Uma critica comum dos progressistas à chamada “economia compartilhada” — representada por empresas como o Uber, o Lyft e o Airbnb — é que se trata de um setor desregulado. Isso presume, evidentemente, que os sistemas de regulamentação, como os dos táxis, existem para “servir ao bem-estar público” e não simplesmente para garantir o lucro das companhias de táxis ao criminalizar a competição.
Dentro da verdadeira esquerda, encontramos críticas muito mais válidas a essas empresas. Por exemplo, a crítica ao fato de que essas entidades não fornecem serviços de compartilhamento real — ou seja, não são efetivamente “peer to peer”. Para esses esquerdistas (e eu sou um deles), empresas como o Uber são apenas tentativas de colocar um rótulo novo num produto velho — o velho corporativismo com o rótulo da economia de compartilhamento. O Uber, por exemplo, usa sistemas proprietários (sistemas em que todo o conteúdo da plataforma é controlado pela empresa proprietária) para enclausurar genuínos serviços P2P em paredes corporativas e extrair rendas de ambos motoristas e passageiros, reduzindo os motoristas a meros empregados.
De acordo com os críticos, a solução adequada é que a nova economia P2P se livre dos vestígios corporativos e se torne algo real. Precisamos de “plataformas cooperativas”: serviços de código aberto possuídos e controlados cooperativamente pelos usuários e pelos provedores do serviço. Isso pode ser atingido através da criação de aplicativos realmente open-source de compartilhamento de caronas, como alternativa ao trabalho para Uber e Lyft (por exemplo, o La’Zooz, um aplicativo de código aberto israelense, possuído por usuários e motoristas). Isso beneficiaria os passageiros, dar aos motoristas controle autônomo sobre seu próprio trabalho, e permitir que motoristas e passageiros interajam diretamente entre si como iguais além de destruir a renda obtida pelos falsos serviços de “compartilhamento de carona”. Ao invés de um dono corporativo se inserindo entre motoristas e passageiros para forçar acordos nos seus parópios termos, o sistema seria possuído e governado por alguma combinação entre motoristas e passageiros, nos seus próprios interesses.
Igualmente importante seria o surgimento de uma regulamentação real e libertária para esses serviços. A questão de quem vai regular é comum entre progressistas. Isso é infelizmente uma questão natural, dados os processos centenários apontados por Pyotr Kropotkin. Kropotkin descreve a supressão dos sistemas de gerenciamento auto-organizados e horizontais pelo moderno estado-nação, criando a crença popular de que “regulação” deve ser desempenhada por uma autoridade, que vigiaria o corpo social. No discurso comum, a pergunta “Quem regulará?” na verdade significa “Que autoridade superior às pessoas ordinárias avaliará os acontecimentos aqui em baixo e evitar que alguém faça algo exploratório ou fraudulento?”. Graças aos séculos de propaganda do estado e da classe a quem ele serve, estamos condicionados a identificar essa instituição como o representante oficial da sociedade e a enxergar legitimidade apenas nas autoridades estatais, como se fossem a única forma concebível de aplicar regras justas de condução das relações sociais.
Antes do surgimento do estado-nação, a vida social e econômica era organizada através de arranjos de governança horizontais, como guildas, instituições livres medievais, regulamentos costumeiros das vilas de campo aberto e o compartilhamento de reservas de recursos naturais pelos usuários que foram estudadas por Elinor Ostrom. Nesses contextos, a resposta óbvia a pergunta “quem vai regular?” ou “quem vai impedir a fraude?” era “nós!”.
E, enquanto o estado e as corporações passam a se esgotar, o retorno a esse modelo de regulação de autogovernança é o caminho natural. A própria questão “quem vai regular?” tem sentido somente se nos presumirmos que as entidades são reguladas por terceiros e não por nós mesmos. Trata-se de uma premissa perfeitamente razoável em uma economia dominada por capitalistas e não por trabalhadores e consumidores. Porém, conforme as ferramentas de produção em pequena escala ficam mais e mais baratas e possibilidades de organização em rede levam a uma economia na qual a produção e distribuição são controladas por trabalhadores e consumidores, começa novamente a ficar óbvio o pensamento que regulação é algo que cabe a nós.
No contexto dos últimos 500 ou 600 anos, em que pensamos em regulação em termos de “legislação imposta” por uma autoridade superior ou “panopticismo” (no qual somos todos visíveis para uma autoridade superior, mas não necessariamente para uns com os outros), nós respondemos com o conceito de holopticismo. Como Michael Bauwens, diretor da P2P Foundation, descreve em “The Political Economy of Peer Production” (CTheory.net, Dezembro 1, 2005):
A capacidade de cooperar é verificada no próprio processo de cooperação. Projetos P2P são caracterizados pelo holopticismo. Holopticismo é a capacidade implícita em processos P2P que permite que participantes tenham acesso livre a toda informação sobre os outros participantes, não em termos de privacidade, mas em termos da sua existência e contribuição (informação horizontal) e acesso a objetivos, métricas e documentação do projeto como um todo (a dimensão vertical). Isso pode ser contrastado com o panopticismo que caracteriza os projetos hierárquicos: processos desenhados para reservar “total” conhecimento apenas a uma elite, enquanto os participantes tem acesso apenas ao que se restringe as suas tarefas específicas. Entretanto, em projetos P2P, a comunicação não é de cima pra baixo e baseada em regras estritamente definidas, mas sim de forma sistêmica, integrada no protocolo do sistema cooperativo.
Ao invés do todo ser visível a um Leviathan desinteressado que vigia tudo de cima, o todo é visível pelos próprios participantes por natureza da sua participação. Em uma prisão — governada pelo panopticismo — o guarda é capaz de enxergar todos prisioneiros, mas os prisioneiros não veem uns os outros. Os prisioneiros não são capazes coordenar suas ações independentemente do guarda. Holopticismo é o exato oposto: os membros do grupo são visíveis entre si e podem coordenar suas próprias ações. A verdade silenciada é que a hierarquia existe em função do guarda e a associação holóptica existe existe em função dos seus membros (e, na presente discussão, o “capitalista”, o “empregador”, e o “estado” podem todos serem usados no lugar do guarda). As pessoas no topo da pirâmide hierárquica não confiam nas pessoas que realmente trabalham porque seus interesses são diametralmente opostos. É seguro para nós confiarmos uns nos outros, porque nossos interesses comuns podem ser inferidos a partir de nossa participação nas mesmas tarefas.