Batman
Eu começaria nos apresentando para pelo menos entender (dentro do que é possível através de rótulos) qual a principal linha de pensamento de cada um. Eu sou libertário gradualista, sabendo que os dois rótulos estão em contradição segundo pensamento de muita gente. Digo isso porque, acho que a transição rápida da sociedade atual para uma sociedade livre fará as pessoas a clamar pela volta da opressão estatal, sendo uma tentativa infrutífera. Também tenho a crença que os fins não justificam os meios, portanto, não sou conivente com massacres e/ou julgamentos baseado em cor/raça, identificação de gênero ou classe social. Até onde sei, o Palhaço é um admirador de Kropotkin. Vocês são de que espécie? Ancap, mutualistas, ancom, petistas?
Palhaço
cut the bullshit
O Batman nos critica dizendo que baseamos nossas ideias em boas intenções apenas, enquanto as dele favorecem de algo que funcione. Mas funciona? Capitalismo funciona? Funciona pra quem? Se funciona, por que existe tanta produção ao mesmo tempo de tanta gente passando fome, frio? Se funciona, por que existem tantos com tão pouco e tão poucos com tanto?
Se os pro-capitalistas quisessem defender algo por seus méritos puramente, não defenderiam o capitalismo.
E não vamos cair aqui na armadilha do “se”: se o estado não intervisse, se o estado não existisse e etc. Durante toda história uma coisa esteve de mãos dadas com a outra, afinal se o estado existe, é pra servir as necessidades do capitalismo. O único poder real, é o poder do capital.
Além disso, até nos seus sonhos mais molhados, defensores do capitalismo falam de elites naturais, como se existisse uma condição social natural, eterna, para a humanidade. Tratam o mercado como uma força da natureza, à qual a resistência é inútil e até nociva, da mesma forma que os sacerdotes justificavam o poder do príncipe como sendo natural, divino.
Duas-Caras
não vejo como possa afirmar que “não sou conivente com…julgamentos baseado em … classe social” e ao mesmo tempo sustentar a propriedade privada, visto que esta implica por si mesma no julgamento e separação de pessoas em classes sociais, de maneira artificial e imposta, entre aqueles que se definem no “direito” de decidir o modo como as demais pessoas podem alterar seu meio.Dizer, por exemplo, que uma fábrica, loja ou fazenda é “minha” e que portanto posso decidir os usos dela, assim como a interação que os demais estabelecem com ela, não é distinto da exigência dos reis de controlar as ações de seus “súditos”.De fato, a ideia básica de que cada indivíduo é autônomo, livre, requer que ele a) possua ele próprio os meios que asseguram sua subsistência (liberdade negativa), i.e não sou livre se a opção de ter alimento é dependente da vontade arbitrária de outra pessoa, como um pássaro numa gaiola e, também, b) devo dispor ao meu redor de recursos que possa modificar de acordo com meus valores e aspirações (liberdade positiva).
Enquanto numa sociedade baseada no comunismo libertário seria estabelecido um consenso prévio entre as partes para verificar como podem conjuntamente atingir suas aspirações,o modo como o capitalismo “resolve”, pela barbárie institucionalizada, é conferindo, arbitrariamente, o poder de alguns de tomar decisões (capitalistas) forçando os demais a se sujeitarem a suas regras.Como o Palhaço observou antes, o capitalismo requer uma forma de Estado e hierarquia (por exemplo, o uso direto da forma, como em “milícias” privadas) no processo de “julgar” os poderes que uma pessoa deve ter ou não sobre as demais.Essa “mediação” artificial da atividade humana com seu meio pode ser tanto garantida pelo monopólio de alguém sobre o que é produzido (mercadorias), como o monopólio sobre a atividade humana futura (dinheiro, “estocando-na”).Podemos dizer que esses humanos, que perdem a propriedade de transformarem a si mesmos e seu meio de forma consciente, e se “moldam” de acordo com ordens impostas, foram transformados em “ferramentas”.Poderíamos dizer que se transformam em algo análoga a peças vivas de xadrez: cada uma com uma “função” específica, seu “trabalho”, que não é criado espontaneamente, mas surge de regras prévias impostas, com os dois “jogadores” ocupando o papel dos “capitalistas”, cujo fim é acumular capital, ou seja, a posse de ferramentas que expandem o controle do seu meio, num processo automático.Logo, algo que não possui sequer minimamente relação com “atender necessidades humanas” como um FIM, mas exceto como um meio para a manutenção das RELAÇÕES capitalistas.
Na linguagem econômica: o “investidor” investe seu capital visando obter “retornos” de investimento.Em outras palavras, a garantia de que o dinheiro continuará “comprando atividade humana alienada” e que o uso dos meios de produção continuarão sendo “separados do controle consciente dos trabalhadores envolvidos”.Para criar um modelo mental, basta imaginar o que ocorreria com a economia, ou seja, o “valor” do dinheiro e da propriedade privada, se hipoteticamente a escassez fosse encerrada, i.e, todas necessidades humanas fossem satisfeitas sem a necessidade de trocas mercantis: o dinheiro deixaria de “comprar” a atividade humana, e terras e fábricas deixariam de “render dividendos”, pois este era pura e simplesmente a atividade humana alienada, cuja parte era incorporada pelos seus “donos” devido a aceitação prévia arbitrária de que os trabalhadores “precisam” que aquela propriedade tenham um dono para transformá-la.Algo, é claro, garantida por meios violentos.O trabalhador “precisa” da participação do capitalista como “dono” da fábrica, do mesmo modo como um pescador poderia “necessitar” da autorização de mafiosos para pescar um rio.É pela CRIAÇÃO ARTIFICIAL de escassez, ou seja, propriedade privada que não pode ser transformada diretamente, pois quando isso é tentado se é preso ou morto, que o capitalismo ganha a aparência de algo “necessário” no processo.Podemos ver versões antigas dessa crença na forma dos amuletos, que o caçador atribuía o poder de “efetuar” a caça, ou nas religiões, onde tudo, seja o que existe ou existirá, se apresenta como obra prévia de um ser divino, e portanto estamos em débito perpétuo a este e devemos nos submeter a suas Ordens.Em outras palavras, o capitalismo é uma religião.
