O que é a Propriedade

O que é a propriedade? ou Pesquisa sobre o Princípio do Direito e do Governo

Pierre-Joseph Proudhon

publicado em 1840


Capítulo I — Método adotado para esta obra – Ideia de uma revolução.

Capítulo II — Da propriedade considerada como direito natural

  • 1° — Da propriedade como direito natural
  • 2°— Da ocupação com fundamento da propriedade
  • 3 o — Da lei civil como fundamento e sanção da propriedade

Capítulo III — Do trabalho, como causa eficiente do domínio de propriedade.

  • 1° — A terra não pode ser apropriada
  • 2° — O consentimento universal não justifica a propriedade
  • 3° — A prescrição nunca pode ser aplicada à propriedade
  • 4º — Do trabalho. — Que o trabalho não tem, por si próprio, nenhum poder de apropriação sobre as coisas da natureza
  • 5° — Que o trabalho conduz à igualdade das propriedades
  • 6° — Que na sociedade todos os salários são iguais
  • 7° — Que a desigualdade das faculdades é a condição necessária para a igualdade das fortunas
  • 8° — Que, na ordem da Justiça, o trabalho destrói a propriedade

Capítulo IV— Que a propriedade é impossível.

  1. A propriedade é física e matematicamente impossível. — Demonstração
  2. Primeira proposição
  3. Segunda proposição
  4. Terceira proposição
  5. Quarta proposição
  6. Quinta proposição
  7. Sexta proposição
  8. Sétima proposição
  9. Oitava proposição
  10. Nona proposição
  11.    Décima proposição

Capítulo V—Exposição psicológica da ideia de justo e injusto e determinação do princípio do governo e do direito.

Primeira parte

  • 1°—-Do sentido moral no homem e nos animais
  • 2°— Do primeiro e do segundo grau da sociabilidade
  • 3° — Do terceiro grau da sociabilidade

Segunda parte

  • 1° — Das causas dos nossos erros: origem da propriedade
  • 2° — Caracteres da comunidade e da propriedade
  • 3° — Determinação da terceira forma social.

Conclusão

 

CAPITULO I
MÉTODO ADAPTADO PARA ESTA OBRA— IDEIA DE UMA REVOLUÇÃO.

Se eu tivesse que responder à seguinte pergunta:

O que é a escravatura? e respondesse sem hesitar: “É o assassinato”, o meu pensamento ficaria perfeitamente expresso. Não precisarei de fazer um grande discurso para mostrar que o poder de privar o homem do pensamento, da vontade e da personalidade, é um poder de vida e morte e que fazer de um homem escravo equivale a assassiná-lo. Por que então, a essa outra pergunta: O que é propriedade? não posso responder simplesmente: é roubo, ficando com a certeza que me entendem, embora esta segunda proposição não seja mais que a primeira, transformada?

Proponho-me discutir a própria base do nosso governo e instituições, a propriedade; estou no meu direito. posso enganar-me na conclusão a tirar das minhas buscas; estou no meu direito: apetece-me por o pensamento final do meu livro no princípio; estou sempre no meu direito.

Certo autor ensina que a propriedade é um direito civil, nascido da ocupação e sancionado pela lei; um outro sustenta que é um direito natural, tendo a sua origem no trabalho: e estas doutrinas, ainda que pareçam opostas, são encorajadas e aplaudidas.

Eu proponho que nem o trabalho, nem a ocupação, nem a lei, podem criar a propriedade. Ela é um efeito sem causa: é repreensível pensar assim?

Quanta objecção se levanta!

 

A propriedade é o roubo Eis o clarim de 93! Eis o grande barulho das revoluções!

 

Leitor, sossegue: não sou, de maneira nenhuma, um agente de discórdia, um instigador da revolta. Antecipo de alguns dias a história; exponho uma verdade de que tentamos, inutilmente, impedir a eclosão; escrevo o preâmbulo da nossa futura constituição. Se as preocupações nos permitissem ouvir esta definição que vos parece blasfema, a propriedade é o roubo, teríamos o aguilhão mágico da tempestade; mas quantos interesses, quantos preconceitos se opõem a isso! … A filosofia não modificará em nada o curso dos acontecimentos: os destinos cumprir-se-ão independentemente da profecia: aliás, não é preciso que se faça justiça e a nossa educação se complete?

A propriedade é o roubo… Que modificação no pensamento humano! Proprietário e ladrão sempre foram expressões contraditórias, tanto quanto os seres que designam são antipáticos; todas as línguas consagraram esta antilogia.

Com que autoridade poderíeis, pois, atacar o consenso universal e dar desmentido ao gênero humano? quem sois para negar a razão dos povos e das idades?

— Que lhe importa, leitor, a minha insignificante individualidade? Pertenço, como vós, a um século em que a razão não se submete senão ao facto e à prova;

 

O meu nome, tanto como o vosso, é Pesquisador da Verdade; a minha missão está inscrita nestas palavras da Lei: Fala sem ódio e sem medo; diz o que sabes. A obra da raça humana é construir o templo da ciência, e esta ciência envolve conjuntamente o homem e a natureza. Ora a verdade revela-se a todos, hoje a Newton e a Pascal, amanhã ao pastor no vale, ao artífice na oficina. Cada um traz a sua pedra ao edifício e, cumprida a tarefa, desaparece. A eternidade precede-nos, a eternidade segue-nos: entre dois infinitos, qual é o lugar de um mortal, para que os séculos indague?

Esqueça, pois, leitor, a minha qualidade de filósofo e o caráter e ocupe-se só das minhas razões. É segundo o consenso universal que pretendo destacar o erro universal; é à fé do gênero humano que eu chamo a opinião do gênero humano. Se tiverdes a coragem de me seguir e se a vossa vontade for franca, se a vossa consciência for livre, se o vosso espírito souber juntar duas proposições para delas extrair uma terceira, então as minhas ideias tornar-se-ão, infalivelmente, as vossas. Ao começar com aquelas minhas palavras, quis simplesmente advertir-vos e não vos provocar: tenho a certeza de que, se me lerdes, conquistarei o vosso assentimento. As coisas de que vos falei são tão simples, tão palpáveis, que ficaríeis tão admirados de vos não terdes percebido e delas direis: “nunca tinha pensado nisso”. Outros oferecer-vos-ão o espetáculo do gênio forçando os segredos da Natureza e espalhando oráculos sublimes; não encontrareis aqui senão uma série de experiências sobre o justo e o direito, uma espécie de verificação dos pesos e medidas da vossa consciência. As operações serão feitas diante de vós; e sereis vós próprios a apreciar o resultado.

Em suma, não sistematizo: peço o fim dos privilégios, a abolição da escravatura, a igualdade de direitos, o reino da Lei. Justiça, nada mais que Justiça; Tal é o resumo do meu discurso; deixo a outros a tarefa de, disciplinar o mundo.

