David Graeber
Você reparou que já não existem novos intelectuais franceses? Houve uma autêntica
enxurrada no final dos anos 70 e no início dos 80: Derrida, Foucault, Baudrillard, Kristeva, Lyotard, de Certeau…mas desde então não apareceu quase nenhum. Acadêmicos antenados e hipsters intelectuais foram forçados a reciclar interminavelmente teorias que agora contam 20 ou 30 anos ou se voltar para países como a Itália ou até a Eslovênia em busca de uma metateoria capaz de chamar a atenção.
O pioneiro antropólogo francês Marcel Mauss estudou “economias da dádiva”, como as dos Kwakiutl da Colúmbia Britânica. Suas conclusões foram surpreendentes.
Há uma série de razões para isto. Uma está ligada à política da própria França, onde ocorreu um esforço orquestrado por parte das elites midiáticas para substituir verdadeiros intelectuais por especialistas cabeças-ocas de estilo americano. Contudo, o êxito não foi completo. Mais importante, a vida intelectual francesa tornou-se muito mais engajada politicamente. Na imprensa dos Estados Unidos, houve quase um apagão de notícias culturais vindas da França desde o grande movimento grevista de 1995, quando aquela nação foi a primeira a rejeitar de forma definitiva o “modelo americano” de economia e se recusou a dar início ao desmantelamento de seu Estado de bem-estar social. Na imprensa americana, a França imediatamente se tornou o país tolo, que tenta em vão mudar o rumo da história.
É claro que este fato isolado dificilmente irá intimidar os leitores americanos de Deleuze e
Guattari. O que os acadêmicos dos Estados Unidos esperam da França é um alto nível
intelectual, a capacidade de sentir que se está fazendo parte de ideias radicais e selvagens – demonstrando a violência inerente das concepções ocidentais de verdade e humanidade, ou algo do tipo –, mas de formas que não impliquem um programa de ação política, ou, em geral, uma responsabilidade de agir. É fácil ver como uma classe de pessoas consideradas quase inteiramente irrelevantes tanto pelas elites políticas como por 99% da população geral poderia se sentir assim. Em outras palavras, enquanto a mídia americana representa a França como tola, os acadêmicos americanos vão em busca dos pensadores franceses que parecem cumprir as expectativas.
Como resultado, sequer ouvimos falar de alguns dos estudiosos mais interessantes da França na atualidade. Entre eles está um grupo de intelectuais que carrega o pomposo nome de Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales, ou MAUSS, e tem se dedicado a um ataque sistemático às bases filosóficas da teoria econômica. O grupo tira sua inspiração de Marcel Mauss, grande sociólogo francês do início do século XX, cuja obra mais famosa, Ensaio sobre a dádiva (1925), foi talvez a mais magnífica refutação das ideias por trás da teoria econômica já escrita. Numa época em que o “mercado livre” é empurrado goela abaixo de todos como um produto tão autêntico quanto natural do ser humano, o trabalho de Mauss, que demonstrou não apenas que a maioria das sociedades fora do Ocidente não adotava nada semelhante a princípios mercadológicos, mas também que tampouco o faz a maioria dos ocidentais modernos, é mais relevante do que nunca.
Enquanto os estudiosos americanos francófilos parecem incapazes de pensar em algo para dizer sobre a ascensão do neoliberalismo global, o MAUSS está lhe atacando as próprias fundações.
A título de retrospectiva: Marcel Mauss nasceu em 1872, em Vosges, numa família judia
ortodoxa. Seu tio, Émile Durkheim, é considerado o fundador da sociologia moderna. Vivia rodeado de um grupo de brilhantes e jovens acólitos, dentre os quais Mauss foi designado para estudar religião. O círculo, no entanto, foi aniquilado pela I Guerra Mundial; muitos morreram nas trincheiras, incluindo o filho de Durkheim, e ele próprio sucumbiu ao luto pouco tempo depois. Mauss ficou para juntar os cacos.
Segundo todos os relatos, porém, Mauss nunca foi levado totalmente a sério em seu papel de herdeiro necessário; homem de extraordinária erudição (conhecia pelo menos uma dúzia de idiomas, incluindo sânscrito, maori e árabe clássico), ele ainda, de alguma forma, carecia da austeridade esperada de um grand professeur. Ex-pugilista amador, era um homem robusto de modos brincalhões, um tanto bobos, o tipo de pessoa que estava sempre fazendo malabarismos com uma dúzia de ideias brilhantes em vez de construir grandes sistemas filosóficos. Passou a vida trabalhando em pelo menos cinco livros diferentes (sobre oração, sobre nacionalismo, sobre as origens do dinheiro etc.), dos quais nunca terminou nenhum.