Para mais detalhes desse argumento leia os textos de Fredy Perlman, “A Reprodução da Vida Cotidiana” e “O Fetichismo das Mercadorias“.
Sobre se uma sociedade anarquista (especificamente, baseado no comunismo libertário), “funcionaria”, considero isso tão especulativo quanto tentar adivinhar o conteúdo de uma caixa fechada.O que posso afirmar é que:a) os poderes atualmente conferidos aos capitalistas em detrimento dos trabalhadores são arbitrários e baseados numa distorção do entendimento da realidade, como explicado anteriormente, de modo que, consequentemente, superá-lo é o equivalente a superar dogmas, crenças não verificadas impostas pela autoridade, assim como acreditar que a autoridade de um rei não é “sagrada”.
Como ocorre com a aquisição de qualquer conhecimento, não vejo motivo, a priori, para que ele “melhore” a vida de alguém por si só.De fato, por exemplo, o conhecimento do fogo pode servir para aquecer o homem e alimentá-lo, ou para provocar imensos incêndios e dizimar uma população.Como qualquer ideia, ela é potencialmente uma FERRAMENTA para modificar o mundo.E, acredito que concorde comigo enquanto libertário, esse conhecimento deve ser livre para ser partilhado entre pessoas para que, com ele, tomem decisões conscientes de como transformar seu meio.
Logo, vejo todo projeto de “anarquismo” não em relação em elaborar um “projeto fantástico para melhorar a vida das pessoas” ou de assegurar “iphones para todos” ou de “trazer o paraíso na terra” , já que seria tolice imaginar que possua poderes especiais para determinar o que é bom para as pessoas, responsabilidade que deve caber a elas próprias, mas de transmitindo essas ideias abrir para elas novas possibilidades de alterar elas próprias seu meio, de acordo com valores e inclinações que nasçam dentro delas mesmas.
Contudo, acredito ser possível mostrar, empiricamente, que a crença nas categorias fundamentais do capitalismo, como atividade alienada, divisão do trabalho e propriedade privada, são os maiores empecilhos para o ser humano usar seu potencial real de forma a criar um ambiente melhor, pelo mesmo motivo que me parece que o ser humano conseguiria encontrar mais propósito e liberdade em sua vida pensando e agindo por conta própria do que recebendo ordens e sendo ameaçado para que continue construindo pirâmides.
Simplesmente, são as possibilidades de sermos livres, autônomos (que vejo como um fim em si mesmo), que estão sendo arruinadas.É o modo de interagirmos com o mundo que deixa de ser livre, autodeterminado, para adquirir uma forma específica qualquer, e que passa a “decidir” por nós destinos que nunca escolhemos ou quisemos.Toda retórica inflamada sobre as “liberdades” no capitalismo desmorona se fizermos uma simples pergunta: porque ESTA atividade em particular e não outra?O que DETERMINA o que fazemos diariamente?Em que nível o mundo se apresenta como uma decisão nossa, como indivíduos?Podemos ver a preocupação extrema existente, no processo de tornar o capitalismo “viável”, de colocar perpetuamente os seres humanos sobre contínua vigília, restringindo ações que tomem de forma espontânea e impondo aquelas que executam sobre ordens em função de um “salário”.Câmeras, muros, prisões, “educação”, os aparatos estão por todo lado, tudo é feito para transformar seres humanos em objetos, em obedientes”fatores de produção”. De fato o capitalismo NASCE num processo onde uma multidão de camponeses são deixados sem meios de subsistência, os forçando a alienarem sua atividade (trabalharem, e expandirem o capitalismo) de forma a se manterem vivos.
Comparo, nesse sentido, minha crítica do capitalismo a que Nietszche fazia ao cristianismo, como uma forma que “deformava o ser humano”.
Poison Ivy
Pelo menos ele admite que as intenções dos capitalistas não são as melhores. Mas eu perguntaria pra ele qual são as intenções que ele diz serem lindas, e porque elas não funcionariam. Me interessa sim saber se o que defendo funciona. Funciona para quem, com que objetivo? Funcionar é realmente relativo.
Charada
o sistema capitalista, conduz os indivíduos como um jogo conduz as peças de xadrez, as pessoas pensam que estão agindo por si mesmas, mas estão mesmo é sendo movidas pelas normas e axiomas intrinsecamente vinculados ao funcionamento de tal arranjo sistêmico.
Poison Ivy
Charada, concordo, e penso que isso não é exclusivo do sistema capitalista. Qualquer sistema inteligente, e isso quer dizer qualquer sistema tecnológico, acaba controlando seu criador. O sistema capitalista é uma consequência lógica do pensamento mecanicista da Grécia antiga. Qualquer modo de vida pensado para que seres humanos vivam em ambientes artificiais, que nos afaste da comunidade dos seres vivos, que nos distingue hierarquicamente deles, diminuirá de um modo ou de outro nossa autonomia, até que sejamos dispensáveis.
Charada
Poison Ivy pois nós morremos e o sistema continua a operar historicamente.
Poison Ivy
Exato.
Para Platão tudo que vemos é dispensável porque a única coisa real é o mundo das ideias. A história da civilização é a história da concretização desse ideal platônico. Mais e mais, o material perde valor, o sistema, abstrato e computacional, é que realmente manda.
Bane
Mas desde quando o processo de sociometabolismo do capital foi declarado algo bom ou superior? “Tecnologicamente superior”? Pois diferente do que foi dito aqui, o processo de auto-replicancia do capital sempre foi encarado como uma problemática, desde seus idealizadores mais antigos como Smith e Locke, o controle do capital por suas personificações sempre foi o cerne das inferências teóricas para a melhoria do mesmo. Portanto se o processo de avanço do capital significa algo, superior e funcional não pode ser.
Ra’s Al Ghul
Duas-Caras você “lacrou” (gíria ‘funkenesa’) sambou na cara dos engomadinhos, seu comentário certamente seria excluído das paginas liberalóides. O atual discurso liberalista e critica o estado da mesma forma que o coronel critica o jagunço, querem esconder que o poder dos capitalistas depende do estado tal como o poder dos coronéis dependo dos jagunços. Afinal o ”lucro” é produto do trabalho alienado e a alienação da atividade alheia só é possível com a institucionalização da propriedade privada, e ela para existir precisa de uma força coercitiva e a força coercitiva “legal” que a mantem é justamente o estado, e o estado não surge ‘espontaneamente’ ele começa como uma pequena gangue que elimina as rivais e se auto-proclama “legitimo”, sem a ‘legitimação’ de uma gangue como estado não há legitimação da propriedade.