Um dia perguntei-me: Por que tanta dor e miséria na sociedade? Terá o homem de ser eternamente infeliz? E, sem me deter as frias explicações dos empreendedores de reformas, que atribuem a miséria geral, uns à imperícia do poder, outros aos conspiradores e aos motins; outros ainda à ignorância e à corrupção gerais; cansado dos combates intermináveis entre a tribuna e a imprensa, quis eu próprio aprofundar o problema. Consultei os mestres da ciência, li cem volumes de filosofia, direito, economia política e história; e quis Deus que vivesse um século em que tanta leitura me fosse inútil! Fiz todos os esforços para obter informações exatas, comparando as doutrinas, opondo respostas às objeções, fazendo sempre equações e reduções de argumentos, pesando milhares de silogismos na balança da lógica mais escrupulosa. Neste caminho difícil, recolhi vários fatos interessantes que transmitirei aos meus amigos e ao publico, logo que for oportuno. Mas, é preciso que o diga, reconheci primeiramente que nunca havíamos compreendido o sentido destas palavras tão vulgares e tão sagradas: Justiça, Igualdade, liberdade; que sobre cada uma dessas coisas as nossas ideias eram profundamente obscuras; e que, enfim, essa Ignorância é a unica causa da pobreza que nos devora e de todas as calamidades que se abateram sobre a espécie humana.

 

Meu espírito espantou-se com este resultado estranho: duvidei da minha razão. O quê? diria eu, o que a vista não viu, nem o ouvido ouviu, nem a inteligência desvendou, descobriste-o tu? Foge, infeliz, de tomares as visões do teu cérebro doente pelas claridades da ciência! Não sabes que, grandes filósofos o disseram, em matéria de moral prática o erro universal é contradição?

Resolvi então tirar uma prova do meu julgamento, e eis quais foram as condições que pus a mim mesmo, para este novo trabalho: Será possível que sobre a aplicação dos princípios da moral a humanidade se tenha enganado tanto tempo a nível universal? Como e por que se teria enganado? Como não será invencível o seu erro, posto que universal?

Estas questões, da solução das quais eu fazia depender a certeza das minhas observações, não resistiram à análise durante muito tempo. Ver-se-á no capítulo V que em moral, assim como em qualquer outro desígnio do conhecimento, os erros mais graves são para nós os graus da ciência, que até nas obras de justiça enganar-se é um privilégio que enobrece o homem; e quanto ao mérito filosófico que me possa advir, como é irrisório esse mérito! Nomear nada significa; o maravilhoso seria conhecer as coisas antes de aparecerem. Exprimir uma ideia definitiva, uma ideia acessível a todas as inteligências, se a não anunciasse hoje e amanhã ela fosse proclamada por outrem, eu não possuiria senão a prioridade da fórmula. Elogia-se aquele que primeiro vê despontar o dia?

Sim, todos os homens acreditam e repetem que a igualdade de condições é idêntica à igualdade de direitos; que propriedade e roubo são termos sinônimos; que toda a proeminência social, atribuída ou, melhor dizendo, usurpada sob o pretexto de superioridade de talento e serviço, ó iniquidade e usurpação: todos os homens, repito, confirmam estas verdades na sua alma; não se trata senão de os fazer perceber isto mesmo.

Antes de entrar no assunto, é preciso dizer uma palavra sobre o caminho que vou seguir. Quando Pascal abordava um problema de geometria, criava um método para a sua solução; para resolver um problema de filosofia também é preciso um método. Como os problemas que a filosofia levanta se sobrepõem, pela gravidade das consequências, aos da geometria! Como, por consequência, precisam mais imperiosamente de uma análise profunda e severa, para ser resolvidos!

É um fado aliás fora de duvida, dizem os psicólogos modernos, que toda a percepção recebida no espirito aí se determina segundo certas leis gerais do mesmo espírito; molda-se, por assim dizer, sobre certos tipos preexistentes no nosso entendimento e que são como uma condição formal. De maneira que, dizem eles, se o espírito não tem Ideias inatas tem, pelo menos, formas inatas. Assim, por exemplo, todo o fenômeno é necessariamente concebido por nós no tempo e no espaço; tudo o que acontece supõe uma causa, tudo o que existe implica a ideia de substância, modo, numero, relação, etc.; numa palavra, nós não formulamos nenhum pensamento que não se relacione com algum dos princípios gerais da razão, para lá dos quais nada existe.

Estes axiomas do entendimento, acrescentam os psicólogos, estes tipos fundamentais, ligados fatalmente a toda a nossa concepção e julgamento, trazidos à luz somente pelas nossas sensações, são conhecidos na escola pelo nome de categorias. A sua existência primordial no espírito está hoje demonstrada; trata-se apenas de os sistematizar e desdobrar. Aristóteles contava dez; Kant elevou o numero para quinze; Cousin reduziu-os a três, dois, um; e a glória incontestável deste professor foi a de ter, senão descoberto a verdadeira teoria das categorias, pelo menos compreendido, melhor que ninguém, a grande importância desta questão, a maior e talvez a unica de toda a metafísica.

Não acredito, confesso-o, não somente nas ideias inatas, mas também considero a metafísica de Reid e Kant ainda mais afastada da verdade que a de Aristóteles. Todavia, como não quero fazer aqui uma crítica da razão, o que exigiria um longo trabalho a que ninguém daria importância, tomarei, por hipótese, as ideias mais gerais e necessárias, tais como as de tempo, espaço, substância e causa, como existindo primordialmente no espírito ou, pelo menos, como derivando imediatamente da sua constituição.

Mas um fato psicológico não menos verdadeiro, e que os filósofos têm negligenciado, é que o hábito, como uma segunda natureza, tem o poder de imprimir novas formas categoriais no entendimento, tomadas nas aparências que nos impressionam e desprovidas na maior parte das vezes de realidade objectiva, cuja influência no nosso julgamento não é menos predeterminante que a das primeiras categorias. De maneira que raciocinamos, ao mesmo tempo, segundo as leis eternas e absolutas da nossa razão e segundo as regras secundárias, geralmente falíveis, que a observação incompleta das coisas nos sugere. Tal é a origem mais fecunda das conclusões falsas e a causa permanente, e muitas vezes invencível, de uma quantidade de erros. A preocupação que resulta para nós destes preconceitos é tão forte que, frequentemente, mesmo enquanto combatemos um princípio que o nosso espírito julga falso, que a nossa razão rejeita, que a nossa consciência reprova, defendêmo-lo sem nos apercebermos, raciocinamos segundo ele, obedecemos-lhe atacando-o. Fechado como num círculo, o nosso espírito volteia sobre si mesmo, até que uma observação nova, suscitando em nós ideias novas, nos faz descobrir um princípio exterior que nos livra do fantasma dono da nossa imaginação.

