Hegemonia Ideológica capitalista por Kevin Carson

O texto abaixo é um trecho da excelente obra de Kevin Carson e diz muito sobre a mentalidade retrógrada dos “conservadores” no Brasil atualmente.


Hegemonia ideológica

Hegemonia ideológica é o processo pelo qual os explorados passam a ver o mundo de acordo com as estruturas conceituais fornecidas pelos exploradores. Ela age para esconder os conflitos de classe e a exploração por trás de uma cortina de fumaça, que pode se chamar “unidade nacional” ou “bem estar geral”. Aqueles que apontam para o papel do estado como protetor dos privilégios de classe são denunciados, em tons teatrais de ultraje moral, como os que de fato estariam estimulando as “lutas de classe”. Se alguém for tão “extremista” a ponto de descrever o intervencionismo e os subsídios que sustentam o capitalismo corporativo, essa pessoa provavelmente será rechaçada por empregar uma “retórica de luta de classes marxista” (como disse Bob Novak) ou uma “retórica dos barões ladrões” (como afirmou o Secretário do Tesouro dos EUA Paul O’Neill).

A estrutura ideológica da “unidade nacional” é levada ao extremo de elevar “este país”, “esta sociedade” ou “nosso sistema de governo” a objetos de gratidão pelas “liberdades de que desfrutamos”. Apenas os menos patriotas percebem que nossas liberdades, longe de terem sido concedidas a nós por generosos e benevolentes governantes, foram ganhas através da resistência ao estado. Cartas e declarações de direitos não são concessões do estado, mas são documentos que foram forçados ao estado de baixo para cima.

Se nossas liberdades nos pertencem por direito de nascença, como fatos morais da natureza, segue-se que não temos que ter qualquer dívida de gratidão para com o estado por não violá-las, da mesma forma que não agradecemos a outros indivíduos por não nos roubarem ou matarem. Essa lógica simples implica que, em vez de sermos gratos por viver no “país mais livre do mundo”, os Estados Unidos, devemos nos revoltar a cada vez que ele invadir nossas liberdades. Afinal, foi assim que conseguimos nossos direitos. Quando outro indivíduo coloca sua mão em nosso bolso para enriquecer às nossas custas, nosso instinto natural é o de resistência. Porém, graças ao patriotismo, a classe dominante é capaz de transformar sua mão em nosso bolso na “sociedade” ou em “nosso país”.

A religião da unidade nacional é mais patológica quando se trata de “defesa” e da política externa. A fabricação de crises no exterior e da histeria em prol de guerras são ferramentas usadas desde o começo da história para suprimir ameaças ao domínio de classe. Políticos vigaristas podem trabalhar para “interesses escusos” em casa, mas quando esses mesmos políticos se envolvem em guerras, a questão passa a ser de lealdade “ao país”.

O chefe das Forças Armadas dos Estados Unidos, ao discutir a postura de “defesa”, faz alusões em tom muito sério às “ameaças à segurança nacional” enfrentadas pelos EUA e descreve os exércitos de inimigos oficiais como a China como muito mais poderosos do que exigiriam os “requisitos de defesa legítimos”. A maneira mais fácil de entrar no território do inaceitável é afirmando que todas essas “ameaças” são de fato as ações de país 150 quilômetros adentro de suas fronteiras. Outra ofensa imperdoável contra a celebração da pátria é julgar as ações dos Estados Unidos — em suas operações globais para tornar o Terceiro Mundo seguro para a atuação da ITT Corporation e da United Fruit Company — pelos mesmos padrões dos “requisitos de defesa legítimos” aplicados à China.

De acordo com a ideologia oficial, as guerras americanas são, por definição, sempre combatidas “por nossas liberdades”, “para defender nosso país” ou, no mundo de bajulação de Madeleine Albright, para promover “paz e liberdade” no mundo. A mera sugestão de que os defensores de nossas liberdades pegaram em armas contra o governo ou de que o estado de segurança nacional é uma ameaça maior a nossas liberdades que qualquer inimigo estrangeiro com que já nos deparamos é imperdoável. Acima de tudo, bons americanos não notam a existência de todos os conselheiros militares, que ensinam os esquadrões da morte a torturar sindicalistas e os jogar em valas ou como utilizar adequadamente alicates nos testículos de dissidentes. Crimes de guerra só são cometidos por potências derrotadas (porém, como os nazistas descobriram em 1945, criminosos de guerra desempregados geralmente conseguem encontrar trabalho dentro das novas potências hegemônicas).

Depois de um século e meio de doutrinação patriótica pelo sistema estatal de educação, os americanos já assimilaram completamente a versão rósea da história americana que é contada. Seu autoritarismo é tão diametralmente oposto às crenças daqueles que pegaram em armas durante a Revolução Americana que os cidadãos já se esqueceram do que significa ser um americano. Na verdade, os autênticos princípios do americanismo foram completamente esvaziados. Duzentos anos atrás, exércitos permanentes eram temidos e considerados ameaças à liberdade, além de serem terrenos férteis para o surgimento de personalidades autoritárias; o serviço militar obrigatório era associado à tirania de Oliver Cromwell; o trabalho assalariado era considerado incoerente com o espírito independente de um cidadão livre. Hoje, duzentos anos depois, os americanos foram tão prussianizados pelos sessenta anos de militarismo e pelas “guerras” contra um ou outro inimigo interno que foram condicionados a se curvar ao verem um uniforme. Aqueles que fogem do alistamento militar são vistos como molestadores de crianças. A maior parte das pessoas trabalha para alguma corporação centralizada ou para uma burocracia estatal, onde se espera que obedeçam ordens de superiores, trabalhem sob constante vigilância e até urinem num copinho conforme exigido.


Em época de guerra, é antipatriótico criticar ou questionar o governo e dissidências são vistas como deslealdade. Fé absoluta e obediência à autoridade é o mínimo que se espera daqueles que se dizem “americanos”. As guerras no exterior são ferramentas extremamente úteis para manipular o imaginário nacional e manter a população sob controle. As guerras são a maneira mais fácil de transferir poder para o estado. A maior parte das pessoas se torna acriticamente obediente no exato momento em que precisam estar mais vigilantes.

A maior ironia de todas é que, em um país fundado por uma revolução, o “americanismo” é identificado como o respeito à autoridade e a resistência à “subversão”. A Revolução foi, de fato, uma revolução, em que as instituições políticas domésticas foram forçosamente derrubadas. Foi, em vários locais e momentos, uma guerra civil entre classes. Como Voltairine de Cleyre escreveu um século atrás emAnarchism and American Traditions, a versão dos livros de história é um conflito patriótico entre nossos “pais fundadores” e o inimigo estrangeiro. Aqueles que ainda são capazes de citar Thomas Jefferson ao falar sobre o direito à revolução são relegados à ala “extremista”, que deve ser descartada no próximo surto de histeria militarista ou na próxima ameaça vermelha. Esse construto ideológico de um “interesse nacional” unificado inclui a ficção de que existe um conjunto “neutro” de leis, algo que esconde a natureza exploratória do sistema de poder sob o qual vivemos. Sob o capitalismo corporativo, os relacionamentos de exploração são mediados pelo sistema político numa medida categoricamente diferente daquela que vigente sob sistemas de classe anteriores. Sob a escravidão e o feudalismo, a exploração era concreta e materializada na relação do produtor com seu senhor. O escravo e o camponês sabiam exatamente quem os explorava. O trabalhador moderno, porém, sente apenas a dor dos golpes que sofre, mas não sabe de onde vêm.

Além de sua função de mascarar os interesses da classe dominante por trás de uma fachada de “bem estar social”, a hegemonia ideológica também fabrica divisões entre os dominados. Através de campanhas contra “vagabundos” e para “endurecer o combate ao crime”, a classe dominante é capaz de canalizar uma hostilidade das classes média e trabalhadora contra os mais pobres.

É particularmente nauseante o fenômeno do “populismo bilionário”. A defesa de “reformas” das leis de falência e de programas assistenciais, além de guerras contra o crime, ganham uma retórica pseudopopulista que identifica as classes baixas como os parasitas que se beneficiam do trabalho dos produtores. Em seu universo simbólico, seria possível pensar que os Estados Unidos são aquele mundo retratado pela revista Reader’s Digest e por Norman Rockwell, onde não há nada além de pequenos empresários e fazendeiros de um lado e vagabundos, sindicalistas e burocratas de outro. Ao escutarmos essa retórica, é difícil imaginar que existam multibilionários ou corporações globais, ou mesmo que elas se beneficiem desse discurso “populista”.

No mundo real, as corporações são os maiores clientes do estado de bem estar, as maiores falências são falências corporativas e os piores crimes são cometidos em suítes corporativas e não nas ruas. O real roubo dos produtores médios consiste de lucros e usura, extorquidos apenas com a ajuda do estado — o real “estado máximo” que carregamos em nossas costas. Enquanto os trabalhadores e as classes inferiores lutam entre si, não percebem quem realmente os espolia.

Como afirmou Stephen Biko, “a arma mais forte dos opressores é a mente dos oprimidos”.

Íntegra

Texto de Kevin Carson

Tradução de Eric Vasconcelos

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