Ainda assim, conseguiu instruir uma nova geração de sociólogos e inventar a antropologia
francesa mais ou menos sozinho, bem como publicar uma série de ensaios de extraordinário caráter inovador, dos quais praticamente cada um gerou por si só um novo corpus de teoria social.
Mauss foi também um socialista revolucionário. Desde seus dias de estudante colaborou de forma regular com a imprensa esquerdista e durante a maior parte da vida permaneceu um membro ativo do movimento cooperativista francês. Fundou e durante muitos anos ajudou a dirigir uma cooperativa de consumidores em Paris, e com frequência era enviado em missões para fazer contato com o movimento em outros países (motivo pelo viveu na Rússia após a revolução). Entretanto, não era marxista. Seu socialismo seguia mais a tradição de Robert Owen ou Pierre-Joseph Proudhon: ele considerava que comunistas e sociais-democratas incorriam no mesmo erro ao crerem que a sociedade podia ser transformada primordialmente pela ação do governo. Em vez disso, o papel do governo, acreditava Mauss, era fornecer a estrutura legal para um socialismo que tinha de ser construído do zero, mediante a criação de instituições alternativas.
A revolução russa, portanto, causou-lhe profunda ambivalência. Embora exultante com a
expectativa de um genuíno experimento socialista, Mauss sentiu-se ultrajado com o uso
sistemático do terror pelos bolcheviques, sua supressão das instituições democráticas e,
acima de tudo, sua “doutrina cínica segundo a qual os fins justificam os meios”, o que,
concluiu ele, era justamente o cálculo amoral e racional do mercado, ligeiramente invertido.
O ensaio de Mauss acerca da “dádiva” foi, mais do que qualquer outra coisa, sua resposta aos eventos ocorridos na Rússia, em particular a Nova Política Econômica de Lênin de 1921, que abandonou tentativas anteriores de abolir o comércio. Se o mercado não podia simplesmente ser varrido da legislação, mesmo na Rússia, provavelmente a menos monetarizada das sociedades europeias, então estava claro, concluiu o pensador, que os revolucionários teriam de começar a pensar muito mais a sério no que esse “mercado” de fato representava, de onde viera e como realmente poderia ser uma alternativa viável a ele.
Era hora de efetivar os resultados da pesquisa histórica e etnográfica. As conclusões de Mauss foram surpreendentes. Em primeiro lugar, quase tudo o que a “ciência econômica” tinha a dizer sobre o tema da história da economia revelou-se inteiramente inverídico. A crença universal dos entusiastas do mercado livre, tanto à época como hoje, era que o motor essencial do ser humano é o desejo de maximizar os prazeres, os confortos e as possessões materiais (sua “utilidade”) e que portanto todas as interações humanas importantes podem ser analisadas em termos mercadológicos. No princípio, segundo a versão oficial, havia o escambo. As pessoas eram forçadas a obter o que queriam
trocando diretamente um objeto por outro. Como isso era inconveniente, acabaram por
inventar o dinheiro como meio universal de troca. A criação de tecnologias mais avançadas
(crédito, sistema bancário, bolsas de valores) foi uma simples extensão lógica.
O problema era que, como Mauss logo notou, não havia motivo para acreditar que uma
sociedade baseada no escambo um dia houvesse existido. Em vez disso, o que os
antropólogos estavam descobrindo eram sociedades em que a vida econômica se baseava
em princípios absolutamente diferentes, a maioria dos objetos vinha e voltava como presentes e quase tudo o que chamaríamos de comportamento “econômico” era baseado em uma pretensão de generosidade pura e uma recusa em calcular quem dera o que a quem. Tais “economias da dádiva” podiam em certas ocasiões tornar-se altamente competitivas, mas quando isso ocorria era da maneira exatamente oposta à nossa: em vez de brigar para ver quem acumulava mais, os vencedores eram aqueles que conseguiam doar mais. Em alguns casos notórios, como o dos Kwakiutl da Colúmbia Britânica, isso podia levar a dramáticas disputas de liberalidade, em que chefes ambiciosos tentavam superar uns aos outros distribuindo milhares de braceletes de prata, cobertores Hudson’s Bay ou máquinas de costura Singer e até mesmo destruindo riquezas afundando famosas relíquias de família no mar, ou ainda incendiando enormes pilhas de riquezas e desafiando os rivais a fazer o mesmo.
Tudo isso pode parecer muito exótico. No entanto, como Mauss também indagou: até que
ponto é estranho, na realidade? Não há algo de esquisito na própria ideia de dar presentes,
mesmo em nossa sociedade? Por que é que, quando recebemos um presente de um amigo
(uma bebida, um convite para jantar, um elogio), sentimo-nos de certa forma obrigados a
retribuir à altura? Por que é que o destinatário de um ato de generosidade muitas vezes se
sente um tanto reduzido se não puder fazê-lo? Estes não são exemplos de sentimentos
humanos universais, que são de certo modo ignorados em nossa sociedade mas que em
outras eram a própria base do sistema econômico? E não é a existência desses impulsos e
padrões morais tão diferentes, mesmo num sistema capitalista como o nosso, o verdadeiro
fundamento do apelo das visões alternativas e das políticas socialistas? Mauss decerto
achava que sim.