Assim, sabemos hoje que, pelas leis de um magnetismo universal cuja causa continua desconhecida, dois corpos que nenhum obstáculo detenha tendem a juntar-se por uma força de impulsão acelerada que s’. chama gravidade. É a gravidade que faz cair na terra os corpos a que falta apoio, que permite pesá-los na balança e nos segura, a nós próprios, à terra que pisamos. A ignorância desta causa foi a única razão que impediu os antigos de acreditarem nos antípodas. “Como é que não veem, dizia Santo Agostinho, segundo Lactance, que, se houvesse homens sob os nossos pés, estariam de cabeça para baixo e cairiam no céu?” O bispo de Hippone, que julgava a terra plana, porque lhe parecia vê-la assim, supunha que, se se conduzissem linhas rectas de lugares diferentes do zênite ao nadir, essas linhas seriam paralelas entre si; e era na direção dessas linhas que ele colocava todo o movimento de cima para baixo. Daí devíamos naturalmente concluir que as estrelas estão seguras, como tochas rolantes, à abóbada celeste; que se estivessem abandonadas a si próprias, cairiam sobre a terra como uma chuva de fogo; que a terra é uma superfície enorme que forma a parte inferior do mundo, etc. Se lhe tivessem perguntado em que se apoia a própria terra, teria respondido não o saber, mas que nada é impossível a Deus. Tais eram, relativamente ao espaço e ao movimento, as ideias de Santo Agostinho, ideias impostas por uma suposição dada pela aparência e tornada, para ele, numa regra geral e num julgamento categórico. Quanto à causa da queda dos corpos, o seu espirito estava vazio; apenas podia dizer que um corpo cai porque cai.

Para nós a ideia de queda é mais complexa: às ideias gerais de espaço e movimento que ela implica, juntamos a de atração ou direção para um centro, a qual deriva da ideia superior da causa. Mas, se a física modificou completamente a nossa opinião sobre este assunto, não deixamos de conservar, pelo hábito, o preconceito de Santo Agostinho; e, quando dizemos que caiu uma coisa, não percebemos, geralmente, que assistimos a um fenômeno de gravidade, mas em particular notamos que esse movimento se operou sobre a Terra e de cima para baixo. Apesar de esclarecida a razão, a imaginação sobrepõe-se e a nossa linguagem é, definitivamente, incorrigível. Descer do céu não é uma expressão mais verdadeira do que subir ao céu; e, no entanto, esta expressão conservar-se-á enquanto os homens se servirem da linguagem.

Todas estas maneiras de falar, de cima para baixo, descer do céu, cair das nuvens, etc., não são perigosas, porque sabemos rectificá-las na prática; mas dignemo -nos considerar por um momento quanto elas atrasaram o progresso da ciência. Se é realmente pouco importante, para a estatística, mecânica, hidrodinâmica e balística, que a verdadeira causa da queda dos corpos seja conhecida e que as ideias sobre a direção geral do espaço sejam exatas, passa-se o contrário, logo que se tem de explicar o sistema do mundo, a causa das marés, a forma da Terra e a sua posição no céu: para todas estas coisas é preciso sair do circulo das aparências. Desde a mais remota antiguidade que se viram mecânicos engenhosos, excelentes arquitetos, artilheiros hábeis; o erro que poderiam estimular, relativamente à esfericidade da Terra e à gravidade, não prejudicava em nada o desenvolvimento da sua arte; a solidez dos edifícios e a destreza do tiro não perdiam nada com isso. Mas, tarde ou cedo, se apresentariam fenômenos que o suposto paralelismo de todas as perpendiculares tiradas da superfície terrestre tornaria inexplicáveis: então, devia também começar uma luta entre preconceitos que satisfaziam à prática diária, desde há séculos, e opiniões inauditas, que o testemunho dos olhos parecia contradizer.

Assim, por um lado, os mais falsos julgamentos, quando têm por base factos isolados ou unicamente aparências, englobam sempre uma soma de realidades cuja esfera, maior ou menor, basta a um certo numero de induções, para além das quais caímos no absurdo; de verdadeiro havia, por exemplo, nas ideias de Santo Agostinho, que os corpos caem para a Terra, que a queda se faz em linha recta, que o Sol ou a Terra se movem, que o Céu ou a Terra giram, etc, Estes factos gerais sempre foram verdadeiros; a nossa ciência não lhes acrescentou nada. Mas, por outro lado, a necessidade de nos darmos conta de tudo obriga-nos a procurar princípios cada vez mais compreensíveis: por isso houve que abandonar, primeiro a ideia de a Terra ser plana, depois a teoria que a considerava imóvel tio centro do mundo, etc.

Se passarmos agora -da natureza física para o mundo moral, ainda aqui nos encontramos sujeitos às mesmas decepções das aparências, às mesmas influências da espontaneidade e do hábito. Mas o que distingue esta segunda parte do sistema do nosso conhecimento é, por um lado, o bem ou o mal que emana das nossas próprias opiniões: por outro lado, a obstinação com quo defendemos o preconceito que nos atormenta e aniquila.

Seja qual for o sistema que adotemos sobre a causa do peso e a forma da Terra, não se afeta a física do globo; e, quanto a nós, a economia social não tira daí, proveito ou prejuízo. Mas è em nós e por nós que se cumprem as leis da nossa natureza morai: ora estas leis não podem executar-se sem a nossa participação pensante, se não as conhecermos. Portanto, se a nossa ciência das leis morais é falsa, é evidente que, desejando o bem, provocaremos o mal; se ela é incompleta, bastará durante algum tempo ao nosso progresso social, mas acabará por nos fazer tomar um caminho falso e por precipitar-nos então num abismo de calamidades.

É então que se nos tornam indispensáveis maiores conhecimentos e, é preciso dizê-lo em nossa glória, não há exemplo de nunca eles nos terem deixado ficar mal; mas é então, também, que começa uma luta assanhada entre os velhos preconceitos e as ideias novas. Dias de conflagração e angustia! Reportamo-nos aos tempos em que, com as mesmas crenças, com as mesmas instituições, toda a gente parecia feliz: como

 

acusar essas crenças, como banir essas instituições? NSo se quer compreender que esse período afortunado serviu precisamente para desenvolver o principio do mal que a sociedade encerrava; acusam-se os homens e os deuses, os poderosos da terra e as forças da natureza. Em vez de procurar a causa do mal na sua razão e no seu coração, o homem acusa os mestres, os rivais, os vizinhos, ele próprio; as nações armam-se, atacam-se, exterminam-se, até que o equilíbrio se restabeleça e a paz renasça das cinzas dos combatentes. De tal maneira repugna à humanidade tocar nos costumes dos antepassados, modificar as leis dadas pelos fundadores das cidades e confirmadas pela fidelidade dos séculos.

