Quem roubou o mais-valor? O romance Noir do capital

Esse texto trata-se de um capitulo da obra “Marx, Manual de Instruções”, de Daniel Bensaid e pode ser encontrada na íntegra aqui

das_kapital_by_brunoautran-d5w6rulO capital tem reputação de livro difícil. No entanto, Marx pretendia tê-lo escrito para trabalhadores. A verdade está no meio: o livro não é fácil, mas é decifrável. E deveria seduzir qualquer leitor de romances policiais. Porque é um romance policial, o protótipo do romance noir, escrito na época em que, de Um caso tenebroso de Balzac ao herói de Conan Doyle, passando por Poe, Dickens e Wilkie Collins, o gênero amadureceu, na medida exata em que se desenvolviam as cidades modernas, onde se perde a pista dos culpados e o criminoso se dissipa no anonimato da multidão. É também a época em que a Scotland Yard confia as investigações policiais complexas a inspetores à paisana e a agência Pinkerton desfruta de uma notável prosperidade. Em qualquer enredo bem idealizado, a abordagem do tema é fundamental. A Bíblia começa pelo Verbo, Hegel pelo Ser, Proust pela madeleine. Em um mundo que forma um todo cujas partes são articuladas e solidárias, por onde começar? Marx não para de refletir sobre esse problema, a ponto de modificar catorze vezes seu projeto, entre setembro de 1857 e abril de 1868. O projeto original era dividido em seis livros: 1) O capital; 2) A propriedade rural; 3) O trabalho assalariado; 4) O Estado; 5) O comércio exterior; 6) O mercado mundial. O projeto modificado reduziu se a três: 1) O processo de produção do capital; 2) O processo de circulação do capital; 3) O processo global de produção capitalista (ou a reprodução do conjunto). As questões atinentes à concorrência, ao lucro e ao crédito são agora logicamente analisadas no Livro III, sobre o processo global. Desaparecem a questão do Estado e a do mercado mundial.

Como Millennium, O capital também é uma trilogia. Marx inspira-se na lógica de Hegel. Assim, os três livros seguem de perto os três momentos da natureza em Enciclopédia das ciências filosóficas: o mecanismo (relação de exploração na produção), o quimismo (ciclo das diferentes formas de capital), a física orgânica ou o organismo vivo (reprodução do conjunto). A difícil questão do começo (onde começa uma totalidade?), o ponto de partida para a travessia das aparências enganosas, está por fim resolvida. 

fig-1

No princípio era a mercadoria. Sob sua aparente banalidade, qualquer mesa, qualquer relógio, qualquer prato, como a noz da célebre canção de Charles Trenet[a], contém um mundo de mercadorias. Basta abrir para que saia, como lenços e coelhos do chapéu de um mágico, uma série de categorias que vêm aos pares: valor de uso e valor de troca, trabalho concreto e trabalho abstrato, capital constante e capital variável, capital fixo e capital circulante. Um mundo esquizofrênico, perpetuamente bipartido entre quantidade e qualidade, privado e público, homem e cidadão. A partir da definição inicial de riqueza como uma “enorme acumulação de mercadorias”, Marx tem os trunfos para esclarecer o grande mistério moderno, o grande prodígio do dinheiro que faz dinheiro: no princípio da riqueza estava o crime de extorsão do mais-valor, quer dizer, o roubo do tempo de trabalho forçado não pago do trabalhador! Ao descobrir, aos 22 anos, as condições de exploração, os casebres, as doenças da classe laboriosa inglesa, o jovem Engels já tinha entendido que se tratava simplesmente de um “assassinato”. De um “assassinato idêntico ao perpetrado por um indivíduo, apenas mais dissimulado e mais pérfido”, porque é um “assassinato contra o qual ninguém pode se defender, porque não parece um assassinato, porque não se vê o assassino, porque o assassino é todo mundo e ninguém, a morte da vítima parece natural”[1]. Mas não deixa de ser um assassinato. Para elucidar esse assassinato anônimo, Sherlock-Marx, assistido por Watson-Engels, consagrará a maior parte de sua vida. 