Em muitos aspectos sua análise trazia uma notável semelhança com as teorias marxistas
sobre a alienação e a reificação desenvolvidas por figuras como György Lukács por volta da
mesma época. Em economias da dádiva, argumentou Mauss, as trocas não têm as qualidades impessoais do mercado capitalista: na verdade, mesmo quando objetos de grande valor trocam de mãos, o que realmente conta são as relações entre os participantes; trocar é fazer amizades, ou dirimir rivalidades ou comprometimentos, e apenas incidentalmente movimentar bens de valor. Como resultado, tudo ganha uma carga pessoal, mesmo a propriedade: em economias da dádiva, os objetos de riqueza mais famosos – heranças de família como colares, armas, mantos de pena – sempre parecem desenvolver personalidade própria.
Numa economia de mercado ocorre o exato oposto. As transações são vistas apenas como
formas de pôr as mãos em objetos úteis; o ideal é que as qualidades pessoais do comprador e do vendedor sejam totalmente irrelevantes. Como consequência, tudo, mesmo as pessoas, começa a ser tratado como objeto também. (Considere desse ponto de vista a expressão “bens e serviços”.) A principal diferença em relação ao marxismo, contudo, é que ao passo que os marxistas de sua época ainda insistiam em um determinismo econômico pragmático, Mauss sustentava que em sociedades não mercantis do passado, e por conseguinte em qualquer sociedade verdadeiramente humana do futuro, a “economia”, no sentido de um domínio autônomo de ação preocupado apenas com a criação e a distribuição de riqueza e que procedesse de acordo com sua própria lógica impessoal, sequer existiria. Mauss nunca teve plena certeza de quais eram suas conclusões práticas. A experiência russa convenceu-o de que o comércio não poderia ser simplesmente eliminado em uma sociedade moderna, pelo menos “no futuro próximo”, mas um éthos de mercado sim. O trabalho poderia ser cooperativado, uma seguridade social garantida e, de forma gradativa, um novo éthos criado de modo que a única desculpa possível para o acúmulo de riqueza fosse a capacidade de doá-la inteiramente. O resultado: uma sociedade cujos valores mais altos fossem “a alegria de doar em público, o deleite no generoso dispêndio artístico, o prazer da hospitalidade no festim público ou privado”.
Isto pode parecer em parte tremendamente ingênuo do ponto vista atual, mas as reflexões
centrais de Mauss tornaram-se, pelo contrário, ainda mais relevantes hoje do que eram há
anos, agora que a “ciência” econômica se transformou, efetivamente, na religião revelada da era moderna. Assim parecia, ao menos, para os fundadores do MAUSS.
A ideia do MAUSS nasceu em 1980. Conta a história que o projeto surgiu de uma conversa
durante o almoço entre um sociólogo francês, Alain Caillé, e um antropólogo suíço, Gérald
Berthoud. Eles haviam acabado de encarar vários dias de uma conferência interdisciplinar a respeito de dádivas e, após examinarem o material, perceberam chocados que parecia não haver ocorrido a sequer um estudioso presente que uma motivação significativa para doar poderia ser, digamos, generosidade, ou uma preocupação genuína com o bem-estar de outra pessoa. Na verdade, os estudiosos presentes na conferência invariavelmente presumiram que “dádivas” não existem de fato: cave fundo o bastante qualquer ação humana e você sempre encontrará uma estratégia egoísta e calculista. Ainda mais bizarro, presumiram que essa estratégia egoísta era sempre, necessariamente, o verdadeiro xis da questão, que era de certo modo mais real do que qualquer outra motivação na qual pudesse estar emaranhada. Era como se ser científico, ser “objetivo” significasse ser completamente cínico. Por quê? Caillé por fim culpou o cristianismo. A Roma Antiga ainda preservava algo do velho ideal de prodigalidade aristocrática: os magnatas romanos construíam jardins e monumentos públicos e disputavam quem patrocinava os jogos mais magníficos. Porém, a generosidade romana também era, de maneira bastante clara, feita para magoar: um dos atos favoritos era espalhar ouro e joias diante das massas para vê-las brigando na lama para retirá-los. Os primeiros cristãos, por razões óbvias, desenvolveram sua noção de caridade em reação direta a práticas tão repugnantes. A verdadeira caridade não era baseada num desejo de estabelecer superioridade, ou favor, ou em qualquer motivação egoísta que fosse. A ponto de se poder dizer que, se o doador tivesse recebido qualquer coisa fora do acordado, não se tratava de uma dádiva real.