Nihil motum ex antiquo probablle est: Desconfiem de toda a inovação, exclamava Tito Livio. Sem duvida seria melhor para o homem nunca ter de mudar: Mas quê! se nasceu ignorante, se a sua condição é instruir-se por escalões, precisará renegar è luz, abdicar da razão e abandonar-se ao acaso? Saude perfeita é preferível à convalescença; será motivo para o doente recusar curar-se? Reforma! reforma! gritaram outrora João Baptista e Jesus Cristo; reformai reforma! gritavam os nosso pais há cinquenta anos, e gritá-lo-emos ainda por muito tempo: reforma! reforma!

Testemunha das dores do meu século, disse para comigo: Entre os princípios sobre os quais a sociedade assenta, há um que ela não compreende, que a sua ignorância viciou e causa todo o mal. Este princípio é o mais antigo de todos, porque está na essência das ! revoluções banir os mais modernos e respeitar os mais í antigos; ora o mal que nos aflige é anterior a todas as ‘revoluções. Este princípio, tal como a nossa ignorância o imaginou, é desejado e honrado, porque se o não fosse não se apossaria de ninguém, não teria influência.

Mas este princípio, verdadeiro nos seus fins, falso quanto à maneira de o entenderem, este princípio, velho como a humanidade, qual será? Será a religião?

Todos os homens acreditam em Deus: esse dogma pertence à consciência e à razão. Deus é, para a humanidade, um facto tão primitivo, uma ideia tão fatal, um princípio tão necessário, como o são, para o nosso entendimento, as ideias categoriais de causa, substância, tempo e espaço. Deus é-nos revelado pela consciência, anteriormente a qualquer indução do espírito, como o Sol nos é provado pelo testemunho dos sentidos, antes de todas as deduções da física. A observação e a experiência revelam-nos os fenômenos e as leis, só o sentido íntimo nos revela as existências. A humanidade crê que existe Deus; mas no que crê ela, acreditando em Deus? Numa palavra, o que é Deus?

Esta noção da Divindade, primitiva, unânime, inata na nossa espécie, ainda não foi determinada pela razão humana. A cada passo que nos elevamos no conhecimento da natureza e das causas, a ideia de Deus expande-se e exalta-se: quanto mais a ciência avança, mais parece Deus crescer e recuar. O antropomorfismo e a idolatria foram uma consequência necessária da juventude dos espíritos, uma teologia de crianças e poetas. Erro inocente, se não se tivesse querido fazer dele um princípio de conduta e se se tivesse sabido respeitar a liberdade n de opiniões. Mas, depois de haver feito Deus à nossa imagem, o homem quis ainda apropriar-se dele; não contente em desfigurar o grande Ser, tratou-o como patrimônio seu, coisa sua: Deus, representado sob formas monstruosas, tornou-se, por toda a parte, propriedade do homem e do Estado. Isto deu a origem à corrupção dos costumes pela religião e à fonte de raivas piedosas e guerras sagradas. Graças ao céu, aprendemos a respeitar em cada um a sua crença; procuramos a regra dos costumes fora do culto; aguardamos ajuizadamente, para estatuir sobre a natureza e atributos de Deus sobre os dogmas da teologia, sobre o destino das almas, que a ciência nos ensine o que devemos rejeitar e o que devemos aceitar. Deus, alma, religião, objetos eternos das nossas meditações incansáveis e dos nossos erros mais funestos, problemas terríveis cuja solução, sempre tentada, fica incompleta: em todas essas coisas ainda é possível enganar-nos, mas, pelo menos, o nosso erro não terá consequências graves. Com a liberdade de cultos e a separação do espiritual e do temporal, a influência das ideias religiosas no progresso da sociedade é puramente negativa, não nascendo da religião nenhuma lei, nenhuma instituição política e civil. O esquecimento dos deveres que a religião impõe pode favorecer a corrupção geral: não é uma causa necessária, sendo apenas uma causa secundária ou o efeito dela. Sobretudo, e na questão que nos ocupa, esta observação é decisiva, não devendo ser imputada à religião a causa da desigualdade de condições entre os homens, da miséria, do sofrimento universal, dos problemas dos governos: é preciso uma perspectiva mais alta e mais profunda.

Mas haverá no homem algo de mais antigo e mais profundo que o sentimento religioso?

Existe o próprio homem, quer dizer, a vontade e a consciência, o livre arbítrio e a lei, opostos num antagonismo perpétuo. O homem está em guerra consigo mesmo: Porquê?

“O homem, dizem os teólogos, cometeu o pecado original; a nossa espécie é culpada de uma antiga prevaricação. A humanidade perdeu-se nesse pecado: o erro e a ignorância tornaram-se seu apanágio. Leiam a prova da necessidade do mal na permanente miséria , das nações. O homem sofre e sofrerá sempre: a sua ! doença é hereditária e constitucional. Usem paliativos, empreguem analgésicos: não há nenhum remédio.” Este discurso não é próprio Cinicamente dos teólogos; encontra-se, em termos equivalentes, nos escritos dos filósofos materialistas, partidários de uma perfectibilidade indefinida. Destutt de Tracy ensina formalmente que a miséria, os crimes, a guerra, são a condição inevitável do nosso estado social, um mal necessário contra o qual seria loucura revoltar-se. Assim, necessidade do mal ou perversão original são, no fundo, a mesma filosofia.

“O primeiro homem pecou.” Se os crentes da Bíblia interpretassem fielmente, diriam: O homem primeiramente peca, quer dizer, engana-se; porque pecar, errar, enganar-se significa a mesma coisa.

“As consequências do pecado de Adão são hereditárias; sendo a primeira delas a ignorância.” Com efeito, a ignorância é inata na espécie como no indivíduo; mas, no respeitante a muitos problemas, mesmo de ordem moral e política, esta ignorância da espécie foi saneada: quem nos garante que a não ultrapassaremos completamente? Há progresso contínuo do .gênero humano para a verdade e triunfo da luz sobre as trevas. O nosso mal não é, pois, perfeitamente incurável, e a explicação dos teólogos ê mais que insuficiente; é ridícula, visto que se reduz a esta tautologia: “O homem engana-“e, porque se engana.” Enquanto que seria preciso dizer: “O homem engana-se, porque aprende.” Ora, se o homem conseguiu instruir-se de tudo o que necessita saber, acreditamos que, não se enganando mais, deixará de sofrer.