A cena do crime: o processo de produção do capital (Livro I)

Por mais tempo que se permaneça na movimentada praça do mercado, onde se agitam vendedores e clientes, onde se trocam mercadorias e dinheiro, continua intacto o mistério da acumulação da riqueza. Se a troca fosse equitativa, o mercado seria um jogo de soma nula. Cada um receberia a exata contrapartida do que oferecesse. Supondo-se que haja jogadores mais hábeis do que outros, que embolsem mais do que o valor apostado, ainda assim seria um jogo de soma nula, porque alguns perderiam exatamente o que outros ganhariam. Porém, o gigantesco ajuntamento de mercadorias não para de crescer. O capital acumula-se. De onde vem esse crescimento? Insondável mistério. Pelo menos enquanto se fica aturdido pela efervescência do mercado ou, em versão mais contemporânea, pela agitação neurótica dos corretores e operadores da Bolsa. O detetive Marx nos convida a olhar ao redor. A descobrir o que se passa nos bastidores ou, melhor ainda, no subsolo, nos porões onde o mistério se esclarece:

Deixemos, portanto, essa esfera rumorosa, onde tudo se passa à luz do dia, ante os olhos de todos, e acompanhemos os possuidores de dinheiro e de força de trabalho até o terreno oculto da produção, em cuja porta se lê: No admittance except on business [Entrada permitida apenas para tratar de negócios]. […] O segredo da criação do mais-valor tem, enfim, de ser revelado. […] Ao abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, de onde o livre-cambista vulgaris [vulgar] extrai noções, conceitos e parâmetros para julgar a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já podemos perceber uma certa transformação, ao que parece, na fisionomia de nossas dramatis personae [personagens teatrais]. O antigo possuidor do dinheiro se apresenta agora como capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com um ar de  importância, confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da… despela.[b]

fig-2

Cena extraordinária de descida aos Infernos! Dá para vê-los, esses dois personagens. O homem do dinheiro (hoje, dos euros), satisfeito, arrogante, autoritário, e o trabalhador resignado, humilhado, envergonhado de ter se vendido e do que o espera. Atrás da agitação superficial do mercado fica o curtume, o local do crime: a oficina ou a fábrica onde o trabalhador é espoliado do mais-valor, onde enfim se revela o segredo da acumulação da riqueza. Entre as mercadorias, uma é bem singular: a força de trabalho. Ela tem a fabulosa virtude de criar valor ao ser consumida, de funcionar mais tempo do que o necessário para sua própria reprodução. É dessa capacidade que o homem do dinheiro se apoderou. O trabalhador, que não possui nada para vender exceto sua força de trabalho, não tem escolha. Mas, se aceitou e consentiu em seguir seu comprador, ele não se pertence mais. “O valor de uso da força de trabalho [sua utilidade para o comprador], o próprio trabalho, pertence tão pouco ao seu vendedor quanto o valor de uso do óleo pertence ao comerciante que o vendeu”[c]. Aparentemente equitativo, dando e recebendo – de “ganha-ganha”, como diriam nossos candidatos –, o contrato de compra e venda da força de trabalho revela-se uma trapaça. Uma vez concluído, o trabalhador é reduzido a tempo de trabalho personificado”[d], uma “carcaça de tempo”, segundo Marx, que o empregador tem legalmente o direito de utilizar quanto quiser. A repartição entre o tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho do trabalhador e de sua família, e o “sobretrabalho” que lhe é gratuitamente extorquido ou imposto pelo patrão: essa é a aposta inicial da luta de classes. A aposta de uma luta permanente, em que o trabalhador se esforça para aumentar sua parte na divisão entre trabalho necessário e sobretrabalho, entre salário e mais-valor, enquanto o patrão, inversamente, ao intensificar o trabalho, prolongar sua duração e reduzir as necessidades do trabalho, se esforça no sentido oposto. compreende-se agora o disparate da ideia de “preço justo” para uma “jornada normal de trabalho”. Não existe jornada normal nem preço justo. Porque a força de trabalho, à diferença das outras mercadorias, contém em si um “elemento histórico e moral”[e]. Marx entende que as necessidades sociais não são redutíveis