No entanto, isto por sua vez levou a infindáveis problemas, posto que era muito difícil imaginar uma dádiva que não trouxesse algum tipo de benefício ao doador. Mesmo um ato inteiramente desinteressado renderia pontos perante Deus. Aí teve início o hábito de investigar em todo ato até que ponto se podia dizer que mascarava algum egoísmo oculto e então presumir que esse egoísmo é o que realmente importa. Vê-se a mesma atitude reproduzida com grande persistência na teoria social moderna. Economistas e teólogos cristãos concordam em que se há prazer em um ato de generosidade, ele é de certa forma menos generoso. Eles só discordam em relação às implicações morais. Para contra-atacar essa lógica deveras perversa, Mauss ressaltou o “prazer” e a “alegria” de doar: em sociedades tradicionais, não se supunha existir contradição alguma entre o que chamaríamos interesse próprio (uma expressão que, observou ele, sequer podia ser traduzida para a maioria dos idiomas humanos) e preocupação com os outros; a própria essência da dádiva tradicional está no fato de ela estimular ambos ao mesmo tempo.
Estes, enfim, eram os tipos de questões que inicialmente ocuparam o pequeno grupo
interdisciplinar de estudiosos franceses e francófonos (Caillé, Berthoud, Ahmet Insel, Serge Latouche, Pauline Taieb) que viriam a se tornar o MAUSS. Na verdade, o grupo em si começou como um jornal, chamado Revue du MAUSS, um jornal muito pequeno, impresso nas coxas em papel de má qualidade, concebido por seus autores tanto como uma piada interna quanto como um veículo de conhecimento sério, o carro-chefe de um vasto movimento internacional que não existia então. Caillé escrevia manifestos, e Insel punha no papel fantasias acerca de grandes convenções internacionais antiutilitaristas do futuro. Artigos sobre economia alternavam-se com excertos de romancistas russos. Porém, de forma gradual, o movimento começou a se materializar. Em meados dos anos 90, o MAUSS já se tornara uma notável rede de estudiosos que iam de sociólogos e antropólogos a economistas, historiadores e filósofos, da Europa, da África Setentrional e do Oriente Médio, cujas ideias haviam passado a ser representadas em três jornais diferentes e uma proeminente série de livros (todos em francês) respaldados por conferências anuais.
Desde as greves de 1995 e a eleição de um governo socialista, a própria obra de Mauss tem
passado por um considerável revival na França, com a publicação de uma nova biografia e
uma coletânea de seus textos políticos. Ao mesmo tempo, o grupo MAUSS em si tem se
tornado cada vez mais explicitamente político. Em 1997, Caillé lançou um petardo intitulado “30 teses para uma nova esquerda”, e o grupo começou a dedicar suas conferências anuais a questões políticas específicas. Sua resposta às intermináveis reivindicações para que a França adotasse o “modelo americano” e acabasse com seu Estado de bem-estar, por exemplo, foi começar a promulgar uma ideia econômica originalmente proposta pelo revolucionário americano Tom Paine: a renda nacional garantida. O verdadeiro caminho para se reformar a política de bem-estar não é começar a retirar os benefícios sociais, mas reestruturar toda a concepção do que um Estado deve a seus cidadãos. Descartemos o bem-estar e os programas de desemprego, disseram eles. Em vez disso, criemos um sistema em que todo cidadão francês tenha garantida a mesma renda inicial (digamos, $20.000, pagos diretamente pelo governo), e o resto fique por conta dele.
É difícil saber com exatidão o que pensar da esquerda maussiana, especialmente
considerando que agora Mauss está sendo promovido, em determinados lugares, como uma alternativa a Marx. Seria fácil desprezá-la como uma simples social-democracia extremada, que não está realmente interessada na transformação radical da sociedade. As “30 teses” de Caillé, por exemplo, concordam com Mauss ao reconhecerem a inevitabilidade de algum tipo de mercado – mas ainda assim, como ele, anseiam pela abolição do capitalismo, aqui definido como a busca pelo lucro financeiro como um fim em si. Por outro lado, contudo, o ataque maussiano à lógica do mercado é mais profundo, e mais radical, que qualquer outra coisa que se veja no horizonte intelectual no momento. É difícil fugir à impressão de que esta é precisamente a razão pela qual os intelectuais americanos, em particular aqueles que se creem os radicais mais ferrenhos, dispostos a desconstruir quase qualquer conceito exceto a ambição e o egoísmo, simplesmente não sabem o que pensar dos maussianos – a razão pela qual, a bem da verdade, seu trabalho tem sido quase completamente ignorado.
Texto retirado da obra O ANARQUISMO NO SÉCULO XXI E OUTROS
ENSAIOS
Obra disponibilizada na íntegra aqui