Se interrogarmos os doutores desta lei, que nos disseram encontrar-se gravada no coração do homem, logo reconheceremos que a discutem ignorando o que ela representa e que há quase tantas opiniões como autores sobre as questões mais importantes; que não se encontram dois que estejam de acordo sobre a melhor forma de governo, sobre o princípio da autoridade, sobre a natureza do direito; que todos vogam ao acaso num mar sem tundo nem margens, abandonados inspiração do seu sentido privado que, modestamente, tomam pela razão justa. E, perante este acervo de opiniões contraditórias, diremos: “O Objeto das nossas pesquisas é a lei, a determinação do princípio social; ora os políticos, quer dizer, os homens da ciência social, não se entendem; portanto, é neles que está o erro; e, como todo o erro tem uma realidade por Objeto, é nos seus livros que se deve encontrar a verdade, aí posta por eles, sem o saberem.”

Ora, de que tratam os jurisconsultos e os publicistas? De Justiça, equidade, liberdade, lei natural, leis civis, etc. Mas que é a justiça? Qual é o princípio, o carácter, a fórmula? A esta pergunta é evidente que os nossos doutores nada têm a responder: porque de outra maneira a sua ciência, partindo de um princípio claro e certo, libertar-se-ia do seu eterno probabilismo, e acabariam todas as disputas.

Que é a justiça? Os teólogos respondem: Toda a justiça vem de Deus. Isso é verdade, mas nada esclarece.

Os filósofos deviam ser mais instruídos: têm discutido tanto sobre o justo e o injusto! Infelizmente, a análise prova que o seu saber se reduz a nada, passando-se com eles o mesmo que com aqueles selvagens que oravam ao Sol: Oh! — Oh! é um grito de admiração, amor, entusiasmo: mas quem procuraria saber se o Sol tiraria algum proveito da interjeição Oh! Precisamente o que se passa com os filósofos, em relação à justiça. A justiça, dizem eles, é filha do céu, luz que ilumina todo o homem que nasce, prerrogativa mais bela da nossa natureza, que nos distingue dos animais e assemelha a Deus, e outras coisas deste gênero. A que se reduz esta piedosa litania? À oração dos selvagens: Oh!

Tudo o que a sabedoria humana ensinou de mais razoável, no que respeita à justiça, está contido na famosa máxima: Faz aos outros aquilo que queres que te façam; não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti. Mas esta regra de moral prática é nula para a ciência: que direito tenho eu de exigir dos outros que cumpram com esse preceito? Nada significa dizer que dever e direito se equivalem, a menos que se defina a natureza desse direito.

Tentemos atingir algo de mais preciso e positivo.

A justiça ó o astro central que governa as sociedades, o pólo sobre que o mundo político gira, o princípio e regra de todas as transações. Entre os homens nada se faz que não seja valorizar o direito invocando a justiça. A justiça não ó obra da lei: pelo contrário, a lei é apenas a declaração e a aplicação do justo, em todas as circunstâncias em que os homens se possam encontrar relacionados. Portanto, se a ideia que nós fazemos do justo e do direito estivesse mal determinada, se fosse incompleta ou mesmo falsa, é evidente que todas as nossas aplicações legislativas seriam más, as instituições viciosas, a política errada: daí adviria desordem e mal social.

Esta hipótese da perversão da justiça no nosso entendimento e consequentemente nos nossos atos seria um facto demonstrado se as opiniões dos homens, relativamente ao conceito de justiça e suas aplicações, não tivessem sido constantes; se, em épocas diversas, tivessem sofrido modificações; numa palavra, se tivesse havido progresso nas ideias. Ora é o que a história nos prova pelos testemunhos mais surpreendentes.

Há mil e oitocentos anos, o mundo, sob a proteção dos Césares, consumia-se na escravatura, superstição e volúpia. O povo, embriagado por longos bacanais, tinha perdido as noções do direito e do dever: a guerra e a orgia dizimavam-no; o gasto e o trabalho das máquinas, quer dizer, dos escravos, impediam-no de se reproduzir, tirando-lhe os meios de subsistência. O barbarismo renascia desta corrupção imensa e espalhava-se, como lepra galopante, pelas províncias despovoadas. Os sábios previam o fim do império mas como evitar esse fim? Que poderiam fazer para salvar esta sociedade envelhecida? Seria necessário mudar os Objetos da estima e veneração publica, abolindo direitos consagrados por uma justiça dez vezes secular. Dizia-se: “Roma venceu pela sua política e pelos seus deuses; qualquer reforma no culto e no espírito publico seria loucura e sacrilégio. Roma, indulgente para com as nações vencidas, conserva a vida dos povos mas oprime-os; os escravos são a fonte mais fecunda das suas riquezas; o enfraquecimento dos povo era negação de direitos e ruina de finanças. Roma, mergulhada em delícias e empanturrada com os despojos do universo, abusa da vitória e do poder; o Iixo e as volúpias são o preço das conquistas: não pode abdicar nem despojar-se deles.” Roma era assim apoiada pelo facto e pelo direito. As suas pretensões eram justificadas por todos os costumes e pelo direito dos povos. A idolatria na religião, a escravatura no Estado, o epicurismo na vida privada eram a base das instituições. Tocar-lhes seria abalar os fundamentos da sociedade e, segundo a expressão moderna, abrir caminho às revoluções. Ninguém se lembrou disso; e, no entanto, a humanidade morria no sangue e na luxuria.

De repente apareceu um homem trazendo a Palavra de Deus: ainda hoje não se sabe quem era nem donde vinha ou quem lhe teria sugerido tais ideias. Anunciava por toda a parte que o mundo ia ser renovado; que os padres eram víboras, os advogados ignorantes, os filósofos hipócritas e mentirosos; que o senhor e o escravo eram iguais, que a usura e tudo o que se lhe assemelhasse era um roubo, que os proprietários e os homens de prazer arderiam um dia, enquanto os pobres ds espírito e os puros habitariam num lugar de repouso. Acrescentava muitas outras coisas não menos extraordinárias.

Este homem, Palavra de Deus, foi denunciado e preso como inimigo publico pelos padres e juristas, conseguindo que o povo pedisse a sua morte. Mas este assassínio jurídico, fazendo aumentar os seus crimes, não abafou a doutrina que a Palavra de Deus semeara. Depois os primeiros apóstolos espalharam-se por toda a parte, pregando o que chamavam de boa-nova, agrupando à sua volta milhões de fiéis, morrendo sob a justiça romana quando terminada a tarefa. Esta propaganda obstinada, guerra de carrascos e mártires, durou perto de trezentos anos, após os quais o mundo se achou convertido. A idolatria foi destruída, a escravatura abolida, a dissolução deu lugar a costumes mais austeros, o desprezo pelas riquezas foi levado, algumas vezes, ao extremo da renuncia completa. A sociedade foi salva pela negação dos seus princípios, pelo agitar da religião e pela violação dos direitos mais sagrados. A ideia do justo alcançou, nesta revolução, uma dimensão não imaginada até aí! A justiça tinha existido apenas para os senhores (1); começou, desde então, a existir para os servos.