às necessidades básicas de se alimentar e se aquecer. Elas evoluem historicamente. Enriquecem-se, diversificam-se, e seu reconhecimento pela sociedade é o resultado de uma relação de forças. Com insistência, o trabalhador não cansa de lutar para que novas necessidades (culturais, de lazer, qualidade de vida, saúde, educação) se tornem legítimas dentro do tempo de trabalho reconhecido como “socialmente necessário” à reprodução de sua força de trabalho. Em outras palavras, luta para deslocar a seu favor o cursor da divisão e, portanto, reduzir o “tempo de trabalho extra”, o mais-valor usurpado por seu empregador. Inversamente, o empregador sempre se esforça para reduzir as necessidades socialmente reconhecidas do trabalhador e aumentar a taxa de exploração ou de mais-valor, fazendo pressão sobre os salários, exigindo redução de encargos, reclamando isenções fiscais, desviando despesas de saúde e educação para a esfera privada. Tentando prolongar o tempo de trabalho (aumento da duração semanal, adiamento da idade de aposentadoria) ou intensificar o trabalho (aumento do ritmo, “gestão por estresse”, gerenciamento do tempo ocioso etc.), a maior parte das vezes investindo em ambas as frentes. Na primeira, Marx fala de aumento do mais-valor absoluto; na segunda, de aumento do mais-valor relativo.

fig-3

fig-4

Foi cometido um crime original. O mais-valor foi roubado! Se a vítima, o trabalhador, não morreu (mas às vezes morre: acidentes de trabalho, suicídio,depressão, doenças profissionais), ficou mutilado, fisica e psiquicamente. Porque, na manufatura moderna: 

[…] não só os trabalhos parciais específicos são distribuídos entre os diversos indivíduos, como o próprio indivíduo é dividido e  transformado no motor automático de um trabalho parcial […]. As potências intelectuais da produção, ampliando sua escala por um lado, desaparecem por muitos outros lados. O que os trabalhadores parciais perdem concentra-se defronte a eles no capital.[f] 

A consequência é o que Marx já qualifica de “patologia industrial”. Com o aparecimento dos acionistas assalariados, essa patologia atinge a esquizofrenia. Despedaçado, bipartido entre assalariado e acionista, dividido contra si próprio, o trabalhador teria agora interesse, como acionista, em explorar-se e demitir-se, a si próprio, para aumentar a cotação de suas ações!

A lavagem do dinheiro: a circulação do capital (Livro II)

Não basta ter cometido o crime quase perfeito e saqueado a vítima. É ainda preciso tirar proveito, portanto, lavar dinheiro. É o objeto dos dois livros seguintes de O capital, o processo de circulação e o processo global, em que se realiza a transmutação do mais-valor em lucro. O primeiro livro tem como palco o local de produção (fábrica, oficina, escritório); o segundo, o mercado. Seu propósito não é esclarecer o mistério da origem do mais-valor, mas o modo como ele circula até cair nas mãos do homem do dinheiro. O trabalhador não figura mais como explorado produtor de sobretrabalho, mas como vendedor de sua força de trabalho e comprador potencial de bens de consumo. O papel principal do drama agora cabe ao capitalista em ação: financista, empresário, comerciante, que são as sucessivas encarnações do capital. 

fig-5

Durante o processo de circulação, o capital muda continuamente o figurino: entra em cena como dinheiro (D), sai por um lado e volta pelo outro em forma de máquinas e matérias-primas (P) – ou capital constante – e salários – ou capital variável. Daí sai de novo e se reapresenta como produto, mercadorias (M), que por sua vez se metamorfoseiam no ato de venda, para reassumir a forma dinheiro. Com o detalhe de que, ao voltar a essa forma (D’), o dinheiro inicial (D) terá procriado. Ao longo de suas metamorfoses, o capital cresce. Acumula se.