Batman
Bom, pessoal, obrigado pelas contribuições, e vou tentar fazer o melhor para expor o meu ponto de vista, que diverge frontalmente de algumas idéias aqui expostas. Já peço desculpas antecipadamente se em algum momento soar agressivo, pois essa é uma tendência minha em debates escritos, e, por mais que tente me policiar, por vezes me passo.
Primeiro há realmente uma questão de linguagem e interpretação do significado das palavras que, infelizmente, é chato para cacete definir, mas é preciso para que eu possa entender o que vocês falam… Por exemplo, o que significa “capitalismo”? Se é a submissão do poder político e social ao capital, tenho um entendimento. Se é a simples aceitação da propriedade privada, meu entendimento é bem diferente… e de vez em quando me parece que capitalismo é usado em ambas as situações, dependendo do contexto, e por isso, muito difícil de contra-argumentar.
Mas vou tentar fazer meu melhor, tentando contribuir a um diálogo real, e não a dois monólogos surdos como normalmente vejo na Internet.
O primeiro ponto que eu quero deixar claro na defesa do meme é que eu concordo que ambos os lados possam operar nas melhores das intenções, mas chegar em conclusões contrárias. Como normalmente não há erros lógicos em argumentos já bastante discutidos, Ayn Rand nos aconselha a pensarmos no óbvio: chequemos nossas premissas, ali deve morar as divergências.
Nesse texto, vou usar capitalismo com o significado apenas de qualquer sistema que exista propriedade privada. O capital comprando direitos políticos e sociais vou chamar de corporativismo, para diferenciar.
A primeira premissa que entendo é que o capitalismo não quer ser um sistema perfeito. Eu, como defensor do capitalismo (no sentido estrito acima), entendo que a violência e competição pelos recursos escassos sempre vai existir. E mais, essa violência irá existir mesmo se os recursos não fossem escassos. Uso como exemplo o fato das pessoas possuírem complexo de Édipo : o próprio problema de querer matar o pai para casar com a mãe. . Amor de mãe é, até onde sei, um dos conceitos menos escassos em teoria, justamente porque ele seria não -competitivo, ou seja, a mãe amar um marido não exclui absolutamente nada do amor aos filhos. Não sou psicólogo, mas sei que nao podemos negar o fato de que o complexo de Édipo existe, e se um recurso naturalmente não-escasso causa competição entre pais e filhos, imaginem a discussão entre pares competindo por recursos realmente escassos .
Partindo do reconhecimento que disputas e violência é uma consequência da natureza humana, o capitalismo é uma das maneiras de se tentar reduzir as injustiças, ainda que saibamos que elas serão inevitáveis.
Isso posto, temos uma segunda premissa que não entendi como vocês tratam: acredito que ninguém aqui vai discordar que o trigo não se planta sozinho e o pão não se faz do ar. E que seria uma grande injustiça se eu trabalhasse para fazê-lo e não pudesse disfrutar do seu sabor. A obrigação do trabalho sem este retorno é uma condição análoga ao escravagismo, onde o escravo é obrigado a produzir e não tem o direito de consumir o fruto de seu próprio trabalho.
Mas, já prevendo a argumentação, sr ao produtor fosse dado uma parte de acordo com sua necessidade… Então do ponto de vista prático, a posteriori, sabemos que essa sociedade não se sustentaria. A grande fome chinesa é um exemplo histórico onde muitos morreram de fome justamente pelos incentivos errados da produção. Esse é um exemplo social que já foi replicado diversas vezes, normalmente com o mesmo resultado trágico.
Além disso, Mises já provou aprioristicamente (posso descrever a prova aqui, mas toma tempo que não tenho) que o cálculo econômico é impossibilitado sem um sistema de preços. A simples decisão de se produzir um pão ou um bolo de chocolate fica comprometida se não conhecemos os custos de cada um dos ingredientes, e as alocações seriam não -ótimas.
De forma geral, a decisão seria ainda pior se fosse “devo passar a tarde criando uma música ou fazendo um bolo?”. Sem sistema de preços, como se decide qual tarefa agrega mais bem-estar? O consenso prévio é, com todo o respeito, inviável, para decidir como um jovem de 12 anos deve passar a tarde, imagina criar uma sociedade inteira que decide se eu posso ou não jogar video-game com base em votação da sociedade.
O capitalismo como coloco não garante a justiça, depende da boa vontade e caridade de pessoas. Mas é viável para manter as violências nos menores patamares possíveis, ainda que com base em competição dos agentes econômicos. O corporativismo realmente distorce as coisas, o Estado prejudica e não deixa sabermos como seria uma sociedade livre de agressões estatais. Mas se a regra é não cair na lógica do “se” (se o estado não interviesse), não podemos pensar na sociedade “se as pessoas fossem boas”, “se as pessoas quisessem cooperar”.
Sobre o “sociometabolismo do capital”… Não faço idéia do que seja isso.
Sobre a asserção que “qualquer sistema complexo domina seu criador”…. qual o racional para isso? Existe alguma evidência de que seja um fato?
Palhaço
Batman, obrigado pela resposta
Pra começar pelas definições, gostaria de esclarecer que antes de tudo, o capitalismo é uma forma de organização social histórica, ou seja, é determinada por circunstancias materiais específicas históricamente e se desenvolve nesse contexto. Não é de forma alguma um amarrado de dois ou três conceitos, de forma que afirmar que apenas a propriedade privada ou apenas o trabalho assalariado sejam quesitos suficientes para categorizar algo como “capitalista” nos induz ao erro de analisar ideias separadas da realidade, separadas da prática.