No entanto, a nova religião esteve longe de dar todos os seus frutos. Houve um melhoramento nos costumes públicos, um abrandamento da opressão; mas, quanto ao resto, a semente do Filho do homem, caída em corações idólatras, produziu apenas uma mitologia quase poética e inúmeras. discórdias. Em vez de se agarrarem às consequências práticas dos princípios de moral e de governo que a Palavra de Deus trouxera, entregaram-se a especulações sobre a sua nascença, a sua origem, a sua pessoa e os seus atos; fizeram-se epílogos sobre as suas parábolas e, do conflito das opiniões mais extravagantes sobre problemas insolúveis, sobre tentos não compreendidos, nasceu a teologia, que se pode definir como ciência do Infinitamente absurdo.

A verdade cristã não ultrapassou a idade dos apóstolos; o Evangelho, comentado e simbolizado por Gregos e Romanos, repleto de fábulas pagãs, tornou-se um sinal de contradição; e até hoje o reinado da Igreja infalível apenas engendrou um grande obscurecimento. Diz-se que as portas do Inferno não prevalecerão sempre, que a Palavra de Deus voltará e os homens conhecerão enfim a verdade e a justiça; mas então findará o catolicismo grego e romano, assim como os fantasmas da opinião que desaparecerão à luz da ciência.

Os monstros que os sucessores dos apóstolos tinham por missão destruir reapareceram pouco a pouco, graças ao fanatismo imbecil e, algumas vezes também, ô conivência dos padres e teólogos. A história da queda das comunas, em França, apresenta constantemente a justiça e a liberdade determinando-se no povo, apesar dos esforços conjugados dos reis, nobreza e clero. No ano de 1789 depois de Cristo, a nação francesa, dividida por castas, pobre e oprimida, debatia-se sob o absolutismo real, a tirania dos senhores e dos parlamentos e a intolerância sacerdotal. Havia o direito do rei e o direito do padre, o direito do nobre e o direito do plebeu; havia privilégios de nascença, de província, de comunas, de corporações e de ofícios: no fundo de tudo isto a violência, a imoralidade e a miséria. Já há algum tempo que se falava de reforma; os que mais a desejavam para se aproveitar dela e o povo, que tinha tudo a ganhar, não esperavam grande coisa nem se manifestavam. Durante muito tempo esse pobre povo hesitou sobre os seus direitos quer por incredulidade, desconfiança ou desespero: dir-se-ia que o hábito de servir tinha roubado a coragem às velhas comunas, tão orgulhosas na Idade Média.

Apareceu por fim um livro que se resumia a duas proposições: O que é o terceiro estado? nada. — O que devia ser? tudo. Alguém acrescentou, em forma de comentário: O que é o rei? é o mandatário do povo.

Foi como uma revelação súbita: rasgou-se um véu imenso, de todos os olhos caiu uma venda espessa. 0 povo pôs-se a raciocinar:

Se o rei é nosso mandatário deve prestar contas;

Se deve prestar contas está sujeito a ser fiscalizado;

Se pode ser fiscalizado é responsável;

Se é responsável, é punível;

Se é punível, o é segundo os seus méritos;

Se deve ser punido segundo os seus méritos pode ser punido com a morte.

Cinco anos depois da publicação da brochura de Sieyès, o terceiro estado era tudo; o rei, a nobreza e o clero já nada valiam. Em 1793 o povo, sem se prender com a ficção constitucional da inviolabilidade do soberano, conduziu Luís XVI ao cadafalso; em 1830 acompanhou Carlos X a Chesburgo. Se se tivesse enganado na avaliação dos delitos teria cometido na realidade um erro; mas, em direito, a lógica que o fez agir é irrepreensível. O povo, ao punir o soberano, fez precisamente o que tanto se reprovou ao governo de Julho não ter feito, depois da execução de Luís Bonaparte em Estrasburgo: atingiu o verdadeiro culpado. É uma aplicação de direito comum, uma determinação solene da justiça em matéria penal (1).

O espírito que originou o movimento de 89 foi um espírito de contradição; isso bastou para demonstrar que a ordem que substituiu a antiga, nada teve de metódico e reflectido; que, nascida da cólera e do ódio, não podia ter o eleito de uma ciência formada na observação e no estudo; numa palavra, que as bases não eram deduzidas do conhecimento profundo das leis da natureza e da sociedade. Vê-se, assim, que nas instituições ditas novas, a republica se serviu dos mesmos princípios contra os quais combatera, e sofreu a influência de todos os preconceitos que tivera intenção de banir. Fala-se com um entusiasmo irrefletido da gloriosa Revolução Francesa, da regeneração de 1789, das grandes reformas operadas, da •modificação das instituições: mentira! mentira!

Logo que as nossas ideias se modificam completamente, em consequência de certas observações, diante de uma realidade física, intelectual ou social, chamo revolução a esse movimento do espírito. Se só há ampliação ou simples modificação de ideias é o progresso. Assim, o sistema de Ptolomeu foi um progresso em astronomia, o de Copérnico foi revolucionário. Da mesma maneira em 1789 houve luta e progresso; não houve revolução. A análise das reformas experimentadas assim o demonstra.

O povo, tanto tempo vítima do egoísmo monárquico, julgou libertar-se definitivamente ao declarar que só ele era soberano. Mas o que era a monarquia? A soberania de um homem. O que é a democracia? A soberania do povo ou, melhor dizendo, da maioria nacional. Mas é sempre a soberania do homem posta no lugar da soberania da lei, a soberania da vontade em vez da soberania da razão, numa palavra, as paixões substituindo o direito. Sem duvida que há progresso sempre que um povo passa do estado monárquico ao democrático porque, fraccionando o poder, oferecem-se maiores oportunidades de a razão se substituir à vontade; mas afinal não há revolução no governo visto que o princípio continua a ser o mesmo. Ora hoje mesmo temos a prova de que não se pode ser livre na mais perfeita democracia.

Não é tudo: o povo-rei não pode exercer a soberania por si próprio; é obrigado a delegá-la nos fundamentos do poder: é o que não se cansam de lhe repetir os que procuram captar as suas boas graças. Que esses fundamentos do poder sejam cinco, dez, cem, mil, que importa o numero e o nome? é sempre o governo do homem, o reino da vontade e do belo prazer. Pergunto: que inovação nos trouxe a pretensa revolução?

De resto sabe-se como foi esta soberania exercida, primeiro pela Convenção, depois pelo Diretório, mais tarde confiscada pelo cônsul. Quanto ao imperador, o homem forte tão adorado e lamentado pelo povo, nunca quis sair dele; mas como se quisesse desafiá-lo na soberania ousou pedir-lhe o sufrágio, quer dizer, a abdicação dessa soberania inalienável, e obteve-o.