fig-6

No processo de produção (Livro I), o tempo é linear. Analisa-se a luta pela divisão de um segmento, a jornada de trabalho, entre trabalho necessário e sobretrabalho. No processo de circulação (Livro II), o tempo é cíclico. Fala-se das rotações durante as quais o capital percorre o ciclo de suas transformações:

O capital, como valor que se valoriza, não encerra apenas relações de classes, um carácter social determinado que repousa sobre a existência do trabalho como trabalho assalariado. […] O capital é um movimento, um processo cíclico atravessando diversos estágios e que ele próprio implica por seu lado três formas diferentes do processo cíclico. É por isso que o capital só pode ser compreendido como movimento, e não como uma coisa estática, parada.[g]

A circulação estabelece, com efeito, um vínculo social coercitivo entre a produção e a realização do valor. O capital não é uma coisa, mas um movimento perpétuo. Do mesmo modo que o ciclista cai se parar de pedalar, o capital morre se parar de circular.

fig-7

Ora, cada metamorfose, cada ato de compra e venda, é um salto acrobático, porque não existe mais um vínculo necessário entre ambos. Se a mercadoria não tiver comprador, se sobrar no estoque ou nas prateleiras do comerciante, o ciclo se interromperá. O capital correrá risco de parada cardíaca. E, como o detentor do capital monetário ou bancário (D’) na maior parte das vezes se antecipou à venda para investir em novo ciclo, na esperança de novo lucro (D’’ > D’ > D), a crise pode virar uma bola de neve. Para conhecer a parte de trabalho privado que será validada como trabalho social, é preciso, com efeito, esperar o veredicto do mercado. Suponhamos que um marceneiro fabrique uma mesa em dez dias e que seu concorrente tenha descoberto, sem que ele saiba, um meio de fabricar a mesma mesa em um só dia. Quando ambos se apresentarem ao mercado, o primeiro cobrará caro demais. Sua mesa não será vendida. Ele estará condenado à falência. Seu trabalho terá sido pura perda, porque não será validado pelo mercado como trabalho socialmente útil. Para tanto, a mercadoria teria de cumprir seu último salto, de mercadoria a dinheiro, salto de mestre ou salto da morte, conforme tenha sucesso ou fracasse. Mas disso o empresário não pode ter nenhuma garantia antecipada. Essa circulação não é homogênea. No Livro I, o que Marx chama de capital constante (fábricas, máquinas, matérias primas, depósitos) e o que chama de capital variável (consagrado à compra da força de trabalho) intervêm como determinações específicas do capital na esfera de produção. No Livro II, capital fixo (máquinas e locais que não se esgotam durante um ciclo de produção) e capital circulante (matérias-primas e salários) intervêm como determinações específicas na esfera de circulação. O capital circulante é consumido e renovado a cada ciclo, enquanto o capital fixo só é consumido parcialmente e se renova com intermitência. O capital pode “durar muito tempo em forma de dinheiro”, mas não se conserva “na forma perecível de mercadoria”. Por fim, “os ciclos dos capitais individuais se entrelaçam, se pressupõem e se condicionam uns com os outros”[h]. Esse enovelamento constitui o movimento de conjunto do capital. Contém fatores de arritmia, de discordância, que se manifestam nas crises tanto em função da distribuição desproporcional do capital entre o setor de bens de produção e o de bens de consumo quanto em função de solavancos consecutivos à renovação do capital fixo, ou à desconexão entre produção e realização de mais-valor. Como se o receptador não conseguisse mais escoar o produto do roubo de uma quadrilha, que continuasse a assaltar joalherias sem jamais obter qualquer retorno monetário. O livro sobre o processo de circulação destaca, assim, o caráter descontínuo das conexões entre as diversas formas que assume o capital durante as suas metamorfoses. A questão complica-se mais ainda porque o modo de produção capitalista não se restringe ao ciclo percorrido por um capital solitário. É uma produção generalizada de mercadorias. O capital monetário (D) não se contenta em preceder ou suceder as outras formas de aparição (P ou M). Quer estar a seu lado. Logo, a continuidade do processo global depende da descontinuidade e da dessincronização dos ciclos respectivos do capital monetário, industrial e comercial, isto é, que o banqueiro possa fornecer crédito para o industrial investir antes de suas mercadorias serem escoadas pelo comerciante, e que o comerciante consiga empréstimo para renovar seu estoque antes que tenha esgotado o precedente. O Livro II examina, assim, o entrelace, o vaivém constante entre aparição e desaparição dessas três formas de capital, da esfera de circulação à de produção, e vice-versa, até que a mercadoria seja finalmente consumida. Nas três figuras do processo de circulação, “cada momento (dinheiro, D; capital produtivo, P; e mercadoria, M) aparece sucessivamente como ponto de partida, ponto intermediário e retorno ao ponto de partida do ciclo”. Portanto, o processo de produção serve de meio ao processo de circulação e reciprocamente. Mas, na realidade, cada capital industrial está simultaneamente envolvido nos três ciclos. “O ciclo total é a unidade efetiva dessas três formas”, e o capital só pode ser compreendido em seu ciclo global. O Livro II também ressalta a importância do fator tempo: “A rotação do elemento fixo do capital constante, e, consequentemente, a duração necessária dessa rotação, engloba várias rotações dos elementos circulantes”[i]. O valor do capital produtivo é “introduzido de um só golpe” na circulação, mas é retirado “gradualmente”, em frações. 