Tendo dito isso, passo a responder o restante da sua excelente argumentação
Você menciona a natureza humana, afirmando que ela é de violencia e que o capitalismo seria uma forma de “reduzir” essa violencia. Veja bem, esse é um argumento muito parecido com a máxima Hobbesiana “O homem é o lobo do homem”, usada para justificar nesse caso a existencia de um estado. Acredito ser possível, a partir da sua afirmação, crer que nesse caso o estado é algo inevitável e inclusive desejável, afinal se a natureza humana é violenta e necessita ser controlada, se faz necessário uma força externa com poderes absolutos sobre todos os seres humanos e certamente que o mercado não é suficiente para essa tarefa, já que tem por base a segurança da propriedade privada e dos contratos (por exemplo, a argumentação clássica da Somália).
Me permita divergir aqui, não acredito em uma natureza humana. De um ponto de vista antropológico, existiram diversas formas de organização social na história da humanidade, cada uma respondendo as determinações específicas do seu próprio meio material. E elas não existirem hoje não significa que as formas sociais dominantes são “melhores” de forma alguma, já que “melhor” é absurdamente relativo e temos que levar em conta as particularidades históricas. Por isso, parafraseio o Coringa em “The Dark Knight” – As pessoas são tão boas quanto a situação as permite.
Dessa forma, a organização social e o que você chama de “natureza humana”, são coisas que devem ser vistas sob a luz da compreensão contextualizada das condições materiais específicas que as criaram e que as mantêm. É por isso que dizemos que é impossível compreender o capitalismo sem compreendermos o estado como uma arma naquilo que chamam-mos guerra de classes. Ou seja, o estado como ferramenta para manter “os de cima, encima e os de baixo, embaixo”.
Sobre o problema do “consenso prévio”, calculo econômico e etc., vou reduzí-los a um simples de motivação. O que motiva as pessoas a agirem da forma que agem. O que as motiva a produzir pão, por exemplo, se não a fome. Ora somos seres dotados de empatia. Se sentimos fome nos importamos com a fome dos nossos próximos, nos comovemos ao ver alguém em situação que não gostaríamos de estar.
Karl Polanyi, em sua obra “A grande transformação” parte de uma série de estudos de sociedades pré-capitalistas e constata que, na época, a fome era um fenomeno social, ou seja, a escassez era um fato para todos através de uma má colheita, um desastre natural e etc. Com o surgimento do capitalismo, ela passa a ser um fenomeno social, ou seja, já somos capazes tecnicamente de produzir o suficiente para saciar a todos, no entanto nos impomos condições sociais específicas que simulam a escassez natural. Na sociedade capitalista, é o homem quem cria a fome.
Sobre as questões específicas, deixo para que os próprios autores respondam.
Para encerrar, deixo a citação de Marx escolhida por Fredy Perlman para servir de abertura ao texto “A Reprodução da vida Cotidiana“:
“O objetivo dessa comunidade e desses indivíduos é a reprodução dos específicos meios de produção e dos indivíduos com suas características particulares, com as relações e estruturas sociais que os determinam e que eles sustentam ativamente. Todos eles te dizem que em princípio, ou seja, consideradas como idéias abstratas, competição, monopólio, etc., são as únicas bases de vida, mas na prática eles deixam muito a desejar. Todos eles querem a competição sem os efeitos letais da competição. Todos eles querem o impossível: as condições burguesas de existência sem as necessárias conseqüências destas condições. Nenhum deles compreende que a forma burguesa de produção é histórica e transitória, exatamente como a forma feudal o foi. Esse erro decorre do fato de que o homem burguês é para eles a única base possível de cada sociedade; eles não são capazes de imaginar uma sociedade na qual os homens tenham deixado de ser burgueses.”
Karl Marx
Duas-Caras
Batman, a meu ver o significado do termo “bem estar” no seu texto tem um significado claramente orwelliano, já que se refere a uma outra coisa que não “bem estar” no sentido coloquial.Seria como eu imprimir papeizinhos escritos “felicidade”, distribuir as pessoas e anunciar que eu estou “distribuindo ‘felicidade'”.
Para vermos a limitação de seu ponto de vista quanto a ideia de que a propriedade privada e o sistema de preços, combinados, “agregam bem estar” podemos considerar a situação de uma ilha onde quase todas riquezas, entre elas ricas fontes de água potável, são possuídas por apenas dois indivíduos enquanto os demais vivem de forma miserável em terras pouco produtivas, que sofrem de profunda seca.Como, nesse exemplo, a população pobre não seria apta para vender sua mão de obra, e nem os bens que produz nas suas terras, significa que não poderia comprar nem oferecer “um preço” pelos bens de que precisam.Logo, os recursos, como a água de que precisam, não seriam “alocados” em função daqueles que PRECISAM dela (maximizando seu “bem estar” no sentido COLOQUIAL da palavra), mas para maximizar o “bem estar” de uma relação com o meio artificial e imposta.
Como exemplo disso, nessa ilha fictícia, um indivíduo para sobreviver, poderia perfeitamente deixar de se dedicar a plantar e desenvolver técnicas que aumentam a produtividade, permitindo acabar com o problema da fome da população, para no lugar “alocar seus recursos eficientemente” (no caso, obtendo um salário com isso) trabalhando como bobo da corte para os donos da ilha.
De fato, os recursos não são alocados no capitalismo de forma a produzir resultados que atendam a necessidades dos indivíduos, mas àqueles que levem a reprodução das relações sociais pré-estabelecidas.Como expliquei anteriormente, o capital é “investido” em recursos que possam gerar mais capital.Um exemplo claro disso diz a respeito nos incentivos das indústrias farmacêuticas, que vão “alocar recursos” de forma a combater a calvície de pessoas ricas, mas não para desenvolver vacinas de epidemias que afetam milhões.
Por outro lado, por detrás do processo de compra e venda, e de se definir um preço, há sempre um julgamento qualitativo por aqueles responsáveis por efetuar a compra.Ou seja, eu não “descubro” que um refrigerante “é bom” por causa do PREÇO dele, mas pelas propriedades que exibe e o julgamento que efetuo a esse respeito.Logo, do mesmo como consigo avaliar uma qualidade da mercadoria diretamente, poderia julgar qualitativamente o processo em que foi produzida, num conjunto, através da colaboração de outras pessoas para se chegar a uma conclusão.Longe, assim, do fim do sistema de preços “atrapalhar a alocação” ela de fato seria excelente, já que me levaria enquanto consumidor de algo a acompanhar o processo com que é realizado.Ou poderia delegar isso à opinião de outras pessoas, a quem eu consultaria.Por exemplo, pelo “sistema de preços” uma camiseta identica a outra e por metade do preço da segunda, é “melhor” que esta última, pouco importanto se foi feita atirando gasolina no oceano ou usando mão de obra superexplorada ou devastando os recursos do ambiente num ritmo muito mais acelerado (uma vez que o foguete suba, não importa onde ele cai, esse não é meu departamento, diz Werner van Braun).
