Guerra ao Smart

Nos anos 1980, Terry Winograd, o mentor de Larry Page, um dos fundadores da Google, e Fernando Flores, antigo ministro da Economia de Salvador Allende, escreviam em relação à conceção informática que esta é “de ordem ontológica. Ela constitui uma intervenção sobre o fundo da nossa herança cultural e empur-ra-nos para fora dos hábitos arraigados da nossa vida, afetando profundamente as nossas maneiras de ser. (…) Ela é necessariamente reflexiva e política.” Pode-se dizer o mesmo da cibernética. Oficialmente, ainda somos governados pelo velho paradigma ocidental dualista onde há o sujeito e o mundo, o indivíduo e a sociedade, os homens e as máquinas, o espírito e o corpo, o vivo e o inerte; são distinções que o senso comum ainda tem como válidas. Na realidade, o capitalismo cibernetizado pratica uma ontologia, e portanto uma antropologia, cujas inovações reserva aos seus quadros. O sujeito ocidental racional, consciente dos seus interesses, que aspira ao domínio do mundo e que por isso é governável, dá lugar à conceção cibernética de um ser sem interioridade, de um selfless self, de um Eu sem Eu, emergente, climático, constituído pela sua exterioridade, pelas suas relações. Um ser que, armado com o seu Apple Watch, acaba por se apreender integralmente a partir de fora, a partir das estatísticas que cada um dos seus comportamentos engendra. Um Quantified Self que gostaria muito de controlar, medir e desesperadamente otimizar cada um dos seus gestos, cada um dos seus afetos. Para a cibernética mais avançada, já não há o homem e o seu meio ambiente, mas antes um ser-sistema, ele próprio inscrito num conjunto de sistemas complexos de informações, lugares de processos de auto-organização; um ser que percebemos melhor a partir da via média do budismo indiano do que de Descartes. “Para o homem, estar vivo equivale fazer parte de um amplo sistema mundial de comunicação”, avançava Wiener em 1948.Tal como a economia política produziu um homo economicus gerenciável no quadro dos Estados industriais, a cibernética produz a sua própria humanidade. Uma humanidade transparente, esvaziada pelos próprios f luxos que a atravessam, eletrizada pela informação, ligada ao mundo por uma quantidade sempre crescente de dispositivos. Uma humanidade inseparável do seu ambiente tecnológico, porque por ele constituída e aí conduzida. Tal é agora o objeto da governação, já não o homem nem os seus interesses, mas o seu “ambiente social”. Um ambiente cujo modelo é a cidade inteligente. Inteligente porque produz, graças aos seus sensores, a informação cujo tratamento permite a sua autogestão em tempo real. E inteligente porque produz e é produzida por habitantes inteligentes. A economia política reinava sobre os homens deixando-os livres de prosseguir os seus interesses, a cibernética controla-os, deixando-os livres para comunicar. “Devemos reinventar os sistemas sociais num quadro controlado”, resumia recentemente um professor qualquer do MIT. A visão mais petrificante e mais realista da metrópole do futuro não está nas brochuras que a IBM distribui aos municípios para lhes vender sistemas de controlo dos f luxos de água, de eletricidade ou do tráfego viário. É antes essa que se desenvolveu a priori “contra” a visão orwelliana da cidade: «smart cities» coproduzidas pelos seus habitantes (ou, pelo menos, pelos mais conectados de entre eles). Um outro professor do MIT em viagem pela Catalunha congratula-se por ver a sua capital tornar-se pouco a pouco uma “fab city”: “Sentado aqui em pleno centro de Barcelona vejo que se inventa uma nova cidade na qual todo o mundo poderá aceder às ferramentas para que ela se torne completamente autónoma.” Os cidadãos já não são mais subalternos mas sim smart people; “receptores e geradores de ideias, de serviços e de soluções”, como diz um deles. Nesta visão, a metrópole não se torna smart pela decisão e ação de um governo central, ela surge, tal como uma “ordem espontânea”, quando os seus ha-bitantes “encontram novos meios de fabricar, ligar e dar sentido aos seus próprios dados”. Detrás da promessa futurista de um mundo de homens e de objetos integralmente conectados – quando carros, frigoríficos, relógios, aspiradores e vibradores estiverem diretamente ligados entre si e à Internet –, há o que já aqui está: o facto de que o mais polivalente dos sensores esteja já em funcionamento – eu–próprio. “Eu” partilho a minha geo-localização, o meu estado de humor, as minhas ideias, o relato do que vi hoje de incrível ou de incrivelmente banal. Eu corri; imediatamente partilhei o meu percurso, o meu tempo, as minhas performances, e a sua autoavaliação. Permanentemente posto as fotos das minhas férias, das minhas noitadas, dos meus motins, dos meus colegas, daquilo que vou comer como daquilo que vou foder. Parece que não estou a fazer nada e no entanto produzo, em permanência, dados. Quer trabalhe ou não, a minha vida quotidiana, enquanto stockde informações, continua integralmente valorizável. Eu melhoro em contínuo o algoritmo.