Mas afinal o que é a soberania? Diz-se que é o poder de fazer leis, portanto outro absurdo derivado do despotismo. O povo tinha visto os reis justificarem as suas ordens pela fórmula: porque é essa a nossa vontade; quis, por sua vez, experimentar o prazer de fazer leis. Desde há cinquenta anos que cria miríades, sempre, bem entendido, pela operação dos representantes. O divertimento está longe de chegar ao fim.

De resto a definição de soberania deriva, ela própria, da definição da lei. A lei, dizia-se, é a expressão da vontade do soberano: portanto, sob uma monarquia, a lei é a expressão da vontade do rei; numa republica a lei é a expressão da vontade do povo. À parte a diferença do numero de vontades os dois sistemas são perfeitamente idênticos: num e noutro o erro é igual: fazer da lei a expressão de uma vontade enquanto deve ser a expressão de um facto. Contudo seguiam-se bons guias: tomara-se por profeta o cidadão de Genebra e o Contrato Social por Alcorão.

A preocupação e o preconceito revelam-se a cada passo na retórica dos novos legisladores. O povo tinha sofrido grande quantidade de privações de privilégios; os seus representantes fizeram para ele a declaração seguinte: Todos os homens são Iguais por natureza e à face da lei; declaração ambígua e redundante. Os homens são iguais por natureza; quer dizer que têm todos o mesmo porte, a mesma b&leza, o mesmo gênio, a mesma virtude? Não: é então a igualdade política e civil que se quer designar. Neste caso bastava dizer-se: Todos os homens são iguais à face da lei.

Mas o que é a igualdade perante a lei? Nem a Constituição de 1790, nem a de 93, nem a carta outorgada, nem a carta aceite a souberam definir. Todas nos legavam uma desigualdade de riqueza e casta ao lado da qual era impossível encontrar a sombra de uma igualdade de direitos. Sob este ponto de vista pode dizer-se que todas as nossas constituições foram a expressão fiel da vontade popular: vou prová-lo.

Outrora o povo estava excluído dos empregos civis e militares: acreditou-se numa maravilha inserindo este artigo pomposo na Declaração dos direitos: “Todos os cidadãos são igualmente admitidos nos empregos; os povos livres só conhecem como motivo de preferência para as suas escolhas as virtudes e os talentos.”

Alguns com certeza que admiraram coisa tão bonita: admiraram um disparate. Quê! o povo soberano, legislador e reformador, não vê nos empregos públicos mais que gratificações, passe a palavra, esmolas! E é porque os olha como fonte de proveito que estatui sobre a admissibilidade dos cidadãos! Para quê esta precaução se nada houvesse a ganhar? Ninguém se lembra de proibir a carreira de piloto a quem não tiver sido astrônomo e geógrafo, ou impedir um gago de ser ator de teatro e ópera. Também aqui o povo foi o imitador dos reis: quis dispor de lugares lucrativos em favor dos amigos e aduladores; infelizmente, e este ultimo traço completa a semelhança, o povo não está à cabeça dos benefícios mas estão-no sim os mandatários e representantes. Também não tiveram o cuidado de contrariar a vontade do bondoso soberano.

Este artigo edificante da Declaração dos direitos, conservado pelas Cartas de 1814 e 1830, supõe várias espécies de desigualdades civis, o que significa desigualdades perante a lei: desigualdade de castas, visto que as funções publicas não são procuradas senão pela consideração e proventos que conferem; desigualdade de riqueza, pois se se tivesse querido que as fortunas fossem iguais, os empregos públicos teriam sido deveres, não recompensas; desigualdade de merecimento, não definindo a lei o que entende por talentos e virtude*. Sob o império, a virtude e o talento não eram mais que a coragem militar e a devoção pelo imperador: isso viu-se quando Napoleão criou a sua nobreza e tentou uni-la à antiga. Hoje o homem que paga duzentos francos de Impostos é virtuoso: o homem hábil é um ratoneiro honesto; aliás estas verdades são triviais.

Por fim o povo consagrou a propriedade… Deus lhe perdoe, porque ele não sabia o que fazia. Eis que expia há cinquenta anos um miserável equivoco. Mas como é que o povo, cuja voz é a de Deus e cuja consciência não saberia desfalecer, se pôde enganar? como é que caiu no privilégio e servidão ao procurar a liberdade e a igualdade? Sempre por imitação do regime antigo.

Outrora a nobreza e o clero não contribuíam para as despesas do Estado senão a título de ajuda voluntária e doações; os seus bens eram inacessíveis mesmo para pagamento de dívidas: enquanto o plebeu, sobrecarregado de tributos e impostos era incomodado sem descanso, tanto pelos cobradores do rei como pelos dos nobres e do clero. O intransmissível, colocado no lugar de coisa, não podia testar nem herdar; era como os animais, cujos serviços pertencem ao senhor por direito de acessão. O povo quis que a condição de proprietário fosse igual para todos; que cada um pudesse gozar e dispor livremente dos seus bens e lucros, do fruto do seu trabalho e Industria. O povo não inventou a propriedade; mas como ela não existia para ele da mesma forma que para os nobres e tonsurados, decretou a uniformidade desse direito. As formas acerbas da propriedade, a corveia, a intransmissibilidade, o despotismo, a exclusão dos empregos, desapareceram; o modo de gozo foi modificado: conservou-se o fundo. Houve progresso na atribuição do direito; não houve revolução.

Eis três princípios fundamentais da sociedade moderna que os movimentos de 1789 e 1830 consagraram:

 

  1. Soberania da vontade do homem e, reduzindo a expressão, despotismo;
  2. Desigualdade de riquezas e castas;
  3. Propriedade: acima da Justiça, invocada sempre e por todos como o gênio tutelar dos soberanos, nobres e proprietários; a Justiça, lei geral, primitiva e categórica de toda a sociedade.

 

Ter-se-á de saber se os conceitos de despotismo, desigualdade civil e propriedade estão ou não em conformidade com a noção primitiva do |usto, se são uma dedução necessária dela, manifestada de forma diversa segundo o caso, o lugar e a relação entre as pessoas;

ou se serão antes o produto ilegítimo de uma mistura de coisas diferentes, de uma fatal associação de ideias. E visto que a Justiça se determina sobretudo no governo, na condição das pessoas e na posse das coisas ó oreciso descobrir, segundo o consenso de todos os homens e progressos do espfrito humano, em que condições o governo é justo; a condição dos cidadãos, justa; a posse das coisas, justa; depois de eliminar tudo o que não satisfaça essas condições o resultado indicará qual o governo legitimo, qual a condição legitima dos cidadãos e qual a posse legitima das coisas; por fim, e como ultima expressão da análise, qual é a Justiça.

É justa a autoridade do homem sobre o homem?