Quando nos focamos simplesmente nos inputs e outputs exigidos no sistema de preços, estamos puramente destruindo essas informações fundamentais e resumindo o ato de empresas a um simples algoritmo que recebe uma porção de capital e o transforma numa quantidade maior de capital, na frente de uma tela do computador, chamando esse processo de “maximização da eficiência”, processo que pode ser comparado, por analogia, a atividade de genes de se multiplicarem e propagarem em seu meio.Trata-se de um processo perigoso e insano, cujas consequências vemos na forma de epidemias em massa de fome, o aquecimento global, assim como as guerras motivadas com fins econômicos.Tudo isso em nome do “Bem Estar”.
O adolescente que deixa de escolher de maneira consciente entre “trabalhar ou ouvir música” passará simplesmente a abdicar do controle de sua vida, e do destino de si mesmo e dos demais, para realizar um processo automático de gerar valor,na forma de mercadorias e atividades cujas interações com o mundo ele não é chamado para participar ou entender, e cuja propriedade deve ser simplesmente ser “vendável.Ora, o que é que se demanda e é produzido para se vender?É uma decisão daqueles que dispõem da capacidade de ditar ordens, o que na sociedade capitalista é realizada por burocratas dentro de uma empresa, que desejam que esta se mantenha “competitiva” no mercado.A assim chamada, a la Humpty Dumpty, “alocação eficiente” da sua atividade não é nada mais do que aquela que reproduz e amplica o poder conferido de maneira artificial a aribtrário à classe capitalista.Terei que, repetir, mais uma vez, o óbvio, que é o fato de que tais instituições correspondem a poderes inerentes aos seres humanso que são separados e sequestrados de seu controle e que passam a pertencer a tais organizações e serem usadas para perpetuá-las.Logo, o critério de “eficiência” é pura e simplesmente a maneira como a atividade humana é instrumentalizada para tal fim.
De fato, parece pouco convincente, para não dizer bizarro, falar em “alocação eficiente” e “agregação de bem estar” atividades que envolvem, entre outras coisas, confeccionar bombas para “abrir novos mercados” ou desenvolver tecnologias que tornam o próprio indivíduo obsoleto e desnecessário no processo de produção.Para citar mais um exemplo da “eficiência” da alocação de recursos por um sistema de preços, alguém que tivesse o poder de imprimir uma moeda para si próprio, a falsificando, “sinalizaria”, por exemplo, ao mercado, a “enorme importância” de ele produzir o que queira, por exemplo, pirâmides.Estará comunicando, ao fantástico Mercado, que a necessidade humana mais fundamental é aquela ditada pelos caprichos daquele que dispõe de uma pilha de papéis no bolso e daquele que ao se dizer “dono” da propriedade privada se reserva no direito de decidir a maneira como a atividade de diferentes seres humanos com seu meio deve ser cordenada.De novo, deveria ser aparente para qualquer um, que não há a mínima relação no capitalismo a colocar a atividade humana de forma a atender NECESSIDADES humanas, mas simplesmente em recursos que permitam a divisão entre aqueles que tem capital e aqueles que precisam alienar sua atividade por um salário se perpetuar.
Sobre minha ideia de acordo prévio, acredito que foi mal interpretada: ela não se refere a colocar a humanidade inteira num telefone para debater se eu devo tomar café com leite ou sem leite, mas criar meios em que caso minha ação interfira na ação de outra pessoa, se estabeleça um consenso, e apenas entre os indivíduos envolvidos, e não TODOS.
Poison Ivy
E os seres não humanos envolvidos, entram no acordo ou não?
Ra’s Al Ghul
Batman os argumentos neo-liberais contra o bolchevismo de fato são FANTÁSTICOS. O problema e quando vocês demostram os claros defeitos do bolchevismo e acham que estão ‘refutando o comunismo’, comunismo é uma coisa, bolchevismo é outra. Quanto ao “problema do calculo econômico” isso é uma falácia, ele não existe, pois para que tal problema existe é necessária aceitar a existência de um sistema monetário ou seja a existência do dinheiro, do credito.
Batman
Eu acredito que não fui suficientemente claro ao descrever o porque a alocação de recursos é impossível sem um sistemas de preços. Vou tentar de outras formas.
Imaginem a seguinte situação… uma pessoa chega em uma feira, voluntária e gratuita, onde estão sendo distribuídos os alimentos para alimentar um vilarejo qualquer. Uma pessoa precisa decidir, então, se quer tomar um copo de água da torneira ou se deve beber um suco de laranja. Ele sabe que na vila dele, não existem laranjais, e para que o suco que ele tem a possibilidade de tomar, foi preciso trazer laranjas até o local que ele está, estocá-las porque não está na estação da colheita, cortá-la, expremê-la, enquanto ele também sabe que a água foi simplesmente tirada do rio que corre ao lado, limpa.
Ele prefere suco de laranja à água. O gosto, o valor nutricional, até o cheiro. Ele prefere tomar suco de laranja. Agora nesta situação, ele deve decidir se o seu “bem estar” -> tomar o suco de laranjas é maior ou menor que o esforço de tantos homens para trazer o suco até ele, como ele faz? É obviamente uma questão subjetiva, e ele ainda terá que balancear de acordo com sua própria visão de contribuição da sociedade… ter passado o dia compondo uma música é um trabalho suficiente para justificar aquele pequeno prazer que outros lhe entregaram? É impossível de dizer! Mesmo que ele queira, ele não tem nenhuma condição de responder isso de forma objetiva.
Com um sistema de preços, essa decisão pode ser feita. A água custa 1 e o suco 20. Você, como agente, agora consegue decidir se vale a pena tomar a água ou o suco, porque você tem uma proxy, ou seja, uma aproximação do valor do trabalho consumido para trazer aquele bem até você. É essa a decisão que dizemos que é inviável sem um sistema de preços.