“Graças às redes difusas de sensores, teremos sobre nós próprios o ponto de vista omnisciente de Deus. Pela primeira vez, podemos cartografar com precisão o comportamento de massas das pessoas, até na sua vida quotidiana”, entusiasma-se um tal professor do MIT. Os grandes reservatórios refrigerados de da-dos constituem a despensa do governo atual. Ao perscrutar as bases de dados produzidas e continuadamente atualizadas pela vida quotidiana dos humanos conectados, ele procura as correlações que permitam estabelecer não leis universais, nem mesmo os “porquês”, mas os “quandos” e os “quês”, previsões pontuais e situadas, oráculos. Gerir o imprevisível, governar o ingovernável e já não tentar aboli-lo, essa é a ambição declarada da cibernética. A gestão do governo cibernético não é somente, como no tempo da economia política, prever para orientar a ação, mas agir diretamente sobre o virtual, estruturar os possíveis. A polícia de Los Angeles dotou-se há alguns anos de um novo programa informático chamado “Prepol”. Ele calcula, a partir de uma multidão de estatísticas sobre o crime, as probabilidades que este ou aquele delito seja cometido, bairro a bairro, rua a rua. É o próprio programa informático que, a partir dessas probabilidades atua-lizadas em tempo real, comanda as patrulhas de polícia na cidade. Um guru cibernético escrevia, no jornal Le Monde em 1948: “Poderemos sonhar com um tempo em que a máquina de governar virá suprir – para o bem ou para o mal, quem o saberá? – a insuficiência patente nos dias de hoje das lideranças e dos apare-lhos habituais da política.” Cada época sonha a seguinte, pronta a que o sonho de uma se torne no pesadelo quotidiano da outra. O objeto da grande recolha de informações pessoais não é um seguimento individualizado do conjunto da população. A insinuação na intimidade de cada um e de todos serve menos para produzir fichas individuais do que grandes bases estatísticas que ganham sentido pela quantidade. É mais econômico correlacionar as características comuns dos indivíduos numa multidão de “perfis”, e os devires prováveis que daí decorrem. Não interessa o indivíduo presente e inteiro, mas apenas aquilo que permite de-terminar as suas linhas de fuga potenciais. O interesse em aplicar vigilância sobre perfis, “acontecimentos” e virtualidades é que as entidades estatísticas não se revoltam; e que os indivíduos podem sempre pretender não ser vigiados, pelo menos enquanto pessoas. Enquanto a governamentalidade cibernética opera já a partir de uma lógica completamente nova, os seus sujeitos atuais continuam a pensar-se de acordo com o antigo paradigma. Cremos que os nossos dados “pessoais” nos pertencem, como o nosso carro ou os nossos sapatos, e que não fazemos mais do que exercer a nossa “liberdade individual” ao permitir que a Google, o Facebook, a Apple, a Amazon ou a polícia tenham acesso a eles, sem vermos que isso tem efeitos imediatos sobre aqueles que a tal se recusam, e que doravante serão tratados como suspeitos, potenciais desviantes. “Sem dúvida que”, preveem os autores de The New Digital Age, “no futuro ainda haverá pessoas a resistir à adoção e uso de tecnologias, pessoas que recusam ter um perfil virtual, um smartphone ou o menor contacto com sistemas de dados em linha. Por seu lado, um governo pode suspeitar que pessoas que desertem completamente disso tudo tenham algo a esconder e de que são assim mais suscetíveis de infringir a lei. Como medida antiterrorista, o governo constituirá então um fi-cheiro de «pessoas escondidas». Se o leitor não tem nenhum perfil conhecido em nenhuma rede social ou não tem um contrato de telemóvel, e se é particularmente difícil encontrar referências sobre si na Internet, o leitor poderá muito bem ser candidato a um ficheiro desses. Poderá também ver-se alvo de um conjunto de medidas especiais que incluam revistas rigorosas nos aeroportos e mesmo proibição de viajar.”

 

Trecho de “Aos nossos Amigos” do Comitê Invisível

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