existissem estados nacionais, ainda assim a diferença de capacidade de auferir força para fazer valer o direito a propriedade recriaria as instituições que compõe os estados nacionais, afinal, o que garante a paridade de força entre duas supostas “agencias de segurança”?