Não estou nem perto de completar meu raciocínio, mas o preço não é o único fator de decisão. Você vai escolher, de forma mais ou menos informada, se você quer consumir um suco cuja origem você desconhece ou um suco que tenha alguma garantia que não usou mão-de-obra escrava. No fim, a escolha continua ser pessoal e acreditar que o preço é o critério de decisão de compra é ignorar toda a indústria de comidas orgânicas, para ficar em um exemplo comum. As pessoas pagam mais quando sabem da origem de um produto!
Depois eu volto para comentar outros pontos. Só vou lembrá-los que construir uma bomba para abrir mercado é obviamente uma violação de direitos, uma agressão, e não conheço libertário, ancap ou qualquer outra filosofia que suporte isso.
Bane
Batman, eu pretendo esperar pelo final da sua argumentação antes de tecer minha crítica, mas seu último comentário não possuí nenhum argumento, pelo contrário, fornece as provas cabais que afirmam a superioridade teórico prático do AnCom, como a inviabilidade do “an”cap, então… Como vc disse que nao esta nem perto do completar seu raciocínio, gostaria que explicasse em termos diretos o motivo da impossível prática de um sistema de produção sem cálculo econômico.
Ra’s Al Ghul
Batman acho que isso tem haver com a teoria do valor. Eu sinceramente perco a paciência sempre que tento entender esse suposto problema. Porque tal ‘problema’ exige que eu aceite as definições do conceito de ‘capital’ e ‘valor’ ditados pelos economistas burgueses, ou seja o tal ‘problema’ só existirá se eu aceitar os pressupostos, por exemplo, vocês fala na ‘necessidade’ de fazem um tal “calculo” econômico, o problema é que esse ‘calculo’ exige racionalidade, porem não existe racionalidade nas decisões humanas, não somos previsíveis e unica lei máxima da economia é a necessidade, mas a necessidade é algo muito complexo, a todo estantes as pessoas perdem tempo e comprometimento fazendo coisas que mais tarde se arrependem. A necessidade que leva as pessoas a tomarem decisões não pode ser ‘calculadas’ matematicamente em seus detalhes de forma racional.
Calculo Economico na Comunidade
Batman
Ra’s Al Ghul , vou ler o artigo inteiro antes de continuar a resposta, mas passando os olhos (introdução, conclusão e uma olhadela no meio) o artigo parece concordar com tudo o que eu digo, sem a principio contradizer nada do exposto por mim.
Bane, o raciocínio exigirá algum tempo para colocar em palavras aqui, mas você consegue entender que é muito difícil um ser humano dotado de racionalidade optar por uma solução boa se não tem informação suficiente para a tomada de decisão?
Duas-Caras
Batman, esse “preço” não reflete algo que você parece ver como o “voto democrático das massas através da Oferta e Demanda”, mas simplesmente os caprichos daqueles que dispõem de capital, que, como afirmei antes, nada mais é que uma instituição artificial imposta pela violência.Poderia ocorrer, perfeitamente, de quase todos numa população abominarem a destruição de um bosque repleto de árvores e animais, e, mesmo assim, ele ser destruído, porque seu “dono” (aquele que impôs o controle sobre ele com base na força estatal) assim exige.Simplesmente o “voto” deles não contam.Ao mesmo tempo, esse “poder do capital” de “votar” naquilo que é desejável, ou seja, oferecer uma “liberdade positiva” sobre o meio, exige seu reverso: para cada pessoa que adquire a liberdade positiva de moldar seu meio de acordo com seu bel prazer sacando o dinheiro do bolso (sim, igual alguém que “saca” uma arma, mas numa forma menos transparente), outra perda a liberdade negativa de transformar seu meio de forma espontânea.Ou seja, já implica uma relação social onde as pessoas “trocam” o controle sobre a própria atividade por um “salário”.Ao falar da “eficácia do sistema de preços”, corremos o risco de cometer a falácia de generalizar tal modelo como “necessário” em TODAS formas de sociedade apenas porque ele é necessário numa sociedade ESPECÍFICA.
De fato, esse exemplo de “escolha racional” chega a ser até moralmente repugnante quando sabemos perfeitamente que ele autoriza a, digamos, o dono de uma multinacional, a “escolher” o suco de laranja, levando a uma transformação radical de todo o mundo ao redor não em função daquilo que se mostra mais desejável aos diferentes indivíduos envolvidos, mas as “formas/funções” que são forçados a se modelar como uma forma de sobreviverem, já que o controle de sua atividade social não está embutida neles mesmos, a ser exercida livremente, mas é justamente aquilo que está “retido” e “armazenado” (o valor) no poder misterioso que o dinheiro tem de “comprar” mão de obra.Ele não é nada mais do que um “título” conferindo a seu dono o controle sobre a atividade alheia.De fato, se os donos de uma senzala”libertassem” os escravos, mas mantivessem o controle do ambiente a seu redor como algo que monopolizam, se o recurso que os ex-escravos precisam para continuarem vivos são retidos em suas mãos, o novo “ser livre” (o escravo por contrato) e “empreendedor” terá que se sujeitar e se curvar ao seu novo “empregador” com a mesma submissão e boa vontade que seu velho antecessor.
E esse processo onde a liberdade humana de transformar o meio é tornada mercadoria cria um processo automático, efetuada diariamente por trabalhadores e capitalistas, em que sua própria atividade criativa alienada, poder de transformar seu meio, é aplicado em meios que permitam gerar “mais capital”, ou seja, reproduzir e expandir a atividade criativa alienada, o que está bem longe de ser a “forma ótima” de atender as “necessidades humanas”.
Batman
Se eu não completei meu pensamento do por que o cálculo econômico é a única forma de viabilizar a sociedade moderna, vou tentar exemplificar através de uma indústria que eu tenho trabalhado há cinco anos, que começo a conhecer um pouco, a agroindústria. E eu vou tentar explicar as razões pelas quais existem alimentos suficientes para alimentar o mundo todo, e porque não existiriam os alimentos caso não existisse um sistema de preços.
