As ruas, que já foram dos principais instrumentos para a expressão coletiva e convivência comunitária, foram resumidas hoje ao status de “passarelas” para que os carros “desfilem”; São apenas vias pelas quais saímos e chegamos aos nossos destinos para ficarmos aprisionados: no trabalho, nas escolas, nos mercados, nas igrejas (ou nas versões contemporâneas delas, os shopping center’s), e etc.
Ao nos deslocarmos por elas, é significativo que nos vejamos uns aos outros apenas atrás de vidros, enclausurados dentro do carro, nossa “bolha” que nos priva da convivência com nossos iguais e do contato com a natureza. Na nossa “bolha” estamos em constante competição com a natureza e uns com os outros.
Contra a natureza, nos privamos do vento a bater no rosto, do frescor da chuva e do calor que já não nos toca a pele, ao mesmo tempo em que emitimos gases que aquecem a atmosfera e matam o planeta lentamente, simplesmente pelo “conforto” do ambiente condicionado aos nossos padrões industrializados.
Contra os outros competimos para chegar primeiro, seja aonde for que estejamos indo. Brigamos e nos estressamos por cada cortada, por cada freada, por cada sinal fechado simplesmente porque a nossa “bolha” de conforto mais parece uma prisão, ou então porque tempo é dinheiro e tempo se locomovendo não é produtivo…
Pense nos usos mais variados usos que teríamos para as ruas, sem os carros: poderiam ser transformados em jardins e cozinhas comunitárias, poderiam ser realizados teatros públicos e exposições de ideias científicas e filosóficas, poderiam ser convertidas em rodas de debates sobre assuntos escolhidos, poderiam ser usadas para comitês discutindo melhorias no bairro. Também poderiam ser convertidas em locais de dádiva, onde seriam oferecidos serviços e itens variados, gratuitamente. Ou seja, uma infinidade de opções. Seriam, enfim, um local onde as nossas habilidades humanas iriam florescer, onde nossa criatividade, aliada a das demais pessoas, seria usada para transformar as coisas a nossa volta. Procuraríamos, no lugar de nos “qualificarmos” para um emprego, ou seja, nos acostumarmos a exercer uma atividade sem significado que detestamos, a ter um controle espontâneo de nossas mentes e membros, que serviriam de meios de expressão de nós mesmos e de confecção de ferramentas para melhorar a vida de todos ao nosso redor.
A satisfação de nossas vidas proveria através da expressão dessa individualidade, da descoberta de inúmeras formas de criação coletiva e da felicidade de realizá-las em conjunto com as demais pessoas. A rua seria, finalmente de fato, pública: todos poderiam participar e ninguém precisaria pagar nada. Ou seja, teríamos algo diferente do que os atuais clubes privados, quase sempre geridos com fins lucrativos que limitam a experiência dos sócios ao “consumo” de um espaço artificial que são impedidos de alterar. Fica mais fácil entender as revoltas generalizadas que terminavam com carros sendo virados ou incendiados em maio de 1968, na França: é uma revolta, frequentemente inconsciente, contra o trabalho alienado. Pela transformação de nós mesmos em simples apêndices sem consciência de uma máquina sem consciência, seja ela física ou burocrática.
Essa visão assombrosa de todo potencial que não é usado para criarmos coisas nós mesmos ativamente ou para nos conectarmos uns com os outros, mas para a produção de uma coleção infindável de mercadorias cujas propriedades não podemos decidir diretamente, que sequer são meios de enriquecer nossas vidas, mas apenas nossa atividade criativa estocada em objetos postos a venda num mercado é o que, inconscientemente, nos faz reclamar toda segunda quando acordamos para ir ao trabalho. E as ruas é são o primeiro simbolo dessa privação com que nos deparamos. Cabe a nós libertá-las.