Toda a gente responde: Não; a autoridade do homem ó apenas a autoridade da lei, que deve ser justiça e verdade. A vontade privada nada conta no governo que se limita por um lado a descobrir o que é verdadeiro e justo para daí deduzir a lei; por outro lado vigia a execução dessa lei. — Neste momento não examino se a nossa forma de governo constitucional satisfaz essas condições; se, por exemplo, a vontade dos ministros nunca se intromete na declaração e interpretação da lei; se os nossos deputados, nos seus debates, estão mais empenhados em vencer pela razão do que pelo numero: basta-me que a ideia de um bom governo seja tal como a defino. Esta ideia é exata: no entanto vemos que nada parece mais justo aos povos orientais que o despotismo dos seus soberanos; que os antigos e os próprios filósofos achavam bem a escravatura; que na Idade Média os nobres, abades e bispos achavam justo terem servos; que Lu(s XIV pensava dizer a verdade quando afirmou: O Estado sou eu; que Napoleão considerava crime da Estado a desobediência à sua vontade. A ideia de justo, aplicada ao soberano e ao governo não foi, portanto, sempre igual à de hoje; foi-se desenvolvendo e concretizando cada vez mais, até que por fim parou no estado presente. Mas chegou è ultima fase? Não o creio: só que, como o único obstáculo que resta vencer para acabar a reforma do governo e consumar a revolução deriva unicamente da instituição do domínio de propriedade que conservamos, é essa instituição quê devemos atacar.

É justa a desigualdade política e civil?

Uns respondem sim, outros não. Aos primeiros lembrarei que quando o povo baniu todos os privilégios do nascença e casta isso lhes pareceu bom, provável mente porque os beneficiou; porque não querem então que desapareçam os privilégios de riqueza como os de casta e raça? dizem que é porque a desigualdade política ô inerente à propriedade e que sem propriedade não há sociedade possível. Assim, a questão que acabamos de formular resume-se na da propriedade. — Aos segundos contento-me em fazer esta observação: Se querem gozar da igualdade política acabem com a propriedade; se não, de que ó que se queixam?

É justa a propriedade?

Toda a gente responde sem tiesitar: sim, a propriedade é justa. Digo toda a gente porque até agora parece-me que ninguém respondeu com pl&no conhecimento: náo. Uma resposta motivada não seria coisa fácil; só o tempo e a experiência podiam conduzir a uma solução. Actualmente encontrou-se essa solução; compete-nos ouvi-la. Tentarei demonstrá-la.

Eis a maneira como vamos raciocinar:

 

1 – Não discutimos, não reprovamos ninguém, não contestamos nada; aceitamos como boas todas as razões alegadas em favor da propriedade e limitamo-nos a procurar o seu fundamento para, em seguida, verificar se ele está fielmente expresso na propriedade. Efetivamente, não podendo a propriedade ser defendida senão como justa, a ideia ou pelo menos a intenção de justiça deve necessariamente encontrar-se no fundo de todos os argumentos dados a favor da propriedade: e como, por outro lado, a propriedade só se exerce sobre coisas materialmente apreciáveis, objectivando-se a justiça a si própria, por assim dizer, secretamente, deve aparecer sob uma fórmula algébrica. Com este método de observação depressa reconhecemos que todos os argumentos imaginados para defender a propriedade, quaisquer que sejam, pressupõem sempre e necessariamente a igualdade, quer dizer, a negação da propriedade.

Esta primeira parte compreende dois capítulos: um rei ativo à ocupação, fundamento do nosso direito; outro relativo ao trabalho e ao talento, considerados como causas de propriedade e desigualdade social.

A conclusão desses dois capítulos será, por um lado, que o direito de ocupação Impede a propriedade; por outro, que o direito ao trabalho a destrói.

2 – Sendo portanto a propriedade necessariamente concebida sob a razão categórica da igualdade temos de averiguar porque é que a igualdade não existe, apesar dessa necessidade lógica. Esta nova procura compreende também dois capítulos: no primeiro, considerando o facto da propriedade em si mesma, buscaremos se esse facto é real, se existe, se é possível; porque implicaria contradição que duas formas socialistas opostas, a igualdade e a desigualdade, fossem possíveis. Será então que descobriremos, facto singular, que na verdade a propriedade se pode -manifestar como acidente mas que matematicamente ó impossível como instituição e principio. De maneira que o axioma retórico, ab actu ad posse valet consecudio, do fato à possibilidade da consequência é bom, mas encontra-se desmentido no que respeita à propriedade.

Por fim no ultimo capítulo, recorrendo à psicologia e analisando a fundo a natureza do homem, exporemos o princípio do justo, a sua fórmula, o seu carácter; precisaremos a lei orgânica da sociedade; explicaremos a origem da propriedade, as causas do seu estabelecimento, longa duração e próximo desaparecimento; estabeleceremos definitivamente o seu paralelo com o roubo; e depois de ter mostrado que esses três preconceitos, soberania do homem, desigualdade de condições, propriedade, não são mais do que um, que podem ser tomados um pelo outro e são reciprocamente convertíveis, não teremos dificuldade em deduzir, pelo princípio da contradição, o fundamento do poder e do direito. Aí pararão as nossas pesquisas, reservando-nos o direito de lhes dar seguimento em novas memórias.

A importância do assunto que nos ocupa diz respeito a todas as pessoas.

“A propriedade, diz M. Hennequin, é o princípio criador e conservador da sociedade civil… À propriedade é uma das teses fundamentais sem as quais as explicações quo se pretendem novas não teriam podido alcançar-se tão cedo; porque, é preciso nunca o esquecer e é importante que o publicista e o homem de Estado estejam seguros disso; é da questão de saber se a propriedade é o princípio ou o resultado da ordem social, se é preciso considerá-la como causa ou como efeito, que depende toda a moralidade e, por isso mesmo, toda a autoridade das instituições humanas.”

Estas palavras são um desafio a todos os homens de esperança e fé: mas, ainda que a causa da igualdade seja bela, ninguém apanhou a luva atirada pelos defensores da propriedade, ninguém se sentiu bastante seguro, para aceitar o combate. O falso saber de uma jurisprudência orgulhosa e os aforismos absurdos da economia política tal como a propriedade a fez, perturbaram as Inteligências mais generosas; é uma espécie de palavra do ordem combinada entre os amigos mais influentes da llberdade e dos interesses do povo que a Igual dada é uma quimeral de tal maneira as teorias mais falsas e as analogas mais vãs, exercem um poder sobre espíritos lúcidos, embora subjugados, contra vontade, pelo preconceito popular. A igualdade nasce todos os dias; Soldados da liberdade, desertaremos a nossa bandeira na véspera da vitória?

Defensor da igualdade, falarei sem ódio nem cólera, com a independência própria do filósofo, com a calma e a segurança do homem livre. Pudesse eu, nesta luta solene, levar a todos os corações a luz que me ilumina e mostrar, pelo êxito do meu discurso, que se a igualdade não pôde vencer pela espada é porque deve vencer pela palavra!