Eu sou especialista em gestão de projetos, e trabalho apenas com o desenvolvimento de novos tratores. Você deve saber qual a razão para desenvolver novos tratores, mas estou falando de tratores muitas vezes redesenhados do zero, usando tecnologias cada vez mais modernas e complexas. Muitos vão dizer que os tratores que existem hoje já são bons, mas nós estamos sempre colocando um trabalho gigantesco no seu aperfeiçoamento. Seja reduzindo o consumo de Diesel, tornando sua manutenção mais fácil, agregando itens como pilotos automáticos para a agricultura de precisão, ou mesmo melhorando o ar-condicionado da cabine do operador.
Com as modernas técnicas de agricultura, conseguimos muitas vezes ter três safras por ano quando antigamente tínhamos uma. Com o piloto automático não tiramos o trabalho do operador do trator, mas entregamos uma ferramenta onde ele consegue garantir que sempre que o trator passar por determinada faixa de terra, o pneu estará exatamente em cima do mesmo lugar que passou anteriormente, danificando com seu peso faixas mínimas de terra e garantido que as rodas não esmaguem nenhuma planta (nem compactem o solo passando perto, que o torna menos fértil). Essas máquinas conseguem hoje aplicar mais adubo onde ele é mais necessário, mais defensivos onde eles são necessários, mais sementes, levando em conta a variação do solo ao longo da plantação. Essa diferença de produtividade de máquinas como as que eu ajudo a criar é o que faz com que as predições Malthusianas não tenham se confirmado, porque conseguimos mais e mais produção com emprego da tecnologia.
Ah, mas o trator está aí, agora é só uma questão de usar os bens de capital já criados, vocês argumentariam.
Pois bem, uma montadora de tratores tem de desenvolver e comprar cerca de 4 mil peças diferentes para construir um trator moderno. Quando falo em quatro mil peças, considero o motor apenas uma, mesmo que dentro do motor existam pistões, bielas, correntes….. outra “peça” é todo o conjunto do eixo dianteiro, com suspensão, peças de lubrificação, inúmeras peças cuja função eu desconheço, mas que foi pensada e colocada por algum engenheiro com alguma função específica. Portanto, nem mesmo eu saberia ao certo quantas peças existem de fato no trator cujo desenvolvimento eu pessoalmente gerencio. Estimo que existam 15 mil ou 20 mil no total, mas provavelmente nunca saberei.
Cada uma dessas 4 mil peças que estão sob minha “responsabilidade” deve ser desenhada por engenheiro, que especifica suas características. Eu, embora não tenha a função no dia-a-dia, também sou engenheiro, então entendo alguns cálculos que são feitos, como por exemplo: Qual o material adequado para uma arruela? Existem alguns materiais que são mais raros, como por exemplo o aço inoxidável, que eu conseguiria garantir uma vida muito longa se usasse em determinada arruela. Outros não são tão bons, mas são mais abundantes na natureza. Posso prever a aplicação de tratamento superficial específico (por exemplo galvanização), posso usar tratamento térmico que consumirá combustível para aquecer/resfriar, posso fazer uma arruela maior ou menor, mais espessa ou mais delgada. Posso também exigir que a arruela tenha exatamente a dimensão que eu preciso ou que tenha uma tolerância dimensional maior, que permitiria que ela fosse feita por processos menos exigentes. Posso pintar para proteger da oxidação e evitar que enferruje. Quanto mais espessa, normalmente mais pesada a arruela, e isso permite que eu tenha menos peso nos tratores, que normalmente carregam toneladas de aço para ficarem mais pesados e conseguirem puxar melhor implementos pesados… adianta eu economizar espessura em uma arruela se depois eu tenho que colocar peso pendurado na frente de um trator? Agora eu pergunto, que critérios eu levo para tomar a decisão de qual arruela especificar?
Como espero ter ficado claro, a decisão técnica de qual a simples arruela escolher é impossível se eu não tiver uma função de custo do seu processo produtivo e transporte até o ponto de montagem. E mesmo para um engenheiro experiente, é impossível conhecer todos os processos necessários para se fazer chegar uma arruela até a fábrica. Até aí, não seria algo impossível… posso fazer uma tabela com os custos, mesmo não-monetários, de produção de determinados aços, de determinados processos produtivos, e tentar criar um produto relativamente bom. Algo do tipo… aço ABC precisa de 5 kcalorias para o tratamento térmico, mais N horas de uma pessoa colocando no forno e tirando, mais X, Y, Z recursos.
Até aí a história parece apenas uma dificuldade maior técnica. Mas não é, porque eu preciso somar a dificuldade desses elementos diferentes em algum critério que me permita a escolha. É melhor ter que consumir 500g de gasolina para aquecer a peça ou usar um operador de forno por mais 10 minutos? Como eu posso somar essas quantidades para tomar uma decisão? Enfim, Não posso. Mas eu posso saber que eu tenho que escolher entre uma arruela que custa R$ 0,01 e outra que custa R$ 0,58, sei que a que custa menos deve ter um processo produtivo mais simplificado, e portanto, deve ser preferível de colocar no meu trator. Se algum dia o produtor da arruela que custa R$ 0,01 tiver algum problema de produção (como uma greve, uma redução na oferta de matéria-prima) ou ainda alguma melhoria no seu processo, ele deve renegociar os preços. Se passar de R$ 0,58, sei que necessitarei trocar de arruela.
Além disso, com a função custo eu posso fazer o cálculo que não é simples, mas é impossível de fazer sem conhecer o custo: Adianta fazer um motor de ouro que consuma 10% menos Diesel? Enfim, sem conhecer os custos, eu não consigo melhorar um produto, porque não tenho, como engenheiro técnico, condições de definir o que é um produto melhor. Sem um sistema de preços, ninguém, nenhuma sociedade jamais teria conseguido criar ferramentas nesse nível de complexidade.
É por isso que todas as experiências sem preços operam a nível de subsistência, em vilarejos pequenos onde as pessoas ainda conseguem conhecer a função umas das outras, ou são falhas terríveis, causando a fome e morte de milhões de pessoas como no caso da já citada por mim grande fome chinesa. Falar em liberdade de um indivíduo onde ele é obrigado a trabalhar na roça com ferramentas rudimentares para garantir seu alimento é um absurdo.
A genialidade de Mises, quando dizemos que ele refutou Marx, é justamente ter provado isso. Ele provou, aprioristicamente, ou seja, sem necessidade de confirmação prática, que se existir uma sociedade capaz de coordenar através da vontade de diversos entes racionais dotados de vontade, ela terá um sistema de preços. Em outras palavras, se um dia uma civilização extra-terrestre chegar na terra, uma certeza nós teremos: Existe um sistema de preços/custos naquela civilização. A única alternativa a isso é se a civilização fosse apenas um único indivíduo, onisciente, que com certeza não é o caso de nada que existe na terra.
Isso tudo não diz absolutamente nada sobre a ética libertária, que foi desenvolvida posteriormente por Rothbard. Provar cientificamente que um sistema sem custos é impossível, não quer dizer que qualquer sistema com custos e preços seja justo. Se vocês quiserem, posso desenvolver mais esse argumento em um post posterior, mas podemos introduzir injustiças e imperfeições no sistema de vários modos, sendo impostos, taxas, restrições ao livre comércio uma forma importante, e normalmente essas aberrações causadas pelo Estado pioram a vida dos indivíduos. Esta noção foi o necessário para o desenvolvimento do “anarcocapitalismo”.
Palhaço
Batman, bastante interessante a sua descrição do processo de produção e da complexidade envolvendo a tecnologia de tratores. No entanto acho problemática a sua presunção de que é o sistema de preços que possibilita esse tipo de processo complexo, pondo em perspectiva com a sua ideologia.
Por exemplo, é costumeiro ver anarcocapitalistas argumentando que o sistema atual não é um livre mercado genuíno, e o sistema de preços é fundamentalmente violado pelas intervenções políticas do estado. Ora, se o sistema de preços atual está quebrado, como ele pode funcionar ao ponto de produzir esses sistemas complexos? Afirmo que essa premissa é falsa. Em larga escala, a pesquisa de base tem estado globalmente a cargo do estado ou das grandes corporações, viciadas em externalização radical de custos como qualquer economista adepto da escola austríaca vai te mostrar. Os smartphones, por exemplo, contam com o uso de diversas dessas tecnologias desenvolvidas em universidades estatais e depois apropriadas por empresas privadas, sem falar na infraestrutura criada pelo movimento software livre, que você com certeza conhece muito bem. Em todos esses casos, a inovação tecnológica não se deu no seio da competição de livre mercado como preconizam seus defensores, mas por administradores do capital sentados em cadeiras burocráticas estatais. Como disse em outro comentário, a defesa ou a critica só é efetiva se pautada na história e na materialidade dos fatos, e não em um punhado de conceitos idealizados que não existe se não na mente de quem as escreve.
A propósito, não existe prova apriori que não se submete a confirmação prática. Volto a citar Marx em sua segunda tese contra Feuerbach:
“A questão se uma verdade objetiva pode ser atribuída ao pensamento humano não é teórica, mas prática. É na prática que o homem deve demonstrar a verdade, ou seja, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou irrealidade do pensamento, quando isolada da prática, é uma questão puramente escolástica.”” [TF]
Sobre a tese da refutação de Mises à Marx, esse texto esclarece a situação
Batman
Ninguém irá discordar quando alguém afirmar que o sistema atual apresenta distorções. Impostos são uma forma de distorcer o custo / preço de peças, forçando os agentes econômicos (vulgo todo mundo) a tomar decisões não-ótimas. Por exemplo, se o Diesel é subsidiado, um fabricante de tratores poderá produzir um motor ciclo Diesel quando o mais economicamente viável em um sistema de livre mercado real seria um a álcool ou hidrogênio.
Enfim, distorções existem, e causam sempre uma diminuição na eficiência do sistema, pois distorce a informação que os projetistas usam.
Você fala em software livre e software criado pelo governo. Quanto ao governo, bom, somos tão anarquistas quanto qualquer um: óbvio que será prejudicial por estar usando recursos expropriados de seus legítimos donos para financiar um desenvolvimento de software que não é desejável.
Mas o software livre é um caso diferente: Pessoas colaborando livremente e criando softwares. Agora, você que é programador, sabe muito bem:se eu tenho um algoritmo superior a outro, significa que meu custo computacional é menor em um que em outro. No final do dia, você só consegue melhorar um algoritmo porque processamento de dados é homogêneo: Mesmo havendo diferenças entre o tipo de cálculo sequencial de uma CPU ou paralelo de uma GPU, temos a noção de preços e custos (computacionais) por toda a informática, e, sem ela, não conseguiríamos evoluir.
Sobre o comentário de Marx: O bom de ter nascido e desenvolvido suas obras depois é dar a chance de entender e explorar as limitações do conhecimento desenvolvido posteriormente. Nenhuma citação de Marx poderia refutar Mises, pois o mesmo criou seu trabalho já conhecendo as limitações de Marx, e não o contrário.
Se você citar um Marxista contemporâneo que entendeu Mises refutando, irei realmente prestar atenção.
Bom, vou ler o artigo indicado (pela segunda vez, tinha passado os olhos e perdido o link da primeira) e talvez me convença do contrário, e desdigo tudo que disse, se preciso for.
Vou ler de novo, com mais calma o artigo. Mas ele parte da premissa errada:
“Muito se fala por aí que a escola austríaca refutou Marx. O argumento é simples, Marx, em O Capital (1863), postulou a sua teoria econômica baseada no valor-trabalho, a mesma de Smith (1776) e Ricardo (1817), só que com algumas diferenças, entre elas está o trabalho social médio e o valor social da mercadoria. Para esses autores, de maneiras diferente, Valor = Trabalho, sendo que, para o marxismo, Valor = Trabalho social médio”
Não é essa a refutação que eu me referia! Eu nunca me aprofundei no marxismo porque, como já disse antes, meu próprio tempo é escasso e algo que valorizo mais que a necessidade de entender uma teoria refutada. A refutação, conforme o livro do Hoppe que acabo de ler, está no fato de que é impossível criar uma sociedade medianamente complexa sem um sistema de preços / custos, o que impossibilita o planejamento central.
E esse argumento ele não abordou nem de passagem.
E ele começa misturando austríacos com neoclássicos… bá, misturada complicada pra caramba de levar a sério. Mas *prometo* vou ler de novo e tentar entender algum sentido do artigo, como se a explicação acima refutasse alguma coisa.