O acerto da grana: o processo global da produção capitalista (Livro III)

No Livro I, o mais-valor foi roubado. No Livro II, ele passou de mão em mão. No Livro III, chega a hora de dividir o butim, do “acerto”, nas palavras de Michel Audiard e Albert Simonin[j]. Livro da “produção capitalista considerada em sua totalidade”, o Livro III de O capital desperta o entusiasmo de Engels: Esse livro está destinado a revolucionar definitivamente toda a economia política e fará um alvoroço enorme”. Porque “toda a economia política burguesa será demolida” e chega se ao desfecho do enredo. Caminhando do abstrato ao concreto, do ciclo único de um capital imaginário ao movimento global de uma multiplicidade de capitais, do valor ao preço e ao lucro, do esqueleto do capital a seu sangue e sua carne, o retrato falado desse social killer tornou-se cada vez mais preciso. Ele aparece agora como um ser vivo, insaciável, perpetuamente sedento por novos lucros: 

fig-8

No Livro I, analisamos os diversos aspectos que apresenta o processo de produção capitalista em si, como atividade de produção imediata, e fizemos abstração de todos os efeitos secundários. Mas a vida do capital ultrapassa esse processo de produção imediata. No mundo real, o processo de circulação, que é o objeto do Livro II, vem completá-lo […]. No Livro III, trata-se de descobrir e descrever as formas concretas que se originam do movimento do capital como um todo. É sob essas formas concretas que os capitais enfrentam em seu movimento real […]. As formas do capital que vamos expor neste livro o aproximam progressivamente da forma com que ele se manifesta na sociedade, na superfície, pode-se dizer, na ação recíproca dos vários capitais na concorrência e na consciência ordinária dos próprios agentes de produção.[k] Como forma transfigurada do maisvalor, o lucro está no âmago do processo global de produção capitalista. O maisvalor é apenas o lucro em potencial. Precisa realizar-se para se orientar em seguida, seja para o consumo, seja para a acumulação (ou o investimento). Os valores, medidos em tempo de trabalho, transformam-se em preço de produção quando as mercadorias deixam o processo de produção. Esses preços simultaneamente são e não são a mesma coisa que o valor, sua negação e sua plenitude. Igualmente, diz Marx, o lucro tanto é o mais-valor sob outra forma quanto algo distinto do mais-valor:

O lucro, tal como apresentado aqui, é a mesma coisa que mais-valor, mas simplesmente em uma forma mistificada que nasce necessariamente do modo de produção capitalista […]. Como o preço da força de trabalho aparece em um dos polos em forma modificada de salário, o mais-valor aparece no polo oposto sob a forma modificada de lucro. [A forma em que] camuflam e apagam sua origem e o mistério de sua existência. […] Quanto mais seguimos o processo da autoexpansão do capital, mais misteriosas parecem suas relações e menos se revela o segredo de sua organização interna. […] O mais-valor transformado em lucro tornou-se irreconhecível.[l]

O encarregado da lavagem de dinheiro conclui sua missão com sucesso. É esse o jogo de trapaça que fazem os economistas clássicos para explicar os diferentes rendimentos (renda, lucro e salário), dissimulando a origem comum. Para eles, a cada fator de produção corresponde um rendimento naturalmente legítimo e equitativo: ao capital, o lucro; à terra, a renda fundiária; ao trabalho, o salário. “Eis a fórmula trinitária que engloba todos os segredos do processo social de produção.” Capital, terra, trabalho! Ora, o capital “são os meios de produção monopolizados por uma parte da sociedade”, “personificados no capital”. A terra, “massa de matéria rude e bruta”, só produz renda se fecundada por certa quantidade de trabalho. Quanto ao terceiro termo da trindade, o “trabalho”, ele é um “simples fantasma” se considerado abstratamente como “troca de matéria com a natureza”, e não concretamente, historicamente, como atividade de produção em uma relação social de (propriedade) particular.

Da mesma forma que o capital, o trabalho assalariado e a propriedade fundiária são formas sociais historicamente determinadas, uma pelo trabalho, a outra pelo monopólio do globo terrestre, ambas correspondentes ao capital e pertencentes à mesma estrutura econômica da sociedade.[m] 

Os agentes da produção têm uma imagem “falseada” da repartição da riqueza.

Para eles, não são apenas as diversas formas do valor que, sob a forma de renda, vão a diversos atores do processo social de produção; é o próprio valor que vem dessas fontes e serve de substância para essa renda. [n]

Na fórmula trinitária, o capital, a terra e o trabalho aparecem como “três fontes diferentes e autônomas” do interesse (em vez de lucro), da renda fundiária e do salário, seus respectivos e legítimos frutos. Na realidade os três provêm de uma única fonte, o trabalho, o único capaz de produzir mais do que gasta:

Para o capitalista, o capital é uma máquina Para o capitalista, o capital é uma máquina que suga perpetuamente o sobretrabalho; para o proprietário fundiário, a terra é um imã perene que atrai a fração do mais-valor sugada pelo capital; enfim, o trabalho é a condição e o meio renovados em permanência, que permitem obter, sob o nome de salário, uma fração do valor criado pelo trabalho, logo, uma parte do produto social medido por essa fração do valor, isto é, o necessário à vida.[o]

O rateio entre lucro, renda e salário é o resultado de uma distribuição leonina, em que o capital dita sua lei ao trabalho. É ainda o mais-valor que se cinde entre o lucro do empresário (capitalista industrial) e o interesse do banqueiro (capitalista financeiro). A lógica do sistema e a pluralidade dos capitais englobam a possibilidade de que a circulação possa se distanciar da produção e de que o capital bancário possa se autonomizar em relação ao capital industrial. Desse fato pode nascer a ilusão do dinheiro que faz dinheiro, do dinheiro que fecunda a si próprio, sem passar pelo circuito da produção e da circulação. Essa é a ilusão do pequeno poupador ou do acionista que se deleitam com a ideia de um mais-valor de 15% ao ano na Bolsa (diante de um crescimento real inferior a 3%) ou com a ideia de um interesse garantido de mais de 5%, sem se perguntar qual prodígio fará proliferar o dinheiro adormecido. Ele não enxerga o ciclo completo do capital (D-P-M-D’), só o circuito (D-D’).

fig-9

E se o circuito financeiro se entusiasmar, se o círculo D-D’ da circulação financeira girar mais depressa do que o círculo da produção global (D-P- M-D’) e se, além do mais, maravilhados com esse prodígio, acionistas e banqueiros anteciparem os ciclos futuros e acelerarem o movimento, então o sistema se tornará hidrocéfalo, a economia especulativa ou virtual se tornará mais importante do que a economia real. É a famosa bolha, que, como o sapo da fábula, acabará por explodir[p].

Nessas proezas do crédito, o fetichismo do dinheiro atinge seu cume. Surge como um “ser místico”, dotado de poder mágico e miraculoso: “todas as forças sociais produtivas parecem vir do capital e não do trabalho. Parecem jorrar de seu seio”[q]. Isso porque, na esfera da circulação, “as relações em que o valor foi originalmente produzido são totalmente postas nos bastidores”[r]. O processo real de produção, isto é, o conjunto do processo de produção imediata e do processo de circulação, “origina novas estruturas, em que o fio condutor das conexões e relações internas se perde cada vez mais, as relações de produção tornam-se autônomas umas em relação às outras, os elementos de valor ficam estagnados em formas independentes umas das outras”[s]. Desse modo, uma parte do lucro separa-se e parece advir não mais da exploração do trabalho assalariado, mas do trabalho do próprio capitalista. E o interesse do capital parece independer do trabalho assalariado do trabalhador e ter no capital sua origem autônoma. O capital não é um tratado ou manual de economia política, mas uma crítica da “economia política” como disciplina com pretensões científicas que aborda um tema – a economia –, ele próprio separado da totalidade complexa das relações sociais, e fetichizado. O movimento da crítica não tem limite. Se a lógica da obra atravessa falsas evidências para ir do abstrato ao concreto, introduzindo novos determinantes ao longo do percurso, ela tampouco pretende atingir a plenitude da realidade. Marx é claro:

Ao expor a reificação das relações de produção, e como se tornam autônomas em relação aos agentes de produção, não mostramos em detalhe como as interferências do mercado mundial, suas conjunturas, o movimento dos preços no mercado, os períodos de crédito, os ciclos industriais e comerciais, a alternância entre prosperidade e crise aparecem a esses agentes como leis naturais todo-poderosas, expressão de uma dominação fatal, que se manifestam como uma necessidade cega. Não o mostramos porque o movimento real da concorrência situa-se fora do nosso plano e só pretendemos estudar aqui a organização interna do modo capitalista de produção, em sua média ideal. [t]

Em outras palavras, os livros excluídos do projeto inicial, sobre o Estado e o mercado mundial, teriam introduzido novas determinações e levado a uma maior aproximação do “movimento real da concorrência e da complexidade da vida social”.

fig-10

[1] Friedrich Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (trad. B. A. Schumann, São Paulo, Boitempo, 2007), p. 136.

[b] Karl Marx, O capital, Livro I (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), p. 250-1. (N. T.)

[c] Ibidem, p. 270. (N. T.)

[d] Ibidem, p. 317. (N. T.)

[e] Ibidem, p. 246. (N. T.)

[f] Ibidem, p. 434-5. (N. T.)

[g] Idem, O capital, Livro II (trad. Reginaldo Sant’Anna, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980), cap. 4. (N. T.)

[h] Idem. (N. T.)

[i] Ibidem, cap. 8. (N. T.)

[j] Autores franceses de romances policiais. (N. T.)

[k] Karl Marx, O capital, Livro III (São Paulo,Boitempo, no prelo). Aqui em tradução livre.(N. T.)

[l] Idem. (N. T.)

[m] Idem. (N. T.)

[n] Idem. (N. T.)

[o] Idem. (N. T.)

[p] * Alusão à fábula “O sapo que queria ser boi”, de La Fontaine. (N. T.)

[q] Karl Marx, O capital, Livro III, cit. (N. T.)

[r] Idem. (N. T.)

[s] Idem. (N. T.)

[t] Idem. (N. T.)

This entry was posted in Artigos, Biblioteca, Teoria. Bookmark the permalink.