Na empresa onde trabalho, existe apenas uma secretária, que tem por função atender e realizar chamadas, bem como recepcionar fornecedores e clientes quando eles chegam a empresa. A empresa, que é de pequeno-médio porte, conta também com uma equipe de digitadores profissionais e uma equipe de desenvolvimento de software. Com a recente recessão e problemas financeiros com o maior cliente (uma gigante oligopolista das telecomunicações), todos os setores da empresa estão comprimidos a seu menor tamanho, de modo que de cada um é exigido o máximo de eficiência produtiva. No expediente de hoje, surgiu a necessidade corporativa de baixar as informações de diversas empresas (possíveis clientes) presentes em três sites na internet. Essas informações aparecem em listas paginadas e são diversas, de diversos tipos (números de telefone, nome, endereço etc.). Essas informações são apresentadas em páginas HTML, de modo que seria completamente factível extrair esses dados através de programas de leitura de páginas, conhecidos como “web scrappers”. No entanto, dado o esgotamento no time de desenvolvimento e na equipe de produção, a tarefa de baixar essas informações recaiu sobre a secretária.
A tarefa consistem em copiar e colar dos sites mais de 500.000 linhas de cada um, em um trabalho penoso e repetitivo de CTRL+C CTRL+V no período intermediário entre as tarefas de costume. O preço de obter essas informações em qualquer site de freelancer’s é de no máximo $100,00, no entanto, é mais barato para o dono da empresa, usar a mão de obra “ociosa” da secretária em seus momentos livres, mesmo que essa tarefa possa causar lesões por esforço repetitivo (LER) nela, afinal ele já paga uma parte do plano de saúde dela e o salário dela ao fim do mês vai ser o mesmo.
Você pode estar pensando “Por que ela aceitou fazer isso? Por que ela não processa a empresa por desvio de função?”
Pois bem, a primeira pergunta é simples: Ela precisa do emprego. Essa colega foi promovida de faxineira a recepcionista recentemente e vive em uma cidade de trabalhadores, não que a cidade aonde a empresa fique não seja de trabalhadores, mas a cidade dela é daquelas conhecidas por “cidades-dormitório”, aonde a população vai trabalhar em algum centro e só volta para dormir em casa.
A segunda também é simples: ela precisa do emprego. A “justiça” do trabalho no país é de natureza conciliatória, ou seja, não faz valer direitos, mas sim busca um consenso entre as partes (patrão/empregado). Fora isso, ela está extremamente precarizada devido aos cortes de orçamento aplicados recentemente pelo governo de forma “retaliativa”, em resposta a resistência da instituição em implementar medidas “modernizantes” (parece ironia mas não é, elas são chamadas assim). E, dadas essas duas circunstâncias, os processos se tornam ainda mais demorados e, quando finalizados, são reparativos, ou seja, a empresa paga aquilo que ela deixou de pagar – paga o que já era direito do funcionário, apenas com correções monetárias (inflação), tornando economicamente mais barato simplesmente não pagar.[1]
E com isso, tivemos uma aula prática daquilo que a teoria já nos ensina: empresa é pra dar lucro, não pra fazer pessoas felizes ou “realizadas” com seu trabalho.
Encerro esse breve relato com um singelo poema:
Só lhe resta um olho (o outro ainda escorre lentamente da cavidade ocular), mas entregou-se ao uso. Em volta, os muros sorriem. A televisão vomita na sua cara, provocando-lhe um estranho gemido. A boca, em forma de U, parece um ânus.
Onde quer que ele vá, a mesma cena.
Por toda parte: um carro fala, um hambúrguer grita, belos vestidinhos comentam a respeito da conjuntura geopolítica. E todos dançam.
Durante a semana, ele é desgastado, utilizado, dedado no olho, pisado, chutado no saco, cagado&mijado e, enfim, elogiado pelo patrão.
Mas tem os seus direitos: por exemplo, o de votar, escolhendo entre o ruim e o pior, de tempos em tempos.
Está subjugado ao tripalium. É um trabalhador e, às vezes, até se orgulha disso. Produz tudo que pode ser produzido. Em troca, recebe uns pedaços de papel com os quais tenta imantar os objetos à venda. Não percebe que a mercadoria obedece ao dinheiro, não a ele. Até mesmo a água suja do arroz com feijão que ele come.
O mundo, reduzido a espetáculo mercantil, pulula em bisonhos fetiches antropomórficos. Das vitrines, inconsoláveis, as coisas choram a falta do pedaço de papel moeda – que, se tivemos, já não temos…
As mercadorias não existem para satisfazer as necessidades humanas.
Oh! Sim… Para impedir a satisfação das necessidades, estão convocados fuzis, metralhadoras, tanques e a servidão (mais ou menos voluntária) dos que os manejam.
“E tudo que não se pode fazer, o dinheiro faz para a gente. Pode-se comer, beber, ir ao baile e ao teatro. Ele pode adquirir arte, saber, tesouros históricos, poder político; e pode-se viajar. Mas, apesar de poder fazer tudo isso, o dinheiro só quer criar a si mesmo, e comprar a si mesmo, pois tudo mais a ele se submete.”
(Karl Marx – Manuscritos Econômicos e Filosóficos)
[1] Mais informações sobre a justiça do trabalho no Brasil podem ser encontradas nesse link