Não é a fraqueza das lutas que explica o desvanecimento de qualquer perspetiva revolucionária: é a ausência de perspectiva revolucionária credível que explica a fraqueza das lutas. Obcecados que somos por uma ideia política de revolução, negligenciamos a sua dimensão técnica. Uma perspetiva revolucionária já não tem que ver com a reorganização institucional da sociedade, mas com a configuração técnica dos mundos.
Trata-se, enquanto tal, de uma linha traçada no presente, não uma imagem flutuante no futuro. Se queremos reaver uma perspetiva, teremos que reagrupar a constatação difusa de que este mundo não pode mais continuar desejando construir outro melhor. Pois este mundo mantém-se, antes de mais, por via da dependência material que faz de cada um, na sua simples sobrevivência, dependente do bom funcionamento geral da máquina social.
Teremos que dispor de um aprofundado conhecimento técnico da organização deste mundo: um conhecimento que permita, simultaneamente, colocar fora de uso as estruturas dominantes e reservar-nos o tempo necessário à organização de uma desconexão material e política do curso geral da catástrofe, desconexão que não seja assombrada pelo espectro da penúria, pela urgência da sobrevivência.
Para o dizer de forma clara: enquanto não soubermos como nos livrar das centrais nucleares e enquanto desmantelá-las for um negócio para aqueles que as querem eternas, aspirar à abolição do Estado continuará a o fazer sorrir; enquanto a perspetiva de um levantamento significar por certo penúria de cuidados médicos, de alimentos ou de energia, não haverá nenhum movimento de massas decidido. Por outras palavras: temos que retomar um meticuloso trabalho de pesquisa. Temos de ir ao encontro, em todos os sectores, em todos os territórios que habitemos, daqueles que dispõem de conhecimentos técnicos estratégicos. É somente a partir daí que os movimentos ousarão verdadeiramente “bloquear tudo”.
É somente a partir daí que se libertará a paixão de experimentar uma outra vida, paixão técnica em larga escala, que é como a inversão da situação de dependência tecnológica de todos. Este processo de acumulação de saber, de estabelecimento de cumplicidades em todos os domínios, é a condição de um regresso sério e massivo da questão revolucionária.“O movimento revolucionário não foi vencido pelo capitalismo, mas pela democracia”, dizia Mario Tronti. Ele foi ainda vencido por não ter conseguido apropriar-se do essencial da potência operária. O que faz o operário não é a sua exploração por um patrão, o que ele partilha com qualquer outro assalariado. Aquilo que positivamente faz o operário é o seu domínio técnico, incorporado, de um modo de produção particular. Há aí uma inclinação ao mesmo tempo sábia e popular, um conhecimento apaixonado que constituía a riqueza própria do mundo operário antes de o capital, precavendo-se contra o perigo aí contido e não sem antes ter previamente sugado todo esse conhecimento, ter decido fazer dos operários operadores, vigilantes e agentes de manutenção das máquinas. Mas mesmo aí, a potência operária mantém-se: quem sabe fazer funcionar um sistema também o sabe sabotar eficazmente. Ora, ninguém pode dominar individualmente o conjunto de técnicas que permitem ao sistema atual reproduzir-se. Isso, apenas uma força coletiva o pode fazer.
Construir uma força revolucionária, nos dias de hoje, é justamente isso: articular todos os mundos e todas as técnicas revolucionariamente necessárias, agregar toda a inteligência técnica numa força histórica e não num sistema de governo.O fracasso do movimento francês de luta contra a reforma das pensões, do Outono de 2010, ter-nos-á dado uma áspera lição: se a CGT teve mão sobre toda a luta, foi em virtude da nossa insuficiência nesse plano. Teria bastado fazer do bloqueio das refinarias, sector onde ela é hegemônica, o centro de gravidade do movimento. E de seguida, ganhar a possibilidade de a qualquer momento apitar o fim da partida, reabrindo as veias das refinarias e afrouxando dessa forma toda a pressão sobre o país. O que então faltou ao movimento foi precisamente um conhecimento mínimo do funcionamento material deste mundo, conhecimento que se encontra disperso nas mãos dos operá-rios, concentrado na carola de alguns engenheiros e certamente tornado comum, no lado adverso, numa qualquer obscura instância militar. Se tivéssemos sabido parar o aprovisionamento de gás lacrimogêneo da polícia ou se tivéssemos sabido interromper por um dia a propaganda televisiva, se tivéssemos sabido privar as autoridades de eletricidade, podemos ter a certeza de que as coisas não teriam acabado tão desgraçadamente. De resto, temos que considerar que a principal derrota política do movimento terá sido deixar ao Estado, na forma de requisições policiais, a prerrogativa estratégica de determinar quem teria gasolina e quem dela seria privado. “Se hoje em dia quiser desembaraçar-se de alguém, deverá atacar as suas infraestruturas”, escreve com muita justeza um universitário norte-americano.
Desde a Segunda Guerra Mundial que a Força Aérea norte-americana não parou de desenvolver a ideia de “guerra infraestrutural”, vendo nos equipamentos civis mais banais os melhores alvos para pôr de joelhos os seus adversários. Tal explica, aliás, que as infraestruturas estratégicas deste mundo estejam rodeadas de um crescente sigilo. Para uma força revolucionária, não faz sentido saber como bloquear a infraestrutura do adversário, se não se souber como a pôr a funcionar em seu proveito, caso seja necessário. Saber destruir o sistema tecnológico supõe experimentar e pôr em prática simultaneamente as técnicas que o tornam supérfluo. Regressar à terra é, para começar, não mais viver na ignorância das condições da nossa existência.
Esse texto é parte do livro Aos Nossos Amigos