Você notou que exortações para que você se dedique a algo são sempre seguidas de sugestões? Seguidores de doutrinas procuram espaços para demarcar territórios em você, vendedores procuram por agarras em você para te manejar por ai… de profetas até anunciantes, de pornógrafos até radicais, todos te exortam a “seguir seus desejos”, mas a questão que fica é: Quais? Os “reais”? Quem decide que desejos são esses?
Isso só deixa claro que existe uma verdadeira guerra pela sua alma. E aqueles sempre citados desejos são sempre construídos – eles mudam, eles dependem de fatores externos, como cultura, contexto histórico e social. Nós “gostamos” de fast-food porque precisamos correr para o trabalho ou para a cama, para trabalhar no outro dia. Ou então porque a comida processada do mercado não tem um gosto muito diferente. Nós “temos que” checar nossos emails, nosso Facebook, nosso Whatsapp, porque a dissolução da comunidade nos afastou de nossos amigos e parentes, porque nossos chefes preferem não “perder tempo” nos falando. Nós “queremos” trabalhar porque ninguém na sociedade vai cuidar ou se importar com aqueles que não o fazem, porque é difícil imaginar coisas mais prazerosas para fazer de nosso tempo quando tudo ao nosso redor é desenhado para o consumo e comércio. Cada desejo que temos, cada conceito que formulamos, é formado da linguagem e da civilização que nos criou.
Isso signfica que teriamos desejos diferentes em um mundo diferente? Sim, mas não porque seriamos livres para agirmos “de acordo com a nossa natureza”. Sequer existe tal coisa. Além da sua vida, não existe um “verdadeiro você”. Você é precisamente o que você pensa, faz e sente. E essa é tragédia da vida do homem que a desperdiça falando no celular, indo a reuniões e apertando o controle remoto: não é que ele negue seus próprios sonhos, necessariamente, mas que ele os faz atender a realidade, ao invés de fazer o exato oposto. O contador cheio de pena dos adolescentes que fogem para ficar juntos pode ser que se sinta de fato feliz – mas é uma felicidade diferente dos adolescentes em fuga.
Se nossos desejos são construtos, se nós somos de fato produtos de nosso ambiente, então nossa liberdade é medida em quanto controle temos desse ambiente. Não tem sentido dizer que uma mulher é livre para se sentir como quiser a respeito de seu corpo enquanto ela cresce cercada por anúncios de dietas e posteres de modelos semi-anoréxicas. Não faz sentido dizer que um homem é livre quando tudo que ele precisa para conseguir comida, abrigo, sucesso e companhia já está estabelecido pela sociedade e tudo o que resta é escolher uma entre as opções estabelecidas (burocrata ou técnico? burgues ou boêmio? coxinha ou petralha?). Temos que fazer a nossa liberdade abrindo rasgos na cortina da realidade, forjando novas realidades que irão, por sua vez, nos moldar. Colocar-se em novas situações constantemente é a única forma de se assegurar de não tomar decisões coberto pela inercia do habito, do costume, da lei, do preconceito – e é você quem deve criar essas situações. Liberdade só existe no momento da revolução.
E esse momento não é tão raro quanto você pensa. Mudança, mudança revolucionária, acontece constantemente e em todo lugar – e todos tem um papel nela, conscientemente ou não. “Ser radical é simplesmente encarar a realidade”, nas palavras do velho expatriado. A questão é simplesmente se você toma seu quinhão de responsabilidade nessa mudança ou não, agindo deliberadamente com noção do seu próprio poder.
Se podemos criar o mundo que quisermos, então talvez seja verdade que possamos nos adaptar a qualquer mundo também. Mas moldá-lo é infinitamente preferivel.Escolher entre gastar a sua vida em reação e adaptação, correndo para alcançar qualquer coisa que estiver acontecendo significa estar constantemente a mercê de tudo. Não é uma forma de buscar seus sonhos, sejam eles quais forem.
Então esqueça a tal “revolução” que irá acontecer um dia. A melhor razão para ser revolucionário é simplesmente o fato de que é a melhor forma de se viver. Te oferece a chance de levar a vida que importa, te mantêm consciente do ciclo de conecções que nos ligam com o todo e vice versa, entre o individuo e a comunidade, entre um e o todo. Nenhuma instituição pode te oferecer liberdade, mas você pode experenciar ela desafiando e reinventando as insttuições. Quando as crianças na escola inventam suas próprias palavras para os sons que lhes são ensinados, quando pessoas aparecem aos milhares para interferir em reuniões fechadas, é isso que elas estão fazendo: redescobrindo a auto-determinação, redescobrindo que o poder pertence a quem o exerce.
Grite bem alto: A cultura nos pertence! Nós podemos fazer música, mitologia, ciência, tecnologia, tradição, psicologia, literatura, história, ética, política. Mas até fazermos, estamos presos comprando filmes produzidos em massa e ouvindo música de mercenários da indústria, sentados e sem rosto em arenas de rock e em eventos esportivos, lutando
contra invenções e programas de outras pessoas, ouvindo explicações que fazem menos sentido que a bruxaria fazia para nossos ancestrais, envergonhadamente aceitando os julgamentos de sacerdotes, repreendendo a nós mesmos por não alcançarmos os padrões exigidos pelas escolas e nem pelos padrões de beleza enfiados goela abaixo pelas revistas, ouvindo de pais e psiquiatras e gerentes que o problema somos nós, comprando nossas vidas inteiras dos especialistas e empreendedores para quem vendemos ela – e rangendo os dentes em fúria por eles estarem cortando as últimas árvores e prendendo nossos amigos com o dinheiro e a autoridade que demos a eles. Essas são consequências da passividade a qual relegamos nós mesmos. Nas filas dos bancos, na nossa estação de trabalho, sentados no banco do ônibus vendo a rua passar pela janela, todos ansiamos por sermos protagonistas das nossas próprias epopeias, mestres do nosso próprio destino.
Se queremos transformar a nós mesmos, temos que transformar o mundo – mas para começar a mudar o mundo, temos que mudar a nós mesmos. Hoje somos território ocupado. Nossos apetites e atitudes e papéis foram moldados pelo mundo que nos vira contra nós mesmos e contra os outros. Como podemos tomar e compartilhar o controle de nossas vidas, sem medo nem vacilo, quando passamos a vida sendo condicionados a fazer o contrário?
Não importa o que você faça, não culpe a si mesmo pelos fragmentos da velha ordem que permacerem em você. É impossível se separar da cadeia de causas e efeitos que te produziram. O truque é encontrar formar de satisfazer a sua programação que simultaneamente a subvertam – que criam, no processo de satisfazer aqueles desejos, codições que construam novos desejos. Se precisar seguir lideres, siga aqueles que iram se depor dos tronos. Se precisar liderar, procure amigos que iram te ajudar a se destronar. Se tiver que lutar contra outros, procure lutas para o benefício de todos. Quando o assunto é desviar dos imperativos do próprio condicionamento, você descubrirá que ceder e minar é uma tática muito mais efetiva do que a velha herança cristã da “renúncia e luta”.
Para retomar a questão inicial: sim, nós estamos também fazedo sugestões. Seríamos canalhas negando isso! Mas seríamos canalhas também não oferecendo sugestões, não incentivando liberdade e auto determinação em um mundo que os desencoraja. Exortar a que se “pense por si mesmo” é irônico – mas hoje, recusar a se opor a propaganda dos missionários, empresários e políticos significa simplesmente abandonar a sociedade ao controle deles. Não há pureza no silêncio. E liberdade não existe apenas na ausência de controle – é algo que devemos fazer juntos. Tomar responsabilidade pela nossa parte na constante mudança do mundo significa não ter medo de tomar parte na construção da nossa sociedade, influenciando e sendo influenciados enquanto fazemos isso.
Nós fazemos sugestões, nós espalhamos essa propaganda de desejos porque esperamos que fazendo isso, satisfazendo a nossa própria paixão programada por propaganda de uma forma que mine uma ordem estabelecida que desencoraja todos nós a brincarmos com nossas paixões, possamos entrar em um mundo de total liberdade e diversidade, aonde propaganda, lutas de poder e coisas do tipo sejam obsoletas. Vejo você do outro lado.
Texto traduzido